ACÓRDÃO N.º 606/2020
PROCESSO N.º 763-C/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
ROBERT HUDSON, LDA, melhor identificada nos autos, interpôs no Tribunal Constitucional o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 334/15, que julgou procedente o recurso e condenou a ora Recorrente a reintegrar os trabalhadores Mário Soares Pinto, Hermenegildo José Fonseca e Mateus Manuel de Almeida nos postos de trabalho e pagar-lhes os salários intercalares, por entender que os processos disciplinares se achavam eivados de vícios.
A Recorrente sustenta as suas alegações de recurso nos termos seguintes:
Conclui requerendo a revogação do Acórdão recorrido por violação, designadamente, do princípio da legalidade, da certeza jurídica e do direito ao julgamento justo e conforme, nos termos dos artigos 6.º, 29.º e 72.º respectivamente, todos da CRA.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte legítima nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
A Recorrente, enquanto Apelada no Processo n.º 334/15, que correu termos na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, não viu a sua pretensão atendida, tendo, por essa razão, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto verificar se o Acórdão prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, a 22 de Março de 2018, no âmbito do Processo n.º 334/15, violou princípios, direitos e garantias constitucionais.
V. APRECIANDO
a) Questão prévia
Tendo em conta a natureza do processo, o recurso em matéria disciplinar foi interposto junto da 2.ª Secção da Sala de Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, que passou a ser, ab inicio, o Tribunal a quo, que o apreciou e decidiu em primeira instância, tendo a parte vencida apresentado tempestivamente recurso da decisão junto do Tribunal Supremo, exercendo assim o seu direito de ver a decisão ser julgada por um tribunal diferente – o tribunal ad quem, superior daquele que proferiu a decisão. E este tribunal é o Tribunal Supremo, a instância superior da jurisdição comum.
A retórica usada pela Recorrente nas suas alegações poderia levar-nos à falsa ideia de que não estava cumprida a cadeia recursória necessária para a interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade. Mas, na realidade, confirma-se que estamos perante um Aresto da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo – o Tribunal ad quem, recorrível ao Tribunal Constitucional por força do previsto no parágrafo único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, LPC.
Porque a redacção da alínea b) do n.º 2 do artigo 48.º da LGT em vigor não difere da disposição legal da LGT anterior, este Tribunal entendeu estar em condições de apreciar o presente recurso, assumindo que a Recorrente quis mencionar a alínea b) do n.º 2 do artigo 50.º da LGT, em vigor à altura dos factos, sempre que tenha indicado de forma diferente. Desta forma, entende o Tribunal estar a fazer aplicação prática do princípio da economia processual, na senda do outro principio constitucionalmente estabelecido – o da tutela jurisdicional efectiva.
b) Sobre os fundamentos do recurso
Posto isto, cabe agora apreciar, abordando as questões levantadas que se afiguram pertinentes para a resolução deste caso, a saber:
A Recorrente alega que o Acórdão ora sindicado violou os princípios da legalidade, da certeza jurídica e o seu direito ao julgamento justo, ao considerar num pretenso entendimento segundo o qual o prazo fixado pela alínea b) do n.º 2 do artigo 50.º da LGT é de, no mínimo, 5 dias, em conformidade com o artigo 153.º do CPC, aplicável ao processo laboral por força do artigo 59.º do Decreto Executivo Conjunto n.º 3/81, de 11 de Janeiro.
Isto porque entende que a redacção da alínea b) do n.º 2 do artigo 50.º da LGT é clara ao estabelecer apenas um prazo máximo de 10 dias, a contar da data da entrega da convocatória, para a realização da entrevista do trabalhador, pelo que o entendimento do Tribunal Supremo vertido no Acórdão sindicado contraria o estatuído na Lei, e dessa forma, viola inquestionavelmente o princípio da legalidade, consagrado no n.º 2 do artigo 6.º da CRA.
Na verdade, tem razão a Recorrente quando refere a inexistência de um preceito legal que expressamente estipule um prazo mínimo para a realização da entrevista. No entanto, este Tribunal entende que desta norma não pode resultar a conclusão de que não exista um prazo mínimo para a realização da entrevista e que esta se possa realizar a todo o tempo, isto é, desde o dia da recepção da convocatória até ao limite máximo dos 10 (dez) dias úteis previstos na Lei para a realização da entrevista. Por este facto, este Tribunal corrobora com o entendimento do Tribunal Supremo, por ser o mais conforme com a Constituição, até porque a tese defendida pela Recorrente afectaria o núcleo essencial do direito à segurança do trabalho, através da eliminação das garantias de defesa do arguido/trabalhador, e aumentaria o risco de uma decisão disciplinar errada.
Em abono da verdade, a entrevista, no procedimento disciplinar, é a maior garantia do direito de defesa do trabalhador e assume natureza essencial nessa fase porque, efectivamente, é neste espaço que o trabalhador pode apresentar os seus argumentos e provas, requerendo qualquer acto ou diligência, obrigando, assim, o empregador a ponderar com alguma detença as circunstâncias do caso e a decisão a tomar, assegurando-se, deste modo, o conhecimento da verdade objectiva e a realização da justiça nas relações de trabalho.
O direito à entrevista do trabalhador não pode ser resumido ao direito de ser ouvido, cabendo-lhe, também, o direito de preparar minuciosamente a sua defesa e produzir prova contra a acusação que lhe é movida, sendo que, de outro modo, o princípio do contraditório não teria razão de ser.
Assim sendo, considerando as garantias de defesa do trabalhador, os prazos concedidos aos trabalhadores para a entrevista (2 dias para o Hermenegildo José Fonseca e Mateus Manuel de Almeida e 3 dias para Mário Soares Pinto, respectivamente), não asseguraram o exercício da mais ampla defesa por parte destes, como de resto refere o Acórdão revidado.
É mister referir, que as normas devem ser interpretadas no seu conjunto, com recurso a várias formas de interpretação, ganhando especial relevo a teleológica que manda atender a ratio das normas. E, na questão em apreciação, resulta claro que o prazo tem a ver com as garantias do direito de defesa do trabalhador, que devem prevalecer sobre as exigências do princípio da celeridade processual, que, apesar da dignidade constitucional e consagração legal, não deve atropelar outros princípios constitucionais, nomeadamente, o princípio da mais ampla defesa do trabalhador.
Ademais, mesmo reconhecendo a prevalência das normas especiais sobre as normas gerais, deve-se notar a pertinência do regime da subsidiariedade concretizado pela possibilidade da aplicação das normas gerais, por força do n.º 1 do artigo 59.º do Decreto Executivo Conjunto n.º 3/82, de 11 de Janeiro – Regulamento da Lei de Justiça Laboral, que refere “os órgãos de justiça laboral poderão recorrer a qualquer norma ou princípio processual do ordenamento jurídico angolano que se adapte à especial natureza do processo.” Acresce o n.º 2 que, “Na sua falta, os órgãos de justiça laboral procederão pela forma que melhor assegure o conhecimento da verdade objectiva e a realização da justiça nas relações de trabalho”.
Destarte, na falta de uma disposição legal que estabeleça um prazo mínimo para o trabalhador exercer a sua defesa, dever-se-á, por força do n.º 1 do artigo 59.º do Decreto Executivo Conjunto n.º 3/82, de 11 de Janeiro, socorrer-se do prazo geral do direito civil, que é de 5 dias, segundo o estabelecido no artigo 153.º in fine, do CPC.
Segundo Canotilho, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, 2003, pág. 499, “a «aceleração» da protecção que se traduz em diminuição de garantias processuais e materiais (prazos de recurso, supressão de instâncias excessivas) pode conduzir uma justiça pronta mas materialmente injusta.”
Nesta conformidade, uma interpretação da alínea b) do n.º 2 do artigo 50.º da LGT, sem qualquer limite temporal mínimo, é contrário a nossa lei fundamental, padecendo de inconstitucionalidade, pelo que este Tribunal perfilha da posição defendida no Aresto do Tribunal ad quem, bem como na jurisprudência da Câmara Laboral do Tribunal Supremo, que tem considerado este prazo de 5 dias, com recurso ao disposto no artigo 153.º do CPC, ex vi do n.º 1 do artigo 59.º do Decreto Executivo Conjunto n.º 3/82, de 11 de Janeiro – Regulamento da Lei de Justiça Laboral, para o trabalhador deduzir oposição e deste modo, oferecer aos sujeitos jurídico-laborais as mesmas oportunidades e garantias de um processo justo e conforme.
Como é referido no Manual “Estudos do Instituto de Direito de Trabalho, Volume II, Almedina, Editora, pág. 203”, “À desigualdade de facto, promovida pelas circunstâncias da situação jurídica laboral, não pode a legislação laboral responder com uma desigualdade jurídica arbitrária no tratamento das posições relativas das partes; o Direito não tem por objectivo a igualdade formal das partes mas sim a resolução de situações concretas com base em critérios de justiça material”.
Em última análise, não poderá invocar-se contra o objecto do presente recurso a ofensa do princípio da legalidade, consagrado no n.º 2 do artigo 6.º da CRA. Uma violação do princípio da legalidade só poderia ocorrer no caso de se estar perante uma decisão não fundamentada num dispositivo legal, ou na interpretação de um preceito legal que não esteja conforme com a Constituição.
Este Tribunal entende assim que a interpretação feita pelo Tribunal Supremo, no Aresto recorrido é conforme com a CRA, uma vez que é fundamentada em legislação subsidiariamente aplicável ao caso concreto e é a que melhor garante o direito à ampla defesa, que é um direito com dignidade constitucional, que permite às partes apresentarem todos os seus argumentos de razão a seu favor perante um julgador, com o objectivo de influenciá-lo. Este direito é uma manifestação do direito ao contraditório, que por sua vez concretiza o direito a um julgamento justo e conforme, estabelecido no artigo 72.º da CRA. O Acórdão recorrido tem, assim, o condão de proteger o direito ao trabalho, consagrado no artigo 76.º da CRA, no artigo 23.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo 15.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e no artigo 6.º do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Como referem Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, em Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, página 411, anotação n.º 4 ao artigo 76.º da CRA, “O direito do trabalho pressupõe a protecção do trabalhador contra medidas que ponham em causa este direito fundamental.”.
E pelas razões supra mencionadas também não contraria o princípio da certeza jurídica.
Pela mesma ordem de ideias, também não se vislumbra qualquer ofensa ao princípio do julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, já que a Recorrente teve acesso a um processo justo, em igualdade de armas e oportunidade, que foi julgado em conformidade com a legislação aplicável.
Ademais, sobre o quesito sub judice existe jurisprudência firmada neste sentido que defendemos, nomeadamente no Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 585/2019, de 17 de Dezembro, e no Tribunal Supremo, constante dos Acórdãos nºs 02/2010 e 52/2014 proferidos pela respectiva Câmara do Trabalho.
Face ao exposto, este Tribunal considera que o Acórdão ora apreciado está conforme aos princípios e normas constitucionalmente tutelados e inerentes ao catálogo de direitos, liberdades e garantias fundamentais dos trabalhadores, não havendo, por isso, violação dos princípios da legalidade, da certeza jurídica e do direito a um julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 6.º, 29.º e 72.º da CRA.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 14 de Março de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D’Almeida Baptista da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Relatora)