ACÓRDÃO N.º 605/2020
PROCESSO N.º 764 – D/2019
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Francisco Nosse Manteiga, devidamente identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 12 de Setembro de 2019, proferido pela 3ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 266/19, que indeferiu o seu pedido de habeas corpus por considerar legal a medida de coacção aplicada.
Inconformado com o referido acórdão, o Recorrente invocou violação de direitos e princípios constitucionais, alegando em síntese, que:
Conclui, pedindo que se declare inconstitucional o acórdão proferido pelos Venerandos Juízes da 3ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, porquanto, a norma que serviu como fundamento para negar o provimento da providência de habeas corpus, requerida pelo Recorrente (§ único do artigo 315.º do CPP), contraria o disposto no n.º1 do artigo 68.º da CRA, logo, é inconstitucional, conforme orientação dos nºs 1 e 2 do artigo 226.º da CRA.
Como consequência que seja restituída a liberdade ao Recorrente pelo facto de a sua detenção se afigurar ilegal, porquanto lesiva das disposições combinadas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 36.º e n.º 1 do artigo 64.º, ambos da CRA, porque efetuada em violação ao previsto no n.º1 do artigo 8.º da LMCPP.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.° da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, (LPC), competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos. Esta faculdade está igualmente prevista na alínea m), do artigo 16.° da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, (LOTC).
Foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte legítima no Proc. n.º 266/19, que correu seus trâmites na 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, na sequência da providência de habeas corpus. Tem direito a contradizer, segundo dispõe o n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional por força do artigo 2.º da LPC.
Assim, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objeto apreciar a constitucionalidade do acórdão do Tribunal Supremo que indeferiu o pedido de habeas corpus do Recorrente, por falta de fundamento bastante.
V. APRECIANDO
O Recorrente foi detido no dia 2 de Julho de 2019, por volta das 18 horas, por agentes do SIC - Uíge, detenção legalizada pelo Ministério Público, e indiciado na prática dos crimes de peculato e falsificação de documentos e pela conjugação das disposições dos artigos 313.º; 437.º; 421.º, n.º 5 e 218.º do Código Penal (CP); associação criminosa pelo artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro - Lei do branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 60.º nºs 1, 2 e 3 da Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro. No âmbito do processo n.º 423/19 PGR. T.P.U.
Os factos ocorreram na Província do Uíge, o processo é de Querela e encontra-se na fase da instrução preparatória.
O Recorrente, interpôs o pedido de habeas corpus junto do Tribunal Supremo, tendo este lhe negado provimento, por alegada falta de fundamento nos termos do que dispõe o artigo 315.º do CPP, § único.
Inconformado, o Recorrente veio a este Tribunal invocar a inconstitucionalidade do artigo 315.º § único do CPP, por alegada violação do n.º 1 do artigo 68.º e nºs 1 e 2 do artigo 226.º, todos da CRA e solicitar, consequentemente, que lhe seja restituída a liberdade pelo facto de a sua prisão se afigurar ilegal.
A questão de mérito, colocada no caso em apreço, consiste em saber se o pedido do ora Recorrente, quanto à suscitada declaração de inconstitucionalidade da norma do § único do artigo 315.º do CPP, deve ser vista neste processo em concreto e, quanto a determinar-se se a detenção fora do flagrante delito, sem a observância do disposto no n.º 1 do artigo 8.º da LMCPP, constitui ou não fundamento para interpor a providência de habeas corpus.
Sobre a questão da inconstitucionalidade do § único do artigo 315.º do CPP
Quanto a esta questão, nota-se que o pedido do ora Recorrente tem mais características das conclusões de um recurso ordinário de inconstitucionalidade, o qual visa declarar a inconstitucionalidade de determinadas normas e fazer da decisão caso julgado no processo em que a questão tenha sido suscitada, conforme consta do n.º 2 do artigo 36.º e no n.º 1 do artigo 47.º, ambos da LPC.
Este Tribunal entende que o Recorrente ao invocar, no processo de recurso extraordinário de inconstitucionalidade, a inconstitucionalidade da norma do § único do artigo 315.º do CPP, aferível na espécie do recurso ordinário de inconstitucionalidade, seguiu a forma errada por tratar no mesmo processo dois tipos de recurso, com características e natureza diferentes.
Dito de modo diverso, enquanto no recurso extraordinário de inconstitucionalidade o Recorrente deve apenas indicar os direitos e princípios fundamentais violados, requerendo, por conseguinte, a declaração de inconstitucionalidade do acórdão recorrido.
No recurso ordinário de inconstitucionalidade o que está em causa é o pedido de apreciação com vista a declarar-se inconstitucional ou não a aplicação de uma determinada norma, ou a recusa da aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Portanto, não procede a inconstitucionalidade requerida pelo Recorrente ao § único do artigo 315.º do CPP por erro na forma de processo seguida, pois não é admissível o pedido do recurso ordinário de inconstitucionalidade num recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Sobre os fundamentos da admissibilidade da providência de “habeas corpus”
A CRA determina as circunstâncias em que a liberdade dos cidadãos pode ser restringida, valendo neste sentido o disposto nos artigos 57.º, 58.º e 68.º, todos da CRA. Sendo assim, nestes casos impõe-se que esta restrição esteja dentro do limite constitucional ou legalmente consagrado.
No caso vertente, o Recorrente interpôs providência de habeas corpus, por entender que a sua prisão é ilegal, já que pelo facto de ter sido efectuada fora do flagrante delito, a autoridade competente não teve em consideração o disposto n.º 1 do artigo 8.º da LMCPP, que expressamente estabelece que a prisão fora do flagrante delito apenas é admissível quando houver razões suficientes para crer que o arguido não se apresentaria de maneira voluntária e espontânea perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado, o que não se demonstrou ser o seu caso.
Ao contrário, no acórdão recorrido o Tribunal Supremo decidiu que a prisão do Recorrente é legal, na medida em que não invocou qualquer dos fundamentos enunciados no parágrafo único do artigo 315.º do CPC, com vista a requerer a providência de habeas corpus.
No § único do artigo 315.º do CPP estatui-se que:
Só pode haver lugar a providência referida neste artigo quando se trate de prisão efectiva e actual, ferida de ilegalidade por qualquer dos seguintes motivos:
Nesta ordem de raciocínio, impõe-se determinar se a decisão recorrida contraria ou não disposições constitucionais, designadamente as previstas nos nºs 4 e 5 do artigo 29.º, bem como o direito à liberdade física e segurança pessoal, previsto no n.º 2 do artigo 36.º, tanto como o n.º 1 do artigo 64.º e ainda o estabelecido no seu artigo 68.º, ao considerar que as únicas ilegalidades que constituem motivo de admissibilidade da providência de habeas corpus, são taxativamente as indicadas no supra citado § único do artigo 315.º do CPC.
Vejamos:
É, com efeito, entendimento geral, que o direito à providência de habeas corpus consagrado no artigo 68.º da CRA constitui uma garantia em processo penal contra o abuso de poder decorrente de prisão ou detenção ilegal. Tal como ilustram, (Raul Carlos Araújo e Elisa Rangel - em Constituição da República de Angola anotada tomo I). “o habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar, de forma especial, o direito à liberdade constitucionalmente garantido e que visa reagir de modo imediato e urgente, contra o abuso de poder em virtude de detenção ou prisão, efectiva e actual, ferida de ilegalidade.”
No entanto, esta natureza célere e excepcional que consubstancia a providência de habeas corpus, leva que alguns tenham o entendimento que ela somente deve ser admitida em casos muito restritos previstos taxativamente na lei, razão pela qual não conceberem a utilização deste expediente para combater demais irregularidades que possam surgir na circunstância de prisão ou detenção de um individuo, em desconformidade com que dispõe a lei, e que podem ser combatidas mediante os recursos ordinários cabíveis.
Na verdade, não deve ser este o entendimento mais correcto tendo em atenção o disposto no artigo 68.º da CRA. Com efeito, em anotação ao presente artigo, esclarecem a este propósito, os autores acima citados, que esta providência pode ser requerida com base em vários fundamentos, ou seja, para além dos indicados no § único do artigo 315.º do CPP. Acrescentam que podem constituir também motivos para admissibilidade desta providência designadamente “ser a prisão ou detenção efectuada sem mandado da autoridade competente; manter-se a privação da liberdade fora dos locais para este efeito autorizados por lei; e haver violação dos pressupostos e das condições da aplicação da prisão preventiva.”
Na realidade, o mais assertivo é proceder-se à interpretação de todas as normas respeitantes ao instituto do habeas corpus, consagrado no nosso ordenamento jurídico, de acordo com a Constituição, chamando-se à colação o disposto no artigo 28.º da CRA, quando refere que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias fundamentais são directamente aplicáveis e vinculam todas as entidades públicas e privadas.
Deste modo, constituindo o preceituado no artigo 68.º da CRA, um direito relativo tanto à liberdade como a garantias constitucionais contra a violação dessa mesma liberdade, compreende-se que ao estabelecer-se no n.º 1 do artigo 68.º da CRA, que todos têm direito a requerer tal providência contra abuso de poder decorrente de detenção ou prisão ilegal, que a referida ilegalidade é aferida sempre que as circunstâncias da detenção ou prisão se reconduzirem a excessos dos poderes punitivos do Estado.
Nesta ordem de idéias concebe-se que os fundamentos para admissibilidade da providência em causa não está restringido aos motivos indicados no parágrafo único do artigo 315.º do CPC, considerando-se legítimo que toda a detenção ou prisão efectuada em desconformidade com o preceituado na lei, designadamente da LMCPP possa vir a fazer desencadear uma providência de habeas corpus.
Reitera-se, tal como igualmente referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, anotada, volume I, Coimbra Editora 2007, pág. 510, que este instituto do habeas corpus deve ser interpretado de modo sistemático, particularmente em consonância com as normas que regulam os princípios e os direitos fundamentais estruturantes do Estado de Direito.
Para o efeito, o ponto de partida analítico deve ser o artigo 68.º da CRA, que estabelece que “todos têm o direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o tribunal competente”. No caso sub judice o Acórdão recorrido limitou-se a citar o artigo 315.º do CPP, descurando assim os postulados da Lei Suprema (CRA).
Ainda assim, o artigo 315.º do CPP é aplicável ao caso sub judice. Verifique-se o disposto na alínea b), sobre a motivação da prisão ou detenção: se esta não estiver em consonância com o que a lei autoriza, é passível da concessão da providência de habeas corpus. Assim, ainda que não se tivesse analisado a aplicação da CRA, teria sido suficiente a aplicação da cláusula aberta, que é constituída pelo preceito usado para fundamentar o acórdão recorrido. A lei que, no presente caso, não autoriza a prisão é a LMCPP conforme n.º 4 do artigo 8.º.
O ónus da fundamentação da motivação da medida cautelar cabe à autoridade responsável pela ordem da sua aplicação, cfr. n.º 4 do citado artigo 8.º da LMCPP.
A detenção é um meio precário de privação de liberdade e só pode ser admissível se estiverem reunidos determinados pressupostos, sem os quais esta não pode ser operada, sob pena de violação grave às normas constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias, bem como às normas legais que regulam a aplicação desta medida cautelar.
Assiste razão ao Recorrente, ao argumentar que, para a legalidade de uma detenção fora do flagrante delito, àquela teria que obedecer aos requisitos previstos no n.º 1 do artigo 8.º da LMCPP. Por conseguinte, da análise ao Acórdão recorrido, facilmente se percebe que não se teve o cuidado de aferir as razões que nos autos justificaram ou não a enveredar pela detenção do Recorrente. Portanto, a detenção tornou-se ilegal pelo facto de não obedecer a nenhum dos requisitos previstos no n.º 1 do artigo 8.º da LMCPP.
Em suma, pelas razões acima expostas, o Acórdão recorrido, ao não se ter pronunciado sobre a inobservância das condições da aplicabilidade da prisão preventiva fora do flagrante delito e, consequentemente, ter decidido que não estavam preenchidos os pressupostos para admissibilidade da providência de habeas corpus, violou o direito à liberdade física e segurança pessoal do Recorrente, bem como a obrigação de observância da legalidade para motivar a privação da liberdade, previstos no n.º 2 do artigo 36.º, bem como no n.º 1 do artigo 64.º, e no artigo 29.º, nºs 4 e 5, todos da CRA, em conjugação com o disposto na alínea b) do § único do artigo 315.º do CPP, concretizado pelos nºs 1 e 4 do artigo 8.º da LMCPP. Com efeito, desde que haja prisão ou detenção ilegal, ainda que a ilegalidade não estivesse prevista no mencionado artigo 315.º do CPP, a vítima do constrangimento tem direito a socorrer-se da providência de habeas corpus. Mas vê-se que a norma do artigo 315.º é uma cláusula aberta, que dá respaldo a uma grande panóplia de possíveis ilegalidades, portanto, abrangendo o presente caso.
Sendo assim, o Tribunal Constitucional entende que o Acórdão recorrido é inconstitucional por violação dos preceitos constitucionais acima referenciados, incluindo o disposto no n.º 1 do artigo 68.º da CRA.
Destarte, devem os presentes autos ser devolvidos ao Tribunal Supremo, para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 47.º da LPC.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas (nos termos do artigo 15.º da Lei nº 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 17 de Março de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dr. Maria de Fátima de L. A. B. da Silva (Relatora)
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Vitória Manuel da Silva Izata