ACÓRDÃO N.º 603/2020
PROCESSO N.º 749-A/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional
I. RELATÓRIO
Yuri Madureira e Reginaldo Madureira, melhor identificados nos autos vieram ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão, datado de 18 de Julho de 2019, prolactado pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 207/19, que negou provimento à providência de habeas corpus requerida pelos impetrantes.
Os Recorrentes, inconformados com o acórdão prolactado pelo Tribunal Supremo, em síntese, arguiram o seguinte:
Terminam, pedindo que seja dado provimento ao presente recurso revogando-se o acórdão recorrido.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar este recurso.
III. LEGITIMIDADE
Os Recorrentes intentaram uma providência de habeas corpus, requerendo a sua libertação imediata. Porém, não viram a sua pretensão atendida, por essa razão, têm legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é a verificação da constitucionalidade do Acórdão de 18 de Julho de 2019, prolactado pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que negou provimento à providência de habeas corpus impetrada pelos Recorrentes, no âmbito do Processo n.º 207/19.
V. APRECIANDO
Os Recorrentes opõem-se ao acórdão recorrido por julgarem que há excesso de prisão preventiva e consequentemente requereram a declaração de nulidade do despacho de acusação, por violação de princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
O cerne da questão sub judice reside em saber se estão ou não preenchidos os requisitos e os fundamentos legais para o deferimento da providência de habeas corpus, em conformação jurídica com a CRA e a lei.
Desde logo, urge realçar que o habeas corpus é um instituto jurídico erigido como um direito/garantia cristalizado na constituição e na lei, que visa essencialmente evitar situações abusivas de poder de privação de liberdade. A lei, máxime a Constituição, consagra-o como um direito fundamental incorporado na esfera jurídica de qualquer cidadão e ao mesmo tempo, como uma garantia efectiva que permite a qualquer cidadão reagir contra situações arbitrárias perpetradas por entidades a quem a lei permite a aplicação de medidas de coacção pessoal, em caso de violação do seu direito à liberdade física.
Assim, legitimamente, todo o cidadão tem direito à providência de habeas corpus, em virtude de prisão ou detenção ilegal, nos termos do artigo 68.º da CRA, conjugado com o § único do artigo 315.º do CPP, como uma garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa do direito à liberdade, enquanto direito fundamental da pessoa humana, que adopta mecanismos próprios e urgentes para debelar as situações em que as medidas de coacção, se afigurem impertinentes e ilegais.
Na ordem jurídica angolana, o legislador preocupou-se em fazer vincar literalmente o seu carácter de excepcionalidade, atribuindo-lhe requisitos e critérios específicos de aplicabilidade no contexto de parâmetros rigidamente fixados por lei. Com efeito, preceitua o artigo 315.º do CPP que o provimento do habeas corpus depende, essencialmente, da verificação de pelo menos um dos pressupostos seguintes:
Ter sido efectuado ou ordenado por quem para tanto não tenha competência legal;
O posicionamento legal sobre esta matéria deixa claro que a concretização do habeas corpus, assenta em pressupostos jurídicos demonstrativos de que o seu primado se baseia nos princípios da legalidade e da taxatividade sem os quais, redunda em meros argumentos supérfluos, sem materialidade jurídica- legal para a sua aplicabilidade.
No concreto, os Recorrentes alegam estarem na condição de prisão ilegal por advir da sua manutenção à caducidade dos prazos legais fixados pela LMCPP, o que se subsume à alínea c), do § único do artigo 315.º do CPP.
Vejamos:
Alegam os Recorrentes que a prisão preventiva foi decretada no dia 21 de Janeiro de 2019 e a notificação da acusação realizada no dia 25 de Maio de 2019, pelo que, tendo decorrido mais de 4 meses, configura o excesso de prisão preventiva.
Contudo, parece-nos haver um equívoco quanto ao argumento suscitado, porquanto verifica-se nos autos (fls. 8, 9 e 10) que a prisão preventiva foi decretada no dia 21 de Janeiro de 2019, a acusação deduzida a 14 de Maio de 2019 e o despacho de pronúncia no dia 26 de Julho de 2019. Ora, ao abrigo das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 40.º da LMCPP, a prisão preventiva deve cessar quando, desde o seu início decorrerem “quatro meses sem acusação do arguido; seis meses sem pronúncia do arguido; doze meses sem condenação em primeira instância.”
Os prazos referidos supra podem ser, entretanto, acrescidos de dois meses, em virtude dos crimes de que são acusados os Recorrentes (roubo qualificado) previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 435.º do CP, por se tratar de crime punível com pena de prisão superior a oito (8) anos, desde que, devidamente fundamentado por despacho.
Neste sentido, a alínea a) do n.º 1 do artigo 40.º da LMCPP estabelece que a prisão preventiva deve cessar quando, desde o seu início decorrerem, 4 meses sem acusação do arguido.
Da interpretação e harmonização teleológica das disposições legais mencionadas resulta claro que o legislador fixou como limite do prazo de prisão preventiva, não propriamente a data da notificação do arguido, como alegam os Recorrentes, mas sim, a data da acusação deduzida, uma vez que a expressão literalmente empregue pelo legislador é de “quatro meses sem acusação do arguido” e não de quatro meses sem a notificação do arguido, o que leva a crer a este Tribunal que os Recorrentes partiram de premissas ilógicas quanto a defesa deste quesito, até porque se tratam de actos processuais distintos, ou seja, a acusação não se deve confundir com a notificação, como erradamente parece ser a percepção dos Recorrentes.
Em face da matéria fáctica constante nos autos, que os Recorrentes foram detidos no dia 21 de Janeiro de 2019 e a acusação deduzida pelo Digno representante do Ministério Público no dia 14 de Maio de 2019, tendo daí decorrido um período de 3 meses e 23 dias, obviamente, dentro do prazo legal de 4 meses fixado por lei.
A este propósito, refere o autor Vinício Ribeiro, na sua eloquência jurídica plasmada na obra Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 595, o seguinte: “O que releva, no prazo da alínea a) do n.º 1, é a data da dedução da acusação e não da sua notificação, segundo jurisprudência pacífica do STJ (cfr. Acs. STJ de 19 de Julho de 2005, Proc. 2743/05-3.ª, Rel. Silva Flor; de 11 de Outubro de 2005, CJACSTJ, XIII, TIII, pág. 186”.
Assim sendo, os Recorrentes não têm razão de alegarem o esgotamento dos prazos de prisão preventiva.
B-Sobre a Nulidade do Despacho de Acusação
Por outra parte, os Recorrentes alegam ainda que a notificação da acusação fora do prazo tem como consequência a sua nulidade, nos termos do n.º 5 do artigo 98.º do CPP. Este dispositivo legal refere que são nulidades em processo penal “a falta de notificação do despacho de pronúncia, ou equivalente, ao réu e seu defensor”. Como bem refere o juiz a quo, em fls. 58 “o artigo citado pela ilustre defesa refere-se não à acusação, mas ao despacho de pronúncia, pelo que desconhecemos qualquer fundamento legal que determine a nulidade da acusação, por falta de notificação da defesa, antes estabelece o artigo 352.º do CPP que a acusação, quando não tenha sido precedida de instrução contraditória, é notificada aos arguidos presos ou aos seus advogados”.
A referida norma deixa ao critério do tribunal, a faculdade de decidir se a acusação é notificada ao arguido ou ao seu defensor, não existindo a obrigatoriedade da notificação ser feita a ambos, arguido e seu defensor. Assim sendo, o tribunal optou por notificar os arguidos presos, conforme certidões positivas referidas no despacho do juiz do Tribunal a quo constantes dos autos (fls. 58).
Mais ainda, os Recorrentes alegam que foram notificados do despacho de pronúncia no dia 26 de Julho de 2019, ou seja, passados 6 meses e 3 dias desde a detenção. O prazo legal para a notificação da pronúncia é de 6 meses (artigo 40.º alínea b) da LMCPP).
Entretanto, este Tribunal verifica que reza nos autos que é verdade que o despacho de pronúncia foi exarado no dia 26 de Julho de 2019. Mas, não se pode descurar que o Acórdão recorrido data de 18 de Julho de 2019, ou seja, oito dias antes, pelo que não podia o Tribunal Supremo ter conhecido e decidido sobre esta matéria.
Ademais, é inverdade que o juiz do Tribunal a quo não se terá pronunciado sobre a detenção dos arguidos, porquanto constam dos autos (fls. 57 a 59) um despacho datado de 15 de Julho de 2019, anterior também a data do despacho de pronúncia, que prorrogou o prazo de prisão preventiva para um mês, em observância ao estabelecido no n.º 2 do artigo 40.º da LMCPP. Ora, assim sendo, não assiste razão aos Recorrentes quanto ao quesito que suscitam neste ponto.
O legislador dotou o processo de habeas corpus de mecanismo garantístico para debelar as situações em que, as medidas de coacção se afiguram impertinentes, abusivas e ilegais justificando deste modo, o desencadeamento desta providência que permita de imediato pôr termo à restrição ou mitigação de um bem jurídico fundamental – a liberdade pessoal. Porém, não é efectivamente o caso em apreço.
Na perspectiva constitucional, a pedra angular imperante, determina que as restrições aos direitos, liberdades e garantias prevalecem em caso de conflitos de bens jurídicos ou valores de igual grandeza. Com efeito, o conjunto de valores e bens dignificantes que erigem à pessoa humana, mormente a liberdade individual, assente no direito de ir e vir, locomoção “ultro et citro” podem ceder, para privilegiar outros princípios e valores fundamentais basilares ancorados na busca da paz e da estabilidade social que constituem o âmago dos direitos fundamentais tutelados pela pessoa humana não constituindo, por isso, uma violação aos direitos constitucionais dos Recorrentes. Este entendimento evidencia que as restrições impostas aos seus direitos são legítimas e plausíveis, por esse motivo não melindram nem beliscam a conformação legal do acórdão revidado aos ditames constitucionais e legais em que se funda o Estado de direito.
Entretanto, pese embora o Tribunal Constitucional tenha tomado conhecimento por via do Digno Representante do Ministério Público que a 1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Benguela deu início a sessão de julgamento do Processo n.º 227/2019, em Dezembro de 2019, constata-se que o Acórdão recorrido não violou princípios, direitos e garantias constitucionais.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas (artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Tribunal Constitucional, em Luanda, 19 de Fevereiro de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite Silva Ferreira (Relatora)
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor