ACÓRDÃO N.º 599/2020
PROCESSO N.º 642-D/2018
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Khyber Internacional, Lda., melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, proferido no Processo n.º 19/2015, que indeferiu a acção recursória de reclamação, mantendo a decisão de improcedência da providência cautelar de restituição provisória de posse, proferida nos autos processuais do n.º 1332/2013.
A Recorrente apresentou a este Tribunal as seguintes alegações de recurso:
A Recorrente solicita, em síntese, que este Tribunal dê provimento ao presente recurso e declare a inconstitucionalidade do Acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente reclamou da sentença do Tribunal ad quem que julgou improcedente a providência cautelar de restituição provisória de posse do prédio rústico, nos autos do Processo n.º 1332/2013.
Com a interposição do recurso de reclamação, a Recorrente viu inalterada a decisão que lhe negou a procedência da restituição provisória de posse.
Resulta, assim, evidente que a Recorrente tem interesse directo em demandar, pelo que goza de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, com base na alínea a) do artigo 50.º da LPC e no n.º 1 do artigo 26.º do CPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto verificar se o Acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 19/2015, violou ou não princípios e direitos protegidos pela Constituição.
V. APRECIANDO
Nas alegações do presente recurso, a fls. 252, a Recorrente fundamentou a sua defesa com referência a factos e enunciou um conjunto de disposições legais que considera terem sido violados pelo Tribunal ad quem, sem, no entanto, apresentar uma ordeira relação de direitos e princípios fundamentais subjacentes a cada norma constitucional que enumerou.
Para todos os efeitos, considera-se que as normas indicadas pela Recorrente têm que ver, como denota parte do conteúdo das alegações, com a violação de direitos e princípios da legalidade, celeridade processual, tutela jurisdicional efectiva, respeito e protecção da propriedade, independência e imparcialidade dos Tribunais, observância da Constituição, previstos no n.º 2 do artigo 6.º, n.º 5 do artigo 29.º, n.º 2 do artigo 37.º, artigo 175.º, n.º 1 do artigo 177.º e do artigo 226.º, todos da CRA.
Em face disso, importa delimitar o âmbito de análise que este Tribunal se obriga a materializar, na medida em que parte dos direitos e princípios elencados pela Recorrente como tendo sido violados, constituem corolários dos demais, como ocorre, por exemplo, com o princípio da legalidade, que é corolário do princípio da observância da Lei Magna.
Assim, vejamos:
a) Sobre a violação do princípio da legalidade
A Requerente considera que a violação do princípio da legalidade verificou-se porque o Tribunal Supremo usou um ilógico argumento da falta de proporcionalidade ou adequação para analisar a decisão tomada pela primeira Instância, determinando, por fim, a improcedência da providência cautelar ora admitida.
A fundamentação da Recorrente, apresentada para sustentar a existência de violação do princípio da legalidade, não se encaixa na compreensão dos actos violadores do referido princípio.
Desde já, os autos denotam que o Tribunal ad quem estruturou a sua decisão com base na apreciação da existência ou não de pressupostos legais (posse, esbulho e violência) da providência cautelar, atacando, precisamente, a problemática da posse, julgada impossível de se verificar devido à presença de estabelecimento comercial no espaço térreo em litígio.
Claro está que a manifesta inconformidade da Recorrente com a decisão recorrida é sustentada pela alegada desconformidade do acórdão com a Constituição, por o Tribunal ad quem ter, supostamente, conhecido de factos novos.
Porém, os autos de fls. 30 e 31, sobre o processo que correu termos na primeira Instância, denotam que a informação sobre estruturas comerciais existentes no terreno não é nova, pelo que, por imperativos legais, nada demonstra que o Tribunal ad quem não devesse pronunciar-se sobre eles.
Caso o Tribunal tivesse conhecido factos novos, desde que não fossem questões que não pudesse, em nenhuma circunstância, tomar conhecimento delas, não seria de admitir que se estivesse perante uma violação do princípio da legalidade, que seria posto em causa apenas se a decisão tivesse prescindido de fundamentação baseada em lei vigente.
Neste caso, para efeitos de respeito do princípio da conformidade da decisão judiciária com a Constituição e a lei, não importa o critério da proporcionalidade ou adequação usado na fundamentação legal adoptada.
É certo que tomar uma decisão judiciária, alinhada com a Constituição e a lei, é um imperativo legal a que todos os órgãos do poder judicial estão sujeitos, sob pena de nulidade da sentença, nos termos do artigo 668.º do CPC.
Contudo, uma sentença é nula por desconformidade com a Constituição quando o acto impugnado viola clara e objectivamente direitos, liberdades, princípios e garantias fundamentais de particulares.
A verificação da posse e de outros requisitos da providência cautelar não representa uma decisão incorporada no leque de possíveis actos desconformes com a Constituição, por se tratar de um exercício normal dos tribunais na formação da sua decisão, não sendo, por isso, procedente a alegação de que houve a violação do disposto no n.º 2 do artigo 6.º e do artigo 226.º, ambos da CRA.
b) Sobre a violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva e da protecção da propriedade
A Recorrente alega que a falta de celeridade na decisão violou o princípio da tutela jurisdicional efectiva, sobretudo porque, com o passar do tempo, foram feitas obras no terreno e, em consequência, o Tribunal ad quem conheceu delas para julgar improcedente a providência cautelar no recurso de agravo.
A Constituição prescreve no n.º 5 do artigo 29.ºque “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.
Ora, a decisão do Tribunal a quo, que julgou procedente a acção cautelar de restituição provisória de posse, foi proferida em Janeiro de 2011 e, seis anos depois, os acórdãos da segunda instância, que apreciaram o recurso de agravo e a reclamação, foram proferidos entre Outubro de 2015 e Setembro de 2016.
Diante desta constatação, seria de concluir que o procedimento judicial ficou ferido de morosidade. No entanto, pela matéria dos factos, subsumíveis ao direito aplicado ao caso sub judice, é possível verificar que o tempo processual não afectou o direito da Recorrente à tutela jurisdicional efectiva.
Ao alegar que o Tribunal recorrido devia ser mais célere no julgamento da causa, para evitar a valoração das obras feitas ao longo do período em que a lide aguardava por uma decisão, a Recorrente desconsidera os factos constantes dos autos de existência de infraestruturas comerciais no terreno, antes da interposição do recurso que foi apreciado pela segunda instância.
Seria admissível a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva se, pelo decurso do tempo para efeitos de julgamento da relação material controvertida, tivessem surgido factos novos condicionantes de uma decisão a favor da Recorrente, o que não aconteceu.
Portanto, é improcedente a alegação de violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, nos termos do n.º 5 do artigo 29.º da CRA
A Recorrente alega, ainda, a violação do direito à propriedade, protegido no n.º 2 do artigo 37.º da CRA, nos seguintes termos: “O Estado respeita e protege a propriedade e demais direitos reais das pessoas singulares (…)”.
Ora, a restituição provisória de posse que a Recorrente reclama é uma providência cautelar, que depende de uma acção possessória, visando tão-somente permitir ao possuidor do bem a recuperação provisória da posse, não se tratando, ainda, mutatis mutandis, dum direito de propriedade.
Portanto, no caso da providência cautelar, não é apreciada a matéria da propriedade como tal, e o direito de intentar a acção de reivindicação dela é, em princípio, imprescritível. Por isso, não assiste razão à Recorrente quando considera que o seu direito à propriedade não foi respeitado.
Assim, entende este Tribunal que o acórdão recorrido não padece de vícios de inconstitucionalidade, porque não foram violados os direitos e princípios da legalidade, tutela jurisdicional efectiva e respeito pela propriedade, consagrados no n.º 2 do artigo 6.º, n.º 5 do artigo 29.º, n.º 2 do artigo 37.º, artigo 175.º, n.º 1 do artigo 177.º e artigo 226.º, todos da CRA.
Nestes termos
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, a 18 de Fevereiro de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel M. da Costa Aragão (Presidente)
Dr.ª Guilhermina Prata (Vice-Presidente) declarou-se impedida.
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria Fátima da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor