ACÓRDÃO N.º592/2019
PROCESSO N.º 662-B/2018
(Processo relativo a Partidos Políticos e Coligações)
Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Manuel Baptista Fula Fula, com os demais sinais de identificação nos autos, na qualidade de militante do Partido Político FNLA, vem requerer a destituição do Presidente, Lucas Benghim Gonda, ora Requerido, nos termos da alínea d) do artigo 63.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), dos artigos 43.º, 73.º e 74.º da Constituição da República de Angola, (CRA), da alínea k) do artigo 20.º da Lei n.º 22/10, de 3 de Dezembro, Lei dos Partidos Políticos (LPP), do artigo 26.º e do n.º 2 do artigo 32.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente, ex vi do artigo 2.º da LPC e dos artigos 22.º e 23.º, n.º 2, dos Estatutos do referido Partido Político.
Para o efeito apresentou, em síntese, as seguintes alegações:
A Requerida FNLA, notificada, apresentou as seguintes contra- alegações:
“O Requerente vem a este augusto Tribunal com uma mão cheia de argumentos vazios e com um pedido ininteligível.
Na medida em que afirma no objecto do seu pedido, parte III, “Destituída a Direcção da FNLA, eleita no IVº Congresso Ordinário de 2015”.
Disse-se que trouxe apenas uma mão cheia de argumentos vazios porque limita-se a narrar factos (sua versão), alegadamente acontecidos em 2018, esquecendo-se de dizer (que é a versão real), que andaram a vandalizar as instalações do Partido, em vez de busca de diálogo como alegam.
Aliás, nesta altura, como actualmente, o Partido estava e está em pleno funcionamento bem como os seus órgãos nacionais, Provinciais, Municipais e de Base.
Ininteligível, ainda, porque ao afirmar que a direcção da FNLA eleita no IV Congresso Ordinário de 2015 está destituída, no mínimo, está a faltar com a verdade e nem sequer indica na sua peça qual é a alegada comissão encarregue a assegurar o funcionamento do Partido até a realização do Congresso Ordinário e qual é a sua legitimidade.
E ainda que, por hipótese, sejam os nomes mencionados no comunicado, de folhas 174 dos autos, assinado pelo suposto coordenador, Manuel Baptista Fula Fula, aqui Requerente, questiona-se, Venerandos Juízes Conselheiros, qual é a sua legitimidade.
O Requerente junta no seu requerimento listas de alegados militantes da FNLA e anexa uma série de fotocópias de Bilhetes de Identidade, o que não prova a militância activa dos mesmos no Partido.
Pois, nos termos do artigo 10.º, alíneas d) e i) dos Estatutos, é dever do militante do Partido, dentre outros, pagar regularmente as suas quotas e não fomentar o espírito de divisão e intrigas no seio do Partido.
E, para tentar ludibriar este augusto Tribunal, o Requerente junta no seu requerimento, de folhas 181 e 182, um Cartão de Membro emitido em 25/02/2002, uma Credencial com o número 187/2001 completamente desactualizados, uma vez que, após o Congresso Ordinário realizado em 2015, o Secretariado do Partido renovou os cartões de militante de todos os seus membros.
Ora, sem qualquer legitimidade, o Requerente junta aos autos, a alegada lista e anexa as respectivas fotocópias dos Bilhetes de Identidade dos supostos militantes, sem sequer, provar a militância activa dos mesmos.
Ademais, o Requerente e toda a lista, alegadamente, de anciãos militantes que junta aos autos, usam a falsa identidade, intitulando-se de co-fundadores da FNLA, pois nenhum deles o é .
Pois, são co-fundadores da FNLA:
Os membros oriundos da UPA-Holden Roberto, Rosário Neto, Alexandre Taty, Jonas Savimbi, José Liahuca, Johnny Eduardo, Pinnok João Eduardo, Vasco José António, Fernando Pio do Amaral Gourgel, Francisco Paka e provenientes do PDA-Emanuel Kounzika, Davide Livramentos, Dombele Ferdinand, Lubaki Sebastion Ntemo, Domingos Vetokele, Sanda Martin, Dontoni Lulukila Vo Antoine, Kiatalua Robert, M`vila André e Kumpesa Simon.
E nenhum dos que constam das listas do Requerente faz parte deste núcleo.
Com efeito, a Direcção da FNLA nunca foi destituída, pois, mantém a sua legitimidade emanada do IV Congresso Ordinário de 2015, estando neste momento a preparar a realização do V Congresso Ordinário em concertação com todos os militantes desavindos.
Concertações estas que vêm decorrendo desde o mês de Maio de 2019 e continuam com as expectativas.
E tem consciência de que precisa de renovar o mandato dos seus órgãos nos termos dos Estatutos.
Pelo que, não estando destituída a Direcção do partido e não tendo qualquer legitimidade, a alegada comissão para assegurar o funcionamento do Partido é, por isso, inexistente.
Nestes termos, deve a petição ser considerada inepta por ininteligibilidade da causa de pedir e, em consequência, absolver o requerido de todo o pedido”
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente processo, nos termos da alínea j) do artigo 3.º e da alínea d) do n.º 1 do artigo 63.º ambas da LPC e do n.º 2 do artigo 29. º da LPP.
III. LEGITIMIDADE
Para intervir no processo como parte, afigura-se necessária a existência de um interesse sério em demandar ou em contradizer. É este interesse que, nos termos da alínea d) do artigo 63.º da LPC, conjugado com o n.º 3 do artigo 29.º da LPP, determina a legitimidade do Requerente para formular o presente pedido, pois é militante da FNLA até à presente data.
IV. OBJECTO
O objecto do presente processo é o pedido de destituição da direcção da FNLA. Com efeito, este Tribunal analisará os elementos carreados ao processo de modo a decidir, se o pedido do Requerente procede ou não e será analisada a viabilidade jurídico-legal e estatutária do referido pedido.
V. APRECIANDO
A questão central do processo em apreciação está ligada à possibilidade de destituição de um órgão eleito, sem atender à sua natureza, nem as entidades que o elegeram. Desde logo, não se pode afastar a possibilidade de destituição de um órgão eleito, pelas pessoas que o elegeram. Existem várias formas de cessação do mandato. Contudo, a cessação por via de destituição ocorre após o preenchimento de um conjunto de pressupostos pelo que, em princípio, não há qualquer impedimento e os militantes podem solicitar a destituição do seu líder.
Assim, para o caso em análise, teremos de averiguar se existe a possibilidade de destituição do Presidente do Partido FNLA, tendo como referência analítica a CRA, a LPP e os Estatutos do Partido.
A Constituição, no n.º 1º do artigo 2.º, que regula o princípio do Estado democrático de direito, faz referência à democracia participativa e representativa. Na maior parte dos artigos sobre a matéria, privilegia-se a democracia representativa. Tal disposição constitucional é, pela sua natureza, aplicável aos partidos políticos que, na sua organização e funcionamento, devem assegurar estas duas formas de exercício de poder democrático. Quer dizer que os partidos políticos, por força do princípio acima referido, devem, nas suas formas de organização e funcionamento, privilegiar o princípio democrático.
Assim, devemos atender ao preceituado no artigo 17.º da CRA, que estabelece as regras que os partidos devem seguir no prosseguimento das suas actividades. A alínea f) do n.º 2 do mesmo artigo estabelece o princípio democrático como primado que deve determinar a organização e funcionamento das formações partidárias.
O exercício da actividade política em Angola encontra-se sujeito ao regime consagrado na CRA, mas esta, em algumas situações, permite que determinadas matérias sejam reguladas por normas ordinárias. Por exemplo, a CRA não consagra normas aplicáveis às situações de destituição de presidentes de partidos políticos, o que nos obriga a recorrer ao regime regra no que à organização e funcionamento destas entidades diz respeito, a LPP.
Ora, a LPP, na alínea c) do artigo 8.º, consagra o princípio democrático, com uma incidência para a democracia representativa. Através da leitura desta norma, percebe-se que os militantes têm, em primeira instância, o poder para eleger os representantes dos partidos políticos, não resultando daí a segunda conclusão que é a de destituí-los. Embora se possa presumir deste princípio, a verdade é que tal possibilidade deve estar consagrada de forma clara e a LPP não o faz. Assim, teremos de analisar os Estatutos da FNLA, pois a resposta à questão central do processo depende do que este documento consagrar.
Por outro lado, o artigo 20.º da LPP consagra os elementos que obrigatoriamente devem constar dos Estatutos dos partidos políticos e, a partir da sua leitura, podemos concluir que alguns deles estão directa ou indirectamente relacionados com a possibilidade de destituição dos órgãos gestores dos partidos políticos. Com efeito, valem as alíneas b), d), g), n) e o) do supracitado artigo.
Na sequência, os Estatutos devem estabelecer regras que concretizem as normas acima referidas.
Os Estatutos da FNLA não consagram, de forma expressa, poderes para destituição do Presidente e demais órgãos de gestão. De qualquer forma e havendo esta possibilidade, ela só deve ocorrer após cumprimento de determinados requisitos e na sequência de um procedimento, pressupondo violações graves à lei e demais normas.
O que não aconteceu no caso em análise.
O artigo 11.º dos Estatutos estipula regras sobre a disciplina partidária, onde se estabelecem as sanções resultantes da violação das normas que regem a organização e funcionamento da FNLA. Todavia, a sua aplicação deve ser precedida do competente processo disciplinar, sob pena de invalidade da medida.
Enfim, não está excluída a possibilidade de o Presidente ser afastado das suas funções em caso de violações graves às normas constitucionais, legais e estatutárias.
Nestas situações, uma vez que o Tribunal Constitucional é o guardião da Constituição, deve, necessariamente, tomar uma medida com vista à sua protecção, exigindo-se, no caso, um juízo de ponderação entre valores, em que, circunstancialmente, um deve ceder relativamente diante do outro. No caso reportado, estaria em causa um conflito entre o princípio da supremacia da Constituição e o princípio da democracia interna dos partidos políticos.
O artigo 52.º dos Estatutos estabelece a possibilidade de cessação do mandato antes do seu término, nas seguintes situações: a) morte; b) doença grave; c) impugnação; d) invalidez; e) renúncia e expulsão. A impugnação, a expulsão e a invalidez reconduzem-se à destituição que, no entanto, deve ser feita em obediência a determinados pressupostos, que não foi o caso.
Os militantes anciãos não têm, à luz dos Estatutos do Partido, qualquer competência para afastar o Presidente da FNLA ou qualquer órgão.
Se tal fosse possível, deveria ser ao nível de um órgão estatutariamente consagrado, o que não aconteceu.
Ora, como se pode depreender, não há fundamentos para que este Tribunal destitua o Requerido das suas funções, pois, não se verificaram violações constitucionais ou legais, susceptíveis de pôr em causa a sua continuidade na presidência da FNLA.
Como resultado, o segundo pedido, pela sua ligação ao primeiro, não deve ser atendido. A suposta comissão iria substituir na gestão os órgãos de direcção do Partido. No entanto e como ficou claro, não haverá qualquer afastamento destes que continuarão a exercer os seus poderes.
As comissões em questão têm natureza extraordinária e são criadas para atender situações concretas. Havendo problemas com os órgãos de direcção do Partido, existem mecanismos internos para lidar com este tipo de situações, a exemplo do Vice-Presidente ou do Secretário Geral que podem, estatutariamente considerando a hipótese, presidir interinamente o Partido. De qualquer modo, a entidade que solicita a criação de uma comissão de gestão não tem competência, nem representatividade interna, para o efeito.
Pelo que não há fundamento para a aceitação do presente pedido.
Em conclusão, não se verifica no caso em apreço qualquer violação ao direito, que possa conduzir à destituição dos órgãos de gestão do Partido FNLA.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 19 de Dezembro de 2019.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dr. Guilhermina Prata (Vice-Presidente e Relatora)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dr.ª Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dr.ª Maria da Conceição Almeida Sango
Drª Maria de Fátima L.A. Baptista da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata