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ACÓRDÃO N.º 600/2020

 

PROCESSO N.º 637-C/2018

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO 

José Funete, Eduardo Bento e outros, melhor identificado nos autos, vieram ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, a 12 de Setembro de 2017, no Processo n.º 14783/17, que os condenou, pela prática de crime de peculato, nas penas de seis (6) e de quatro (4) anos de prisão maior e na indemnização ao Estado na fase da execução da sentença.

Inconformados com esta decisão, os Recorrentes apresentaram as seguintes alegações:

  1. O douto acórdão recorrido contraria o imperativo constitucional dos princípios do contraditório, previsto no n.º 2 do artigo 174.º, da celeridade, legalidade e proporcionalidade, consagrados nas disposições dos nºs 4 e 5 do artigo 29.º e do artigo 72.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA).
  2. O Tribunal recorrido violou o processo estruturado segundo o princípio do acusatório, ficando subentendido a existência de inquisitório, em que o réu não tem nenhum direito de defesa e o Estado é o senhor absoluto do processo.
  3. O artigo 23.º (princípio da igualdade) da Lei Fundamental defende que, em todas as situações e, sobretudo, no processo judicial, todos tenham as mesmas oportunidades de defesa.
  4. Assim, o princípio da igualdade encontra-se em todos os domínios relevantes dos direitos previstos na Constituição e contém, simultaneamente, uma ideia de direitos e deveres do cidadão para com o Estado, traduzida na necessidade de o poder justificar todas as intervenções e de garantir aos cidadãos o direito de defesa.
  5. O acórdão recorrido não respeitou o direito de defesa, previsto no n.º 1 do artigo 67.º da CRA, uma vez que o Tribunal Supremo não notificou os Réus das alegações do Ministério Público sobre o agravamento da pena, para que pudessem lançar mãos à sua defesa, pelo que houve violação grave do princípio do contraditório.       
  6. A decisão recorrida viola o princípio do contraditório, pois ao não lhes ter sido dada a oportunidade de oferecer as razões de facto e de direito, que podiam influenciar a seu favor a decisão final, foi negada aos Recorrentes a participação directa e activa no processo.
  7. Em Direito Penal, o princípio da legalidade exige a observância do que a lei tipifica como crime (artigos 1.º e 5.º do Código Penal – CP), agente criminoso (artigos 19.º a 23.º do CP), procedimento processual e causas do facto e de exclusão da culpa (artigos 44.º e ss do CP).
  8. Analisados os artigos acima citados, conclui-se que a pena que o Tribunal Supremo aplicou é injusta, porque não reflecte a atenuação extraordinária e viola o princípio da legalidade da prova.
  9. A decisão tomada no acórdão revela que houve incerteza jurídica por parte do Tribunal ad quem ao referir que “(…) não se determinou com clareza solar o quantum de valores se apropriaram os Réus (…)”. Como pode um tribunal condenar alguém estando este em dúvida?
  10. Dispõe a alínea a) do artigo 44.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC) que a interposição do recurso tem efeito suspensivo. Assim, a privação da liberdade dos Recorrentes viola o artigo 36.º (direito à liberdade física e à segurança pessoal) da CRA.
  11. Sobre a violação do princípio da não auto-incriminação, o facto de, em sede de inquérito dos Serviços de Inspecção de Finanças, ter sido aventado haver descaminho de dinheiro e, por causa deste processo, alguns dos inquiridos terem efectuado depósitos como forma de restituição de valores, não pode ser considerado, por si só, prova penal em desfavor dos Réus.
  12. O Tribunal Supremo nunca se devia referir aos elementos documentais dos autos e que são provenientes da Inspecção das Finanças, porque estes elementos deviam ser sindicados pelo Ministério Público, que dirige a investigação e a instrução processual, confrontando os Réus para alegarem em sua defesa.
  13. A 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo violou o princípio da legalidade ao ter deixado de observar as exigências da lei sobre a prova, o tipo de crime, o agente criminoso, a responsabilização e desresponsabilização (amnistia) criminal.

Os Recorrentes solicitam, em síntese, que este Tribunal dê provimento ao presente recurso e declare a inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC.

III. LEGITIMIDADE

Os Recorrentes foram condenados pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo nas penas de seis (6) e de quatro (4) anos de prisão maior e a indemnizarem o Estado pelos prejuízos causados ao praticarem o crime de peculato.  

Resulta, assim, evidente que os Recorrentes têm interesse directo em demandar, pelo que gozam de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, com base na alínea a) do artigo 50.º da LPC e no n.º 1 do artigo 26.º do CPC. 

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto verificar se o acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 14783/2017, violou ou não os princípios constitucionais da legalidade, da igualdade, do contraditório, do julgamento justo e da não auto-incriminação.

V. APRECIANDO

Os Recorrentes José Funete, Eduardo Bento, José Cacela e Tiago Manjola vieram interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, sustentando que o acórdão recorrido violou os princípios do contraditório, da celeridade, da legalidade e da proporcionalidade, todos previstos no n.º 2 do artigo 174.º, nos nºs 4 e 5 do artigo 29.º e no artigo 72.º, todos da CRA.

Alegaram, para tanto, que (i) os Réus não foram notificados das alegações do Ministério Público do Tribunal da 1.ª instância, constatando-se, assim, a violação do princípio do contraditório, da igualdade e do julgamento justo; (ii) não foram notificados da promoção do Ministério Público junto do Tribunal Supremo que propôs um agravamento das penas, ficando patente a violação do princípio do contraditório e do direito de defesa dos Recorrentes, implícito no n.º 1 do artigo 67.º da CRA; (iii) houve violação do princípio da legalidade, ao não se atender os crimes abrangidos pela amnistia e (iv) houve violação do princípio da não auto-incriminação, ao transformar o inquérito da inspecção das finanças em processo-crime, sem que os factos tivessem sido sindicados pelo Ministério Público.

Mais alegaram que não se compreende que o Tribunal Supremo considere haver contradição entre os quesitos e a decisão e, ao invés de anular a decisão da primeira instância, tenha não só agravado as penas, como, também, referido “não estar apurado o quantum subtraído pelos réus” quando se sabe que, neste tipo de crimes, a graduação das penas se determina pelo valor subtraído.

Estas são, pois, as questões colocadas ao Tribunal Constitucional.

Vejamos:

  1. Violação dos Princípios do contraditório e da igualdade

Os Recorrentes alegam que foram violados os princípios acima enunciados pelo facto de não terem sido notificados das alegações do Ministério Público apresentadas em primeira instância e, ainda, da vista do Ministério Público junto do Tribunal Supremo.

Do ponto de vista de cada plano do princípio do contraditório, este deve ser entendido como a possibilidade de contradizer os factos alegados por uma parte (plano da alegação); a faculdade de, em igualdade, as partes proporem todos os meios de prova relevantes para o apuramento da realidade dos factos da causa (plano da prova); a possibilidade das partes antes da sentença pronunciarem-se sobre os fundamentos de direito em que se baseie a questão.

Porém, referem os Recorrentes que não foram notificados na pessoa dos seus mandatários, das alegações do Ministério Público, o que afectou os seus mais elementares direitos de defesa, na medida em que se acharam impedidos de contra-alegarem.

Assistirá razão aos Recorrentes? Vejamos:

O artigo 742.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ao processo Penal ex vi do artigo 649.º do CPP, estabelece que as partes deverão ser notificadas da admissão do recurso, e não já da apresentação das alegações. Com efeito, o artigo 743.º do CPC fixa o prazo de oito dias para as partes, após notificadas da admissão do recurso, apresentarem as suas alegações e contra-alegações. Este prazo é peremptório.

 Entendeu o legislador que, ao notificar as partes da admissão do recurso, automaticamente começam a correr os prazos para as partes apresentarem a sua defesa. Razões de celeridade processual estão na ratio desta opção legislativa.

Assim, o tribunal tem o dever de notificar os réus da admissão do recurso interposto pelo Ministério Público, e não já da apresentação das alegações. E este entendimento não é violador do princípio do contraditório nem da igualdade, posto que, notificado da admissão, um mandatário diligente deve, decorridos oito dias, dirigir-se ao cartório a fim de apurar se a contraparte juntou ou não as alegações, até porque se o não fizer, o seu recurso é julgado deserto.

Compulsados os autos, verificamos que os Recorrentes foram notificados da admissão do recurso a fls. 576 verso. Automaticamente começou a correr o prazo de oito dias para que o Ministério Público apresentasse as suas alegações o que veio de facto a acontecer a fls. 577 dos autos. Nesta altura os Recorrentes, com mandatários constituídos, podiam, querendo, tomar conhecimento do conteúdo das alegações para apresentarem a sua defesa.

Assim, não assiste razão aos Recorrentes, quando alegam que a falta de notificação das alegações do Ministério Público violou o princípio do contraditório.

Situação diversa é a alegação feita pelos Recorrentes que diz respeito à falta de notificação da vista do Ministério Público junto do Tribunal Supremo que promovia no sentido de se agravar a pena dos Recorrentes.

Ora, quando na sua vista o MP propõe o agravamento da pena, a contraparte deve ser notificada para apresentar resposta dentro de 8 dias, sob pena de mitigar o direito de defesa dos Recorrentes, tal como ocorre na excepção ao princípio da proibição da reformatio in pejus previsto no n.º 2.º do parágrafo 1.º do artigo 667.º do CPP.

É jurisprudência firmada do Tribunal Constitucional que “a omissão da notificação do Recorrente sonegou o seu direito ao contraditório, isto é, o seu direito de dizer, de sua justiça, sobre a posição do Ministério Público quanto a agravação da pena”, vide Acórdão n.º 593/2019.

De igual modo, foi beliscado o princípio da igualdade de armas, uma vez que aos Recorrentes não foi dada a possibilidade de utilizar um expediente processual importante para a sua defesa, que seria a resposta à vista do Ministério Público violando assim o disposto no n.º 4 do artigo 29.º da CRA.

No caso presente, não tendo os Recorrentes sido notificados da vista do Ministério Público, junto do Tribunal ad quem, em que este pede a agravação da pena, constitui, sem dúvida, uma ofensa ao princípio do contraditório e ao da igualdade.

Por conseguinte, foi, neste caso, violado o princípio do contraditório, previsto no n.º 1 do artigo 67.º e n.º 2 do 174.º, e o da igualdade previsto no n.º 4 do artigo 29.º, todos da CRA.

  1. Violação do Princípio da Legalidade ao Não se Atender aos Crimes Abrangidos pela Amnistia

Alegaram os Recorrentes que o acórdão recorrido violou o princípio da legalidade, porquanto, só podem ser punidos como crimes os tipificados na lei penal como tal. E, uma das formas de descriminalização desses factos é a amnistia que determinou a extinção dos procedimentos criminais quanto aos crimes punidos com pena de prisão até 12 anos.

Não assiste razão aos Recorrentes. Isto porque, como se lê no acórdão recorrido, os ora Recorrentes foram condenados por crimes de peculato, puníveis com penas de 12 a 16 anos de prisão maior. Ora, tais crimes não estão abrangidos pela Lei da Amnistia, que prevê como limite máximo a pena de 12 anos de prisão maior, nos termos do artigo 1.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto.

Quanto aos crimes de falsificação de documentos autênticos imputados aos réus Tiago Manjola e Eduardo Bento, o próprio Tribunal recorrido declarou extinto o procedimento criminal por força da referida lei.

Portanto, neste aspecto, também não procedem as alegações dos Recorrentes.

  1. Violação do Princípio da Auto Auto-Incriminação

Dizem os Recorrentes que a violação do princípio da não auto-incriminação ficou a dever-se ao facto de se fazer referência a elementos de prova provenientes da Inspecção das Finanças, através do relatório do Gabinete de Inspecção, sem que estes elementos tenham sido sindicados pelo Ministério Público, como detentor da fase de investigação e instrução.

Alegaram que esta posição contraria a jurisprudência deste Tribunal Constitucional que, nos seus Acórdãos nºs 122/2010 e 159/2010, entende estar violado o alegado princípio, sempre que um relatório ou documento equivalente da autoridade administrativa seja transformado automaticamente em corpo de delito.

Importa, antes de mais, dizer que o princípio da não auto-incriminação está directamente relacionado com o processo-crime e defesa do arguido no âmbito desse mesmo processo.

O arguido não pode ser utilizado, contra a sua vontade, como meio de prova. Daí que esteja expressamente consagrado o direito ao silêncio sem que isso o possa prejudicar.

Nos Estados de direito democrático, e Angola não foge à regra, as declarações prestadas perante uma autoridade administrativa que, como qualquer cidadão, tem obrigação de as enviar para o Ministério Público para investigação sempre que das mesmas possam resultar a prática de um eventual crime, constituem caso de polícia, que dará lugar à fase de instrução, onde serão recolhidas todas as provas, mormente as declarações do arguido, que pode não querer responder ou responder o que entender melhor para a sua defesa, podendo, inclusive, faltar à verdade.

Finda a instrução, com base nas provas recolhidas e não com fundamento na mencionada participação ou auto de notícia, o Ministério Público acusa, arquiva, manda aguardar produção de melhor prova ou requer a abertura de instrução contraditória, sempre que é permitida.

No caso em apreço, consta dos autos que, antes de ser proferida a acusação, os arguidos (ora Recorrentes) foram ouvidos pelo Ministério Público sobre os elementos constantes da participação de inspecção das finanças, tendo, assim, sido exercido o princípio do contraditório e só depois disso, ou seja, da recolha da prova, foram acusados.

Feita a contestação de fls. 437 a 439, o Ministério Público não manteve a acusação inicial, pois, na instrução contraditória foram apurados novos factos, pelo que a acusação passou de crime de falsificação de documentos para peculato, a fls. 447 dos autos.

Se, porventura, os Recorrentes não tivessem sido ouvidos nas fases instrutória e de instrução contraditória (investigação para completar a prova indiciária da acusação), aí sim, estar-se-ia perante uma ofensa ao princípio da proibição da não auto-incriminação.

Por isso, não procede a alegada violação deste princípio.

 Em conclusão, entende o Tribunal Constitucional que o acórdão recorrido está ferido de inconstitucionalidade, pelo facto de os Recorrentes terem sido julgados e condenados sem observância dos seus direitos à notificação e à ampla defesa, bem como por violação dos princípios da legalidade, da igualdade, do contraditório e do julgamento justo, nos termos dos artigos 6.º, 23.º, 29.º e 72.º, todos da CRA.   

Em face do que fica dito, devem os presentes autos ser remetidos ao Tribunal Supremo para observância do disposto no n.º 2 do artigo 47.º da LPC.  

DECIDINDO                    

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, a 18 de Fevereiro de 2020.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) ­

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães (Relator)

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Maria Fátima da Silva 

Dr. Simão de Sousa Victor