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ACÓRDÃO N.º598/2020

PROCESSO N.º 623-A/2018

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

João da Silva Cardoso Júnior, melhor identificado nos autos, veio, nos termos do disposto na alínea a) e § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, proferido a 15 de Dezembro de 2016, no âmbito do Processo n.º 2288/16, que julgou deserto o seu recurso de apelação e, em consequência, extinguiu a instância, por falta de pagamento de preparo inicial.

O Recorrente fundamenta o seu recurso alegando, essencialmente, o seguinte:

  1. No dia 28/07/16, Domingos David, trabalhador do escritório de advogados, recebeu do Tribunal Supremo a notificação para proceder ao pagamento do preparo inicial, acrescido da respectiva multa, conforme dispõe o artigo 137.º do Código das Custas Judiciais (CCJ).
  2. Porém, aquele trabalhador não efectuou o pagamento nem deu a conhecer deste facto aos demais colegas de serviço, infringindo os seus deveres laborais.
  3. Em consequência disto, o Tribunal Supremo julgou deserto o recurso de apelação e extinguiu a instância, conforme 184 dos autos.
  4. Ora, o preparo inicial constitui a primeira prestação a pagar antecipadamente pelo Autor ou Réu em virtude de este ter solicitado a prestação do serviço da justiça pública.
  5. Tal preparo pode ser pago em momento posterior, isto é, ao final da tramitação processual.
  6. Além disso, o Autor deve pagar tal prestação, acrescida de outros encargos, se recorrer para outro tribunal superior.
  7. No presente caso, o Recorrente já liquidou as custas devidas ao Tribunal Supremo, por este motivo, o processo transitou para o Tribunal Constitucional.
  8. O Código das Custas Judiciais foi aprovado pelo Decreto n.º 43809, de 20 de Julho de 1961, isto é, data do período antes da independência de Angola.
  9. O Estado angolano obrigou-se a providenciar condições para que a justiça não fosse denegada por insuficiência de meios financeiros, com base no artigo 28.º e no n.º 2 do artigo 36.º da Lei Constitucional de 1991.
  10. Tal obrigação ganhou nova roupagem, uma vez que o artigo 29.º da Constituição de 2010 consagra o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva como princípio fundamental, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência ou falta de pagamento de preparo inicial.
  11. Os Professores Raul Araújo e Elisa Rangel, em Constituição da República de Angola – Anotada, Tomo I, 2014, pág. 275, ensinam que “a eficácia das decisões judiciais pressupõe que haja uma apreciação dos processos de forma a que se assegure a defesa das partes de forma equitativa e as sentenças ou acórdãos sejam proferidos em tempo útil, pois, de outra forma, estaremos perante uma «denegação de justiça»”.
  12. Portanto, todo o cidadão pode recorrer à justiça, fazendo reconhecer em juízo o seu direito ou realizá-lo coercivamente, sem prejuízo de requerer as providências necessárias para proteger o efeito útil da respectiva acção, nos termos do artigo 2.º do Código de Processo Civil (CPC), conjugado com artigo 72.º da Constituição da República de Angola (CRA).

O Recorrente termina, pedindo que este Tribunal julgue procedente o presente recurso e declare a inconstitucionalidade do teor do n.º 1 do artigo 292.º do CPC, do § 1.º do artigo 134.º do CCJ, por violarem o artigo 116.º, o ponto 5 do artigo 102.º e o artigo 110.º, todos do CCJ, bem como os artigos 1.º e 2.º do CPC e os artigos 6.º, 29.º e 72.º, todos da CRA.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com fundamento na alínea a) e no § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).

Trata-se de uma decisão que põe termo ao processo e, nessa medida, este Tribunal é competente para conhecer o presente recurso, nos termos do artigo 53.º da LPC.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é Apelante no Processo n.º 2288/16, que correu os seus termos na Primeira Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo o que dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aqui aplicável por força do artigo 2.º da LPC.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto analisar se a decisão vertida no acórdão proferido pela Primeira Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 2288/16, viola ou não direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na CRA.

V. APRECIANDO

Os autos de fls. 218 contêm as conclusões do Recorrente, cujo pedido circunscreve-se à declaração de inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 292.º do CPC, do § 1.º do artigo 134.º do CCJ, por alegada violação do artigo 116.º, do ponto 5 do artigo 102.º, do artigo 110.º, todos do CCJ, assim como dos artigos 1.º e 2.º do CPC e dos artigos 6.º, 29.º e 72.º da CRA.

Ora, o supracitado pedido tem características das conclusões de um recurso ordinário de inconstitucionalidade, que visa julgar a constitucionalidade de determinadas normas e fazer da decisão caso julgado no processo em que a questão tenha sido suscitada, conforme faz ciência o disposto no n.º 2 do artigo 36.º e no n.º 1 do artigo 47.º, ambos da LPC. 

O Recorrente deveria apenas indicar os direitos e os princípios fundamentais violados, requerendo, por conseguinte, a declaração de inconstitucionalidade do acórdão recorrido.      

Por estar patente nas alegações, de fls. 216 a 218, que a pretensão do Recorrente é a apreciação do aresto do Tribunal ad quem, que sustentou a sua decisão em normas alegadamente inconstitucionais, este Tribunal considera, única e simplesmente, ser justo verificar se o acórdão recorrido colocou ou não em causa os direitos à tutela jurisdicional efectiva e ao julgamento justo e conforme.

  • Sobre a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva e ao julgamento justo

Na sequência da acção de reconhecimento de união de facto por ruptura e atribuição da residência familiar, interposta por Olga Carlos dos Santos, e que correu termos na 2.ª Secção da Sala de Família do Tribunal Provincial de Luanda, com o n.º 536/10-A, esse tribunal deu provimento ao pedido, atribuindo a residência familiar à Autora.

Inconformado, o Recorrente interpôs recurso de apelação para o Tribunal ad quem, que, a 15 de Dezembro de 2016, por falta de pagamento de preparo inicial, julgou deserto o recurso e, em consequência, declarou extinta a instância do Processo n.º 2288/16.

Assim, o presente recurso resulta do facto de o Recorrente não se ter conformado com a decisão do Tribunal ad quem, que fundamentou a sua decisão com base no n.º 1 do artigo 292.º do CPC e no § 1.º do artigo 134.º do CCJ. 

Como bem estabelecem a Constituição e as leis, o recurso é um meio de impugnação das decisões judiciais, mediante o qual a parte ou quem esteja legitimado a intervir no processo requer o reexame da decisão judicial junto de uma instância superior, podendo esta reformar, alterar ou manter a decisão recorrida.

Por assim dizer, o recurso é um direito consagrado quer na Constituição quer em leis adjectivas, à luz do artigo 67.º da CRA e do artigo 676.º do CPC.

Entretanto, os recursos encontram-se sujeitos a uma série de normativos que regulam a sua tramitação, ou seja, estão sujeitos a regras e prazos para que possam atingir a sua finalidade.

As regras e prazos são aplicáveis de maneira uniforme às partes, em homenagem aos princípios da igualdade e da boa administração da justiça; caso não haja o cumprimento disso, uma das consequências é aquela tipificada no artigo 292.º, do CPC, sobre deserção dos recursos por falta de preparo.

Com essa exigência, o Direito Público pretende proporcionar aos interessados os meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e, sobretudo, o direito a processo equitativo, cujas regras não podem ser simplesmente ignoradas por uma das partes, sob pena de violação dos princípios da igualdade, legalidade e segurança jurídica.

É mister considerar que a qualidade da tramitação dos recursos pressupõe o dever de os Tribunais notificarem a pessoa do mandatário para a prática de algum acto, particularmente quando o procedimento requerido pelo órgão judiciário obedece a prazos que, não sendo respeitados, extinguem direitos em causa.

No caso presente, é notório que o Tribunal recorrido, a fls. 166, notificou o mandatário judicial do Recorrente, através do escritório de advogados, com garantia de que este tenha tomado conhecimento, bem como a parte mais interessada no bom andamento do processo, nomeadamente o Recorrente.

Não obstante ter sido o Recorrente notificado através do seu mandatário, este não procedeu ao pagamento de preparo inicial, o que resultou na declaração da deserção do recurso pelo Tribunal recorrido.

Assim, a questão de fundo da lide não chegou a ser apreciada pelo Tribunal ad quem. Deste modo, a causa de pedir do presente recurso conduz a que o Tribunal Constitucional deva apreciar a colisão entre o dever de o Recorrente respeitar o formalismo temporal de pagamento de preparo e a garantia do princípio da tutela jurisdicional efectiva ser salvaguardado.

Na verdade, o que importa é a protecção do direito ao recurso, ou seja, a reanálise da questão de fundo do seu processo por um tribunal superior.

Em casos similares, os presentes autos devem baixar ao Tribunal ad quem, para que possa conhecer do fundo da questão do recurso, sem prejuízo de o Recorrente proceder ao pagamento final das custas devidas.

Portanto, a norma do n.º 1 do artigo 292.º do CPC esta em clara contradição com o espírito e a letra da Constituição, quanto aos direitos fundamentais de acesso à justiça e a tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme.  

O Recorrente tem o direito de ver apreciado, pela segunda instância, o litígio sobre a residência supostamente pertencente ao casal desavindo e as obrigações definitivas que possam decorrer da procedência da acção especial de reconhecimento da união de facto por ruptura.

Assim, entende este Tribunal que o acórdão recorrido está ferido de inconstitucionalidade, porque, ao julgar deserto o recurso, violou os direitos fundamentais de acesso a justiça, tutela jurisdicional efectiva, e do julgamento justo e conforme, como decorre dos artigos 29.º e 72.º, ambos da CRA.

Nestes termos

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:  

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, a 18 de Fevereiro de 2020.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) ­

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães (Relator) 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Maria Fátima da Silva 

Dr. Simão de Sousa Victor