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ACÓRDÃO N.º 610/2020

 

PROCESSO N.º 766-B/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I. RELATÓRIO  

Ivanildo Patrício Meireles Sequeira melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 863 pela 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que o condenou na pena de 18 (dezoito) anos de prisão maior, pela prática de um crime de roubo, previsto e punível pelo n.º 2 do artigo 435.º do Código Penal.

Notificado para apresentar alegações de recurso, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC), o Recorrente alegou, em sede de conclusões, o seguinte:

“... Nunca ficou provado que o Recorrente tenha empunhado qualquer arma de fogo para praticar o crime do qual foi condenado.

- Nunca ficou provado que o Recorrente tenha sido o autor moral ou material de tal crime, isto é, tenha tomado parte em qualquer decisão conjunta para o roubo à mão armada dos valores na posse dos ofendidos.

- O Tribunal a quo julgou por mera convicção, não se baseando em factos constantes nos autos.

- A prova produzida durante o interrogatório do Recorrente na fase da instrução preparatória é ilegal e nula por ter sido obtida por coacção moral, no caso a tortura a que o Réu foi submetido.

- O Tribunal a quo violou os princípios da legalidade, da presunção de inocência e da proibição da reformatio in pejus e por consequência a Constituição da República.

-A decisão objecto do presente recurso julgou mal os factos e aplicou mal o direito.

- O Tribunal a quo julgou por convicções, ignorando a totalidade das provas apuradas, dos factos e o direito próprio a ser aplicado a estes factos.

- O douto Acórdão em crise violou os artigos 148.º e 150.º, 667.º do Código de Processo Penal (CPP), os artigos 45.º e 51.º, n.º 3 da Lei n.º 20/88 de 31 de Dezembro, 6.º, 67.º e 72.º da CRA.”

Em termos conclusivos, o Recorrente requereu a alteração da decisão judicial recorrida e a declaração de inconstitucionalidade do aludido acórdão e, consequentemente, a sua absolvição.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA 

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, da LPC, contra o Acórdão do Tribunal Supremo que agravou a pena imposta ao Recorrente.

Com efeito, trata-se de uma decisão que põe termo ao processo, porque sobre ela já não pode recair um recurso ordinário legalmente previsto, nos termos do § único do artigo 49.º da LPC, pelo que o Tribunal Constitucional é competente para conhecer do recurso.

III. LEGITIMIDADE 

O Recorrente é Réu no Processo de Querela n.º 1286/16 4TPLDA, que correu os seus trâmites na 5.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda (com o número 863/2019, da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo), pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, de modo subsidiário, ao caso em apreço, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.

Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.

IV. OBJECTO 

O objecto do presente recurso é saber se o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo violou os princípios constitucionais da legalidade, presunção da inocência e proibição da reformatio in pejus.

V. APRECIANDO

O Recorrente invoca, nas suas alegações, a falta de provas para a sua condenação, sublinhando que o Acórdão impugnado aderiu in tottum ao juízo de valor do Tribunal a quo, apesar de, no seu entendimento, não terem sido reunidas provas bastantes para o condenar pela prática de qualquer dos crimes.

Sublinha-se, desde já, que o invocado erro na valoração da prova não é da competência deste Tribunal Constitucional, na medida em que este Tribunal apenas pode conhecer de violações aos princípios firmados na Constituição, como decorre deste preceito legal (vide n.º 2 do artigo 180.º) e está expressamente definido no artigo 49.º da LPC, no que diz respeito ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

Esta matéria relaciona-se com a valoração da prova feita pelo acórdão impugnado e também pelo Tribunal da 1.ª instância, não podendo este Tribunal funcionar como um terceiro grau de jurisdição comum, como parece pretender o Recorrente.

De resto, também o Tribunal Supremo pode verificar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Mas, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o Tribunal de 1.ª instância que está em melhores condições para fazer um adequado uso do princípio de livre apreciação da prova.

O limite a este princípio são as regras da experiência comum.

E o Tribunal ad quem, no Acórdão recorrido, não pôs em causa a violação dessas regras, limitando-se a corroborar, de forma fundamentada sob a epígrafe “ APRECIAÇÃO”, a conclusão do Tribunal a quo no referente aos factos provados, elementos que os sustentam, procedendo depois ao seu enquadramento jurídico-legal.

A este propósito refere o Recorrente ter sido violado o  princípio da presunção da inocência  que é um princípio jurídico de ordem constitucional previsto no n.º 2, do artigo 67.º da CRA, aplicado ao direito penal, que estabelece o estado de inocência como regra em relação ao acusado da prática de infracção penal.

Em termos jurídicos, esse princípio se desdobra em duas vertentes: como regra de tratamento  (no sentido de que o acusado deve ser tratado como inocente durante todo o decorrer do processo, do início ao trânsito em julgado da decisão final) e como regra probatória  (no sentido de que o encargo de provar as acusações que pesarem sobre o acusado é inteiramente do acusador, não se admitindo que recaia sobre o indivíduo acusado o ónus de "provar a sua inocência", pois, essa é a regra).

Trata-se de uma garantia individual fundamental e um corolário lógico do Estado de direito Democrático.

Também, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no seu artigo XI, 1, dispõe: “Toda pessoa acusada de um acto delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.

Na nossa Constituição, no mencionado artigo, consta expressamente que: “Presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado de condenação”.

Portanto, vê-se que a Constituição trouxe uma garantia ainda maior ao direito da não culpabilidade, pois garante esse direito até o trânsito em julgado da sentença penal, não se referindo à condenação.

Tal direito garante, ao acusado, todos os meios cabíveis para a sua defesa (ampla defesa), assegurando-lhe que não será declarado culpado enquanto do processo penal não resultar em sentença que declare a sua culpabilidade e até que essa decisão transite em julgado, o que lhe faculta o direito de recorrer, como no caso em apreço.

Ora, fácil é concluir que o referido Acórdão, ao condenar o ora Recorrente com base nos factos fundamentadamente provados, não violou este princípio, não se conseguindo sequer descortinar das razões para ter sido invocada esta violação.

Mais, refere que o acórdão recorrido acaba por violar o princípio da legalidade, por ter sido produzido à revelia da lei, sem estar devidamente fundamentado, com decisões sustentadas em meras convicções e com base em factos confessados em fase de instrução por ter sido espancado e torturado, ou seja, por ter sido coagido.

Esse princípio, que se encontra no n.º 2 e 3 do artigo 65.º da CRA, representa uma garantia para todos os cidadãos, pois, por meio dele, os cidadãos estarão protegidos pelos actos cometidos pelo Estado. A partir dele há uma limitação no poder estatal em interferir nas liberdades e garantias individuais do cidadão.

Assim definido o invocado princípio da legalidade, também este Tribunal Constitucional não acolhe o entendimento do Recorrente.

Com efeito, como se disse, a prova está devidamente sustentada, quer em sede de primeira instância, quer pelo Tribunal Supremo ao acolher a versão daquela, na medida em que o Juiz do Tribunal a quo refere expressamente que, apesar de os réus em sede de julgamento terem negado a prática dos factos, contrariando as declarações prestadas em sede de instrução, justificando que tinham sido obrigados pelos agentes da polícia a assinarem os autos de interrogatório, esta versão caiu por terra, na medida em que, os declarantes, de forma credível, reconheceram os Réus, não tendo o Tribunal dúvidas na sua condenação.

Assim, uma vez mais, sublinha-se que o Acórdão recorrido e o do Tribunal a quo, apesar de sucintos, acabaram por expor das razões que sustentam a prova dos factos, não tendo resultado de um processo de “convicções previamente formadas, (ou) suposições”, como pretende o Recorrente para concluir pela violação de princípios constitucionais que lhe possibilitem a impugnação para este Tribunal Constitucional.

Mais do que discordando da sua condenação, o Recorrente pretende que este Tribunal volte a reapreciar as questões de facto que, como já se disse, não o pode fazer por respeito até aos princípios da imediação e da livre convicção do julgador.

Por outro lado, muito se estranha a posição assumida pelo ora Recorrente, quer sobre a sustentação da prova quer sobre o método como foi feito o interrogatório, alegando que foi sujeito a coacção para se obter uma confissão, face às declarações prestadas em audiência e que constam de folhas 374 dos presentes autos, onde explica de forma clara a sua intervenção e montante recebido, sem nunca se referir à tortura agora invocada.

Não se vislumbra, por isso, a violação de qualquer destes princípios constitucionais.

Finalmente, alegou a violação do princípio da proibição da reformatio in pejus, por nem o Ministério Público nem o Réu terem solicitado a agravação das penas.

O princípio da proibição da reformatio in pejus, é tido, em si mesmo, como um princípio de garantia do devido processo legal e, consequentemente, está estrictamente relacionado com o direito à defesa, em face da estrutura acusatória ou quase acusatória do processo penal angolano. No que à proibição da reformatio in pejus diz respeito, importa considerar o seguinte: ao Tribunal Supremo impende uma ampla reapreciação da causa, conhecendo de facto e de direito, e podendo confirmar, revogar, alterar ou anular, conforme entender, a decisão objecto do recurso, mas com uma excepção: a consagrada pelo artigo 667.º do CPP, em que o Tribunal Supremo pode atenuar a pena, mas não agravá-la quando o recurso for interposto no exclusivo interesse do réu. Porém, esta proibição de não agravação tem duas excepções que se reconduzem ao princípio geral do amplo conhecimento do Tribunal Supremo:

1.º “Quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos…”

2.º “Quando o representante do Ministério Público junto do Tribunal Superior se pronunciar, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer…”

Assim, não procedem as alegações do Recorrente pelas razões que adiante se aduzirão.

A questão que se põe é a de saber se a condenação em pena mais grave ofende o princípio da proibição da reformatio in pejus previsto no artigo 667.º, do CPP.

Estabelece este dispositivo no seu corpo que:

Interposto recurso de uma sentença ou Acórdão somente pelo Réu, pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa, ou pelo Réu e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não Recorrentes.

O texto legal exclui, pois, a possibilidade de agravação das sanções pelo tribunal superior em recurso interposto pelo arguido ou pelo Ministério Público em seu benefício. Trata-se, evidentemente, de uma garantia para o arguido,  em fase de recurso, impedindo o tribunal superior que o irá apreciar de agravar a posição do arguido. Estamos aqui perante a proibição da reformatio in pejus, que não suscita quaisquer dúvidas de interpretação.

Porém, o seu n.º 2 vem trazer excepções a esta regra, como já anteriormente se referiu, permitindo ao tribunal de recurso, no caso, o Tribunal Supremo, agravar a pena imposta desde que: (i) qualifique diversamente os factos, nos termos do artigo 447.º e 448.º do CPP, quer a qualificação respeite à incriminação, quer a circunstâncias qualificativas das penas e (ii) quando o representante do Ministério Público junto do Tribunal Supremo se pronunciar no visto inicial do processo, pela agravação da pena aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de oito dias. 

A proibição da reformatio in pejus tem, assim, um duplo fundamento: como garantia de defesa e como decorrência do princípio do acusatório.

Como garantia de defesa, destina-se a prevenir o risco de o arguido ser surpreendido com o agravamento da condenação pelo tribunal superior em recurso interposto por ele, e só por ele (reformatio directa); ou o risco de ver a sua posição agravada, após anulação do primeiro julgamento, decretada em recurso apenas da sua iniciativa (reformatio indirecta).

No caso, o Réu recorreu e, naturalmente, não pede a agravação da pena.

Porém, foi, igualmente, interposto um recurso pelo Ministério Público por imperativo legal, uma vez que a pena imposta foi superior a 8 anos.

Neste tipo de recurso, o Ministério Público está isento de apresentar alegações e conclusões, conforme expressamente resulta do artigo 690.º do CPC., pelo que, sendo assim, pode, como foi o caso, não se pronunciar sobre que ponto em concreto pretende ver alterada a decisão recorrida. Isto não pode, nem deve significar que o Ministério Público recorra no exclusivo interesse do Réu, ou que concorde com a bondade da pena. O Ministério Público cumpriu apenas um imperativo da lei. Sublinhe-se, pois, que recurso por imperativo legal não equivale a conformação com a decisão. É verdade que o Ministério Público, nestes casos, deveria ainda assim alegar e concluir sempre que discordasse parcial ou totalmente da decisão. Porém, nunca o faz, e, por isso, não se pode, nem se deve fazer a interpretação de hipotética conformação.

Não procede, pois, o recurso também nesta parte.

O Tribunal Constitucional conclui, pois, pela falta de razão do Recorrente, devendo o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

DECIDINDO

Nestes termos,

Acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em: 

Sem custas, nos termos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 21 de Abril de 2020 

 

OS JUIZES CONSELHEIROS 

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima Lima D´ Almeida B. Silva

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata