Loading…
Acórdãos > ACÓRDÃO 597/2020

Conteúdo

ACÓRDÃO N.º 597/2020

 

Processo N.º 710-B/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Lukeliano Patrício de Morais Diogo, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, do Acórdão da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo prolactado a 07 de Dezembro de 2018.

Admitido o Recurso e notificado para apresentar alegações em observância do disposto no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), conforme se vê a fls. 319 à 330 dos autos. Alega em síntese que:

  1. Foi indiciado, acusado e pronunciado pelo crime de homicídio voluntário simples, previsto e punível nos termos do artigo 349.º, do Código Penal (CP), o qual estabelece que “qualquer pessoa, que voluntariamente matar outra, será punida com prisão maior de dezasseis a vinte anos.” Ora, analisando as circunstâncias que rodearam os factos, se conclui que um dos elementos constitutivos do tipo criminal não está reunido para que a conduta do Réu fosse subsumida ao preceito legal em referência – vontade de matar.
  1. Daí que se tenha concluído que efectivamente a conduta do Réu, na pior das hipóteses, terá praticado o crime de ofensas corporais, pois a ofensa corporal cometida voluntariamente, mas sem intenção de matar, tendo contudo ocasionado a morte,  o que constitui um crime de homicídio  preterintencional, nos termos do § único do artigo 361.º do Código Penal (CP).
  1. O Tribunal a quo, convicto da prática de homicídio voluntário pelo Réu, socorreu-se do n.º 1 do artigo 94.º do CP, atenuação extraordinária da pena, para aplicar uma pena efectiva de 8 anos e seis meses de prisão maior.
  1. Em instância recursória, o plenário do Tribunal Supremo agravou a pena para 14 anos de prisão maior, tendo como fundamento o parecer do Ministério Público naquela instância, inobservando a obrigatoriedade de notificar o Recorrente a fim de este contra alegar, exercendo assim seu direito ao contraditório e ampla defesa.
  1. Com isto, tal situação arrepiou os mais lídimos direitos constitucionalmente consagrados do Recorrente.

Terminou pedindo inteiro provimento ao presente recurso e, por via dele, que se revogue o acórdão recorrido por estar desconforme com a Constituição, designadamente, por violação dos seguintes princípios e direitos constitucionais:

i) princípio da legalidade, conforme artigo 6.º da Constituição da República de Angola (CRA).

ii)princípio do contraditório, previsto na alínea d) do n.º 2 do artigo 174.º e no n.º1 do artigo 67.º;

iii)princípio da igualdade diante de um Tribunal no Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, (PIDCP) nos termos do artigo 14.º;

iv) direito a julgamento justo e conforme, a luz do artigo 72.º da CRA e 7.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (CADHP);

v) acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, nos termos do artigo 29.º da CRA;

vi) violação do princípio da proibição da reformatio in pejus,  conforme se vê no artigo 667.º do CPP.

O processo foi a vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do artigo 49.° da LPC, é competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos. Esta faculdade está igualmente prevista na alínea m), do artigo 16.° da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. A decisão proferida pelo Tribunal Supremo esgotou a cadeia recursória em sede da jurisdição comum.

III. LEGITIMIDADE   

O Recorrente tem legitimidade para interpôr o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC por ser parte vencida no Processo n.º 1911/18, que correu seus trâmites na 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo. Tem direito a contradizer, segundo dispõe o n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional por força do artigo 2.º da LPC.

IV. OBJECTO

O objecto do presente Recurso é saber se o Acórdão da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo proferido no processo n.º 1911/18, datado de 07 de Dezembro de 2018, terá alegadamente incorrido em inconstitucionalidade, violando os direitos fundamentais do Recorrente, a saber: princípio da legalidade, princípio do contraditório, princípio da igualdade diante de um Tribunal à luz do PIDCP,  direito a julgamento justo e conforme à luz da CADHP, acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e violação da proibição da  reformatio in pejus

V. APRECIANDO

A) Princípio da legalidade

Desde logo a CRA consagra no n.º 1 do artigo 2.º que, a “República de Angola é um Estado Democrático  de Direito que tem como fundamentos a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de organização política e a democracia representativa e participativa”. Este primado da Constituição e da lei, traduz-se tão somente na ideia segundo a qual, todos os poderes evocados pela CRA no seu artigo 105.º devem, no exercício da sua actividade, observar a Constituição e a lei.

O constituinte autonomiza a consagração do princípio da legalidade no n.º 2 do artigo 6.º, “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”. Ora, a exegese permitida aqui à luz do rigor hermenêutico resulta do facto de que um Estado democrático e de direito como tal, funda o seu modus operandi na Constituição e na lei. São estas bússolas orientadoras de toda a acção dos entes dotados de poderes públicos e até mesmo dos entes privados.

O Estado de direito não se compadece  com arbitrariedades. É o respeito pelo cumprimento dos comandos normativos que lhe permite designar-se  um  Estado de direito. Ora, o Recorrente alega, a fls. 319 à 330 dos autos, que o Acórdão recorrido violou o princípio da legalidade na medida em que agravou a pena com fundamento no parecer do Ministério Público, a fls. 282 a 283 dos autos, e não se dignou em notificar o Recorrente, a fim de sobre o mesmo reagir tempestivamente.

Tal facto, contraria o espírito da Constituição no n.º2 do artigo 6.º, bem como do CPP. Na verdade, há uma violação flagrante do princípio da legalidade.

B) Princípio do contraditório

A doutrina enuncia que o princípio do contraditório é um corolário do devido processo legal, ora, há aqui uma relação nítida com o princípio da legalidade. O princípio do contraditório, tão importante quanto o anterior, resume-se na faculdade que todo ente, que vier a ser acusado, tem direito de usar todos os meios cabíveis em direito para se defender junto das instâncias de justiça.

O princípio do contraditório tem dignidade constitucional, nos termos do n.º 2 do artigo 174.º da Constituição, “No exercício da sua função jurisdicional, compete aos Tribunais dirimir conflitos de interesse público ou privado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os princípios do acusatório e do contraditório e reprimir as violações da legalidade democrática.

O Recorrente alega que a violação ao princípio do contraditório, constata-se no facto de não ter havido a devida notificação ao Recorrente, do parecer que ditou o agravamento da pena. Não se verifica nos autos justificação alguma da não notificação do pedido de agravamento da pena ao Recorrente, tendo isso configurado violação do aludido princípio do contraditório, quando o CPP ordena a notificação conforme estabelece o  n.º2 do § 1º  artigo 667.º do CPP.

O dever de notificação entende-se como sendo a comunicação que o Tribunal estabelece com as partes envolvidas no processo, a fim de permitir a estas conhecerem os despachos ou outros actos processuais recaídos sobre a questão litigante. É uma garantia assistida às partes com a finalidade de permitir em tempo útil dizer o que lhes assiste sobre a questão controvertida.

O cumprimento da norma sobredita serve para permitir que as partes no seu direito à ampla defesa, venham mediante o prazo estabelecido a esta reagir tempestivamente. Compulsados os autos não se verifica cumprimento do dever de notificação do acto praticado pelo representante do Ministério Público, de fls. 282 e 283, que permitiria aos Recorrentes esgotar todos os argumentos e fundamentos em sua defesa.

O princípio da ampla defesa é uma garantia das partes dos processos que assegura a sua defesa, onde poderá fazer uso de todos os elementos possíveis para sustentar a sua defesa fazendo uso de seu mandatário, por isso mesmo, pode-se concluir que tal não decorre de mera paixão do aplicador. O dever de notificação é um imperativo legal, não resulta da boa vontade do julgador.

Nos termos da lei, o Ministério Público emite vistos, obrigatoriedade que decorre igualmente da lei. In casu a lei refere que, se o visto for desfavorável ao Recorrente, ele tem de conhecer para dele defender-se exercendo assim, o seu direito de defesa. O Tribunal tem o dever legal de informar o Recorrente sobre o andamento do processo e isto implica factos posteriores a interposição de recurso. Naturalmente, o acto de informar, aqui no caso em concreto, é por via da notificação.

Ademais, o princípio do contraditório é uma garantia que assiste ao cidadão, actua com a finalidade principal de não ser surpreendido, todo facto produzido posterior à interposição de recurso, deve ser permitida a parte dele conhecer e oferecer os argumentos de razão que lhe aprouver em sua defesa, no exercício do princípio do contraditório, de modo a fazer cumprir a regra de igualdade de armas entre as partes.

 Não tendo sido este o entendimento do Acórdão recorrido, é mister pontuar aqui, que nos termos em que se apresenta, tal violou o princípio do contraditório, pelas percepções acima afloradas, nos termos dos artigos 67.º e n.º 2 do 174.º da Constituição.

C) Princípio da igualdade diante de um Tribunal no Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos

Por força do princípio da cláusula aberta ao abrigo do artigo 26.º da CRA, realça-se aqui o n.º 1 “Os direitos fundamentais estabelecidos na presente Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e regras aplicáveis de direito internacional”, conforme sustenta  (JÓNATAS MACHADO; EDUARDO NOGUEIRA E ESTEVES HILÁRIO, Direito Constitucional Angolano, 2017, pág. 155). No sobredito princípio enunciado pelo Recorrente, estabelece no seu n.º 3 que, quando o litígio versar sobre os direitos fundamentais, aplicam-se não só a Constituição como também o Direito Internacional, desde que esteja de harmonia com espírito e letra da Constituição.

Assim, nesta ordem de ideias, alega o Recorrente a violação do princípio da igualdade a que se refere o § 1.º do artigo 14.º do PIDCP, nos seguintes termos:

Todas as pessoas são iguais perante os Tribunais e as Cortes de Justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de carácter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil”.

O Recorrente alega violação deste princípio pois, foi prejudicado e privado de exercer o seu direito de defesa, pela não notificação  do pedido da agravação da pena pelo Representante do Ministério Público junto do Tribunal Supremo.

O princípio da igualdade perante o Tribunal, resulta do entendimento de que a lei deve ser igual para todos. Em concreto, a questão provocada pela agravação da pena com base no parecer constante nos autos pelo Ministério Público, beliscou a essência do princípio da igualdade.

Nestes termos, não se vislumbra no acórdão recorrido, uma decisão justa e equitativa, pois, não foi observado o princípio da igualdade de armas.

D) Direito a julgamento justo e conforme à luz da CADHP

A CADHP é outro documento normativo de promoção, defesa e direitos do homem e dos povos, da qual Angola é parte integrante e que, por força do princípio da cláusula aberta disposto no artigo 26.º da Constituição, conhece aplicabilidade no ordenamento jurídico angolano. Este princípio da cláusula aberta, permite a entrada de normas que, embora não sejam formalmente constitucionais, são materialmente constitucionais.  É nesta lógica que o Recorrente alega violação do artigo 7.º da CADHP.

Refere o artigo 7.º, que, 1.Toda pessoa tem o direito a que sua causa seja apreciada. Esse direito compreende: a) o direito de recorrer aos tribunais nacionais competentes contra qualquer ato que viole os direitos fundamentais que lhe são reconhecidos e garantidos pelas convenções, leis, regulamentos e costumes em vigor;

Independentemente das circunstâncias que o caso conheça, toda a pessoa tem direito a ver a sua questão apreciada, em observância ao disposto na lei. A qualificação de um processo justo, legal e adequado, conforme sublinha (GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, pág. 494), deve conter os mais elementares princípios de justiça. O julgamento justo e conforme tem de obedecer à lei. Esta compreensão resulta do princípio da legalidade.

E) Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva

O acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, evocada pelo Recorrente, é imperioso sinalizar que, neste artigo 29.º da CRA, o constituinte discorre sobre muitos outros direitos que se impõe autonomizar a discussão, no que ao Recorrente diz respeito. Deixou-se de observar o disposto no n.º 4 da sobredita norma, no que tange à equitatividade do processo, pois, claramente, não foi o processo equânime pois, não se permitiu o exercício do contraditório.

A Constituição ao consagrar a tutela jurisdicional efectiva, defende o acesso facilitado de todos aos Tribunais, celeridade e decisão em tempo útil, igualdade das partes no tratamento das questões a serem apreciadas, sem olvidar a observância de todo o processo assente nos demais actos legislativos em torno dele. Este espírito hermenêutico depreende-se do artigo 29.º da Constituição.

A ratio decidendi, não pode, pura e simplesmente, incidir tão-somente sobre o acesso ao direito, em que a matéria controvertida foi apreciada, mas, deve ater-se também ao facto de a decisão, quer seja ou não favorável ao Recorrente, in casu, dever  ser fundada no direito, observando os pressupostos legalmente previstos. Assim, temos de acentuar mais uma vez, que neste diapasão, não se pode subscrever a real tutela jurisdicional efectiva, pela ausência da notificação ao Recorrente, para deduzir oposição.

F) Violação do princípio da proibição da “reformatio in pejus”

 A doutrina sustenta que, “A proibição da chamada reformatio in pejus constitui um princípio que enforma todo o processo penal, que se traduz na proibição de reforma da sentença para pior, no sentido de, em recurso, a pena aplicada ao arguido não poder ser agravada” (PRATA, Ana. Dicionário Jurídico, 2ª Edição p. 441).

O princípio da proibição da “reformatio in pejus” traduz a regra limitadora da acção do julgador em sede de recurso, na medida em que impõe a este o dever de não modificar ou alterar a pena quando o recurso tiver sido  interposto no interesse exclusivo do Réu. Dito de outro modo, impõe ao julgador o dever de não agravar a pena. No entanto, in casu, o recurso foi igualmente impetrado pelo Representante do Ministério Público, nos termos do § único do artigo 473.º e n.º 1 § do artigo 647.º do CPP,  conforme se alude nos autos a fls. 248.

Ora, tendo o recurso sido interposto quer pelo Réu como pelo Ministério Público, sem que o recurso deste tenha sido no exclusivo interesse da defesa, o Tribunal ad quem tem competência para proceder a uma ampla reapreciação da causa, não estando, pois, limitado pelo princípio da proibição da reformatio in pejus.

A decisão da agravação da pena do Tribunal Supremo não se fundamentou no visto do Ministério Público mas na qualificação diversa dos factos.

No entanto, verificando-se que o Ministério Público junto do Tribunal ad quem solicitou a agravação da pena, deveria ter sido notificada a contra parte para o exercício do contraditório (não com fundamento no n.º 2 do § 1.º do artigo 667.º do CPP, por não se verificar uma excepção ao principio da reformatio in pejus mas com fundamento no n.º 2 do artigo 174.º da CRA).

Contudo, não tendo sido este o entendimento do acórdão recorrido, o Tribunal Constitucional considera que deve ser dado provimento ao recurso, nos termos da Constituição e da lei.

Nesta conformidade devem os autos ser devolvidos ao Tribunal Supremo nos termos do n.º 2 do artigo 47.º da LPC, “Se o Tribunal Constitucional der provimento ao recurso, ainda que só parcialmente, os autos baixam ao Tribunal de onde provieram, a fim de que este reforme a decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade”.

DECIDINDO                           

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em: 

Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de Junho, Lei do Processo Constitucional).                                                      

Notifique.

                                                         

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 16 de Janeiro de 2020.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel Dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata