ACÓRDÃO N.º 596/2020
PROCESSO N.º 744-D/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do povo, acordam em conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Baptista Adão António, com os demais sinais de identificação nos autos, veio, junto do Tribunal Constitucional, interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 654/18-D.
Consta dos autos que no dia 8 de Setembro de 2017, o Recorrente recebeu de Maria Joel Mário Dala, a quantia monetária de kzs 2 200 000,00 (dois milhões e duzentos mil kwanzas), para a compra de moeda estrangeira.
No dia 12 de Setembro de 2017, o Recorrente recebeu também de Ana Sinclésia Manuel Quiteque, a quantia monetária de Kzs 3 600 000,00 (três milhões e seiscentos mil kwanzas), para aquisição de divisas.
No dia 17 de Setembro do mesmo ano, o Recorrente deu a conhecer a Maria Joel Mário Dala e a Ana Sinclésia Manuel Quiteque que tinha sido assaltado e as referidas quantias monetárias levadas pelos meliantes.
Sucede que o Recorrente não conseguiu provar que foi alvo de um assalto e nem sequer fez uma participação junto das autoridades policiais.
O Recorrente foi acusado, pronunciado e condenado em primeira instância a 8 (oito) anos de prisão maior, pelo crime de abuso de confiança, p.p. pelo artigo 453.º e pelo n.º 5 do artigo 421.º, ambos do Código Penal (CP).
O Ministério Público interpôs recurso da decisão por imperativo legal, nos termos do artigo 473.º § único e 647.º § 1.º do Código de Processo Penal (CPP), tendo requerido a reapreciação da decisão.
O Recorrente igualmente interpôs recurso da decisão.
O Tribunal Supremo alterou a pena, tendo condenado o Recorrente a 6 (seis) anos de prisão maior.
Insatisfeito com a decisão, o Recorrente vem junto desta instância, interpor o presente recurso com base nas seguintes alegações:
“… No acto de detenção não lhe foi apresentado o competente mandado de captura ou de detenção, não foi informado sobre as razões da sua detenção… conforme estabelece a alínea a) do artigo 63.º da Constituição da República de Angola (CRA);
Embora a detenção do Recorrente tenha sido efectuada em Luanda no dia 15 de Setembro de 2017, o mandado de captura apenas lhe foi entregue após a detenção, tempo necessário para que os agentes policiais elaborassem o competente mandado de captura;
Desde a detenção e apresentação do Recorrente ao Ministério Público, passaram-se mais de 10 dias…;
A posição da defesa não é discutir se o Recorrente cometeu ou não o crime sobre o qual foi condenado, o processo penal é um processo por excelência e pressupõe sempre a descoberta da verdade material, porém de modo processualmente válido e admissível num Estado democrático e de direito;
Não foram produzidas provas específicas, o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre os vários itens das alegações da defesa, como a instrução extremamente deficiente, a produção de prova em sede de audiência de julgamento que serviu de sustentação à condenação do Recorrente, desta forma violou o princípio da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva;
O tribunal com esta actuação violou os seguintes preceitos constitucionais previstos nos artigos 57.º, 60.º, 63.º e 67.º da CRA” (sic).
O Recorrente terminou as alegações pedindo que seja absolvido, por terem sido violados os princípios constitucionais da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais comuns que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Foi verificado o esgotamento de toda a cadeia recursória prevista para os tribunais comuns. Assim sendo, o Tribunal Constitucional é competente para conhecer o presente recurço
LEGITIMIDADE
O Recorrente é apelante no Processo n.º 654/18-D que deu lugar à decisão recorrida, pelo que tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade nos termos da alínea a) do artigo 50.º LPC, que dispõe: “têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto apreciar a constitucionalidade do Acórdão proferido pela 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 654/18-D.
V. APRECIANDO
O Recorrente vem impugnar o Acórdão do Tribunal Supremo sustentando nas suas alegações o seguinte: “a posição da defesa não é discutir se o Recorrente cometeu ou não o crime sobre qual foi condenado… mas fazer referência que, não foram produzidas provas específicas, o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre os vários itens das alegações da defesa, como a instrução extremamente deficiente, a produção de prova em sede de audiência de julgamento que serviu de sustentação a condenação do Recorrente…”.
Ainda em sede de alegações, fls. 211, o Recorrente reconhece que cometeu o crime pelo qual foi condenado, todavia, não concorda com a pena que lhe foi aplicada, uma vez que não foram observados alguns procedimentos aquando da sua detenção.
No entanto, vem o Recorrente pedir junto do Tribunal Constitucional a sua absolvição, por terem sido violados, o princípio da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva.
A questão que se coloca é a de saber se efectivamente o Acórdão do Tribunal Supremo, violou o princípio da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva como o Recorrente sustenta nas suas alegações.
Vejamos:
O Recorrente alega que, “no acto de detenção não lhe foi apresentado o competente mandado de captura… conforme estabelece a alínea a) do artigo 63.º da Constituição da República de Angola (CRA); embora a detenção do Recorrente tenha sido efectuada em Luanda no dia 15 de Setembro de 2017, o mandado de captura apenas lhe foi entregue após a detenção, tempo necessário para que os agentes da polícia elaborassem o competente mandado de captura”.
O Recorrente invoca ainda que, “o processo penal é um processo por excelência e pressupõe sempre a descoberta da verdade material, porém de modo processualmente válido e admissível num Estado Democrático e de direito”.
De facto, a tramitação do processo penal, tal como em qualquer outra, deve ter como primado a Constituição e a lei.
No entanto, no que concerne a alegada detenção, efectuada sem o competente mandado, importa sublinhar que tal procedimento constitui uma ilegalidade processual que oportunamente, poderia fundamentar o habeas corpus. Contudo, a ilegalidade da detenção não obsta a que o processo crime siga a sua tramitação normal e que tenha o competente desfecho, como se verificou no caso em análise.
Parafraseando a doutrina na perspectiva do professor Grandão Ramos, há que sublinhar que “Há actos cujos vícios contaminam os actos posteriores do processo e este na sua globalidade e, por via disso, prejudicam uma correcta decisão final. As nulidades do artigo 98.º do Código Processo Penal, de harmonia com o que se dispõe no respectivo § 1.º, anulam o acto em que se verificarem e os posteriormente praticados que elas possam afectar… A nulidade absoluta não pode ser sanada. Outras vezes não sucede assim, o vício ou defeito do acto não é irremediável, o acto pode ser aproveitado, não impede, no rigor dos factos, que se realizem os objectivos do processo, pode em determinadas circunstâncias ser sanado e convalidado. O vício pode ser sanado ou mediante ratificação do acto viciado ou por se reconhecer que é irrelevante e não prejudica ou afecta o fim do processo… está-se agora na presença de uma nulidade relativa.” Direito Processual Penal, Noções fundamentais, pág. 166.
Compulsados os autos, verifica-se que, os vícios, cometidos na fase inicial do processo (falta de apresentação do mandado de captura no acto de detenção), por se tratar de uma nulidade remediavél, foram sanados por despacho emitido pelo Meritíssimo Juiz de turno, vide fls. 48 dos autos, tendo ficado convalidado o acto praticado. In casu, a falta cometida reconduz-se a uma simples invalidade que foi sanada nos termos já referenciados.
No que respeita à ausência de mandatário durante os interrogatórios, não há dúvida de que se trataria de uma nulidade, cuja arguição deveria proceder no prazo de cinco dias posteriores a junção da procuração forense nos autos, conforme estabelece o § 5 do n.º 8 do artigo 98.º do CPP.
No caso vertente, a procuração foi junta aos autos no dia 07 de Novembro de 2017, ao passo que o vício foi arguido somente no dia 15 de Novembro de 2017, não tendo sido suscitado oportunamente, o vício ficou sanado e o acto praticado convalidou-se, produzindo os seus efeitos jurídicos.
A) Sobre a prova em que o tribunal alicerçou a condenação
O Recorrente alega que a decisão do Tribunal a quo não assentou em provas específicas, tendo-se baseado numa instrução deficiente e, como tal, não se observou o princípio da busca da verdade material.
Importa referir que o Recorrente impugnou o aresto do Tribunal Supremo, porém, a sua alegação incide sobre a decisão do Tribunal a quo. Nesta conformidade, é mister frisar que o objecto do recurso extraordinário de inconstitucionalidade é a decisão do Tribunal ad quem e não do Tribunal a quo.
Não obstante tratar-se de questão de conhecimento oficioso, decorre dos autos que o Tribunal ad quem estribou-se nas mesmas provas produzidas no Tribunal a quo, tendo por conseguinte o Tribunal Supremo alicerçado a sua decisão sobre as mesmas provas.
Neste contexto, o Tribunal ad quem julgou procedente a acção criminal contra o aqui Recorrente, baseando-se nas seguintes provas:
O comprovativo de transferência de fls. 15; comprovativo de depósito de pagamento de fls. 17, todos a favor do réu; o auto de interrogatório; a confissão do Réu em sede de audiência e julgamento, de fls. 127 dos autos.
Pelo exposto, verifica-se que a decisão do Tribunal Supremo não foi arbitrária, como sugere o Recorrente, pois a mesma assenta em provas concretas produzidas e constantes no processo.
Importa ainda referir que a valoração da prova foi feita pelo tribunal a quo e posteriormente validada pelo tribunal ad quem. Este só poderia alterar as mesmas se houvesse um erro evidente do texto da decisão recorrida na valoração da prova, sob pena de violar o princípio basilar da livre convicção do julgador e da imediação.
Deste modo não assiste razão ao Recorrente quando alega insuficiência de provas que serviram de fundamento para a decisão.
De salientar que não compete ao Tribunal Constitucional valorar a idoneidade dos meios de prova, que serviram de base para a formação da convicção do tribunal, mas apenas sindicar a fundamentação ou a objectividade da convicção formada.
A análise do Tribunal Constitucional cinge-se em apreciar a decisão recorrida pretensamente violadora de princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais.
O Tribunal Constitucional entende que o presente recurso não tem qualquer fundamentação constitucional e legal, pois, o Recorrente com intuito de sair impune, invoca vários artifícios, pretendendo deste modo transformar o tribunal em causa numa 3ª instância, o que não é admissível.
B) Sobre a violação dos princípios da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva
O princípio da legalidade funda-se na observância da Constituição e da lei.
Compulsados os autos, verifica-se que o Acórdão do Tribunal Supremo não violou nenhuma norma estabelecida na CRA e na lei, como o Recorrente invoca nas suas alegações.
O acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva tem como base fundamental a garantia de que todos os cidadãos tenham acesso ao Tribunal, à informação jurídica, ao patrocínio judiciário e a que a decisão da sua causa seja tomada em tempo razoável e útil.
De acordo com os autos, constata-se que o Recorrente interpôs recurso ordinário, sem que tenha tido qualquer empecilho ou constrangimento.
Neste sentido, o Tribunal Constitucional entende que não houve violação do princípio da legalidade e tutela jurisdicional efectiva, como o Recorrente enuncia nas suas alegações.
Assim sendo, o pedido formulado pelo Recorrente junto dessa instância, é infundado.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 03/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Luanda, aos 16 de Janeiro de 2020.
Os Juízes Conselheiros
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dr. Simão de Sousa Víctor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata