ACÓRDÃO N.º 611/2020
PROCESSO N.º 723-C/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Dilson de Rosário da Cruz Bartolomeu, com os demais sinais de identificação nos autos, recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), inconformado com o Despacho datado de 26 de Setembro de 2018, proferido em autos de polícia correccional, no Processo n.º 188/18-C, pela 10.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, que indeferiu o recurso ordinário por si interposto, com fundamento no artigo 648.º do Código de Processo Penal (CPP).
O Recorrente contesta a decisão impugnada com base na seguinte fundamentação:
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
São requisitos específicos do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 49.º da LPC:
No caso em análise, não se questiona o preenchimento dos dois primeiros requisitos, na medida em que o acto de que se recorre é uma decisão, e por outro lado, a inconstitucionalidade desse acto foi adequadamente suscitada pelo Recorrente.
É, todavia, controvertido o problema de saber se o último requisito mencionado está preenchido. A questão prévia a decidir consiste, assim, em saber se o recorrente esgotou todos os recursos ordinários que no caso cabiam antes de interpor o recurso extraordinário de inconstitucionalidade, conforme resulta do § único do artigo 49.º da LPC, que obriga a exaustão, nas instâncias comuns e demais Tribunais, dos recursos legalmente cabíveis ao caso concreto em discussão antes de recorrer ao Tribunal Constitucional.
Constitui, assim, pressuposto específico de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 49.º da LPC, o esgotamento prévio dos recursos ordinários à disposição do Recorrente.
Todavia, o legislador é omisso quanto ao que se deve entender por “esgotamento dos recursos ordinários”.
Fazendo uma abordagem comparativa com ordenamentos jurídicos semelhantes ao nosso, importa frisar que, no ordenamento jurídico português, relativamente ao sentido do esgotamento dos recursos ordinários exigido pela lei, antes da introdução no artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional de um novo número (n.º 4), havia uma divergência na jurisprudência do Tribunal Constitucional Português.
Para uma corrente, perfilhada no acórdão n.º 8/88, deveria dispensar-se a exigência de efectiva utilização de todos os recursos previstos na lei. Considerar-se-iam, pois, esgotados os recursos ordinários também quando não pudesse já interpor-se recurso por ter havido renúncia, por ter decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição ou quando não pudessem tais recursos ter seguimento por razões de ordem processual.
Segundo esta posição, a ratio essendi da exigência de esgotamento dos recursos ordinários residia num objectivo de economia processual, que levava a exigir que se obtivesse sobre a questão de constitucionalidade, antes da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, uma decisão definitiva, no sentido de insusceptível recurso – não sendo possível interpor recurso de constitucionalidade de decisões que ainda pudessem ser objecto de um recurso cuja resolução pudesse vir a tornar desnecessária a intervenção do Tribunal Constitucional.
Para outra corrente, seguida no Acórdão n.º 282/95, só deveriam considerar-se esgotados os recursos ordinários quando para essa decisão já não estivesse previsto na lei recurso ordinário, não sendo de considerar a renúncia a este, o decurso do prazo sem a sua interposição, ou outras razões processuais, e antes se exigindo que o recorrente fizesse efectiva utilização dos recursos legalmente previstos.
Para esta perspectiva, o requisito esgotamento dos recursos ordinários, significa a necessidade de obter não só uma decisão irrecorrível, mas também uma decisão produzida pelo tribunal na posição mais elevada na hierarquia judicial, para que se encontre legalmente previsto um recurso naquele tipo de processo, atento o seu valor e os outros factores determinantes da admissibilidade de recurso – uma decisão que constituísse, neste sentido, a última palavra possível segundo o esquema de recursos previsto na lei sobre a questão de constitucionalidade, antes da intervenção do Tribunal Constitucional.
Esta última posição é também defendida pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro que sedimentou o entendimento de que o recurso extraordinário só pode ser interposto se houver prévio esgotamento das instâncias ordinárias, isto é, deve ser considerado o último elo da cadeia de recursos. Veja-se, a respeito, a Súmula n.º 281: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando couber, na justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada”.
Há, assim, que averiguar se, no caso vertente, são de considerar esgotados os recursos ordinários, seja por não caber recurso do despacho recorrido, seja por, à data em que foi interposto o recurso de constitucionalidade, já se ter esgotado o prazo para interpor o recurso ordinário previsto na lei.
O presente recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto de um despacho da 10.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, que indeferiu o recurso ordinário interposto com fundamento nos termos do artigo 648.º do Código do Processo Civil (CPP).
Do despacho de que se recorre cabia, pois, reclamação para o Presidente do Tribunal para onde se pretendia recorrer, no caso, o Tribunal Supremo, conforme previsto no artigo 652.º do CPP.
Diz-nos o artigo 652.º:
“Se o juiz ou o tribunal obstarem à interposição de qualquer recurso, o interessado poderá requerer por escrito ao presidente do tribunal para onde pretenda recorrer, no prazo de cinco dias, que o mande admitir, não podendo para tal valer-se de qualquer outro meio”.
[…]
Nos presentes autos, o Recorrente interpôs directamente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade do despacho da juíza que não admitiu o recurso para o Tribunal Supremo do Acórdão da 10.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, sem apresentar a reclamação que tinha lugar, nos termos do artigo 652.º do CPP, para o Presidente do Tribunal Supremo.
Conforme foi afirmado no Acórdão do Tribunal Constitucional Português n.º 228/2005, disponível em www.dgsi.pt., A solução decorrente destes preceitos encontra a sua razão de ser no facto de a nossa Constituição ter adoptado um sistema difuso e instrumental de controlo da constitucionalidade das leis, ao impor aos tribunais o dever de “não aplicarem normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artigo 204.º da CRP), donde resulta que, quando exista uma hierarquia de tribunais com possibilidade de recurso dentro dela, apenas possam ser sindicados pelo Tribunal Constitucional, como órgão jurisdicional de fiscalização concentrada de constitucionalidade, as decisões jurisdicionais que constituam a palavra definitiva dessas ordens desses tribunais nos casos em que estes se tenham pronunciado pela conformidade da norma questionada com a Constituição e os princípios nela consignados” [cf. Cardoso da Costa – A jurisdição constitucional em Portugal – in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e ss.].
O prazo de interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade é de oito dias (artigo 51.º, n.º 1 da LPC), contados nos termos gerais do Código de Processo Civil (CPC), isto é, continuamente, e corre seguidamente, mesmo durante as férias, sábados, domingos e dias feriados (cf. artigo 51.º, n.º 2 daquela lei e artigo 144.º do CPC).
Por sua vez, o prazo para a interposição da reclamação para o Presidente do Tribunal Supremo, previsto no artigo 652.º do CPP, é de cinco dias. A notificação do despacho, que indeferiu o requerimento de recurso para o Tribunal Supremo, de 26 de Setembro de 2018, teve lugar no Tribunal no dia 10 de Abril de 2019, momento em que o réu foi preso. E, portanto, o prazo para reclamar ao Presidente do Tribunal Supremo, começou a correr no dia imediato ao da notificação (11 de Abril de 2019) – cf. artigo 688.º, n.º 2, aplicável ao Processo Penal por força do § único do artigo 1.º do CPP.
Ora, o recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto no dia 15 de Abril de 2019. Será este recurso, interposto antes de ter decorrido o prazo para reclamação, para a qual estava em tempo, já que o prazo da reclamação é de cinco dias, se pode considerar tempestivo?
Como se referiu, no presente caso, o recurso de inconstitucionalidade foi interposto imediatamente do despacho da juíza que não admitiu o recurso ordinário interposto pelo Recorrente. Assim, não se verificou no caso vertente a imposição de exaustão dos recursos ordinários.
Isto porque “o inciso recurso ordinário” contido na parte final do parágrafo único do artigo 49.º da LPC, não pode ser interpretado de forma isolada, antes de acordo com o espírito do sistema, como ensinam as lições do Ilustre Oliveira Ascensão [O Direito - Introdução e Teoria Geral, 1999, p. 386]:
“A interpretação de uma lei é sempre interpretação, não de uma lei ou norma singular, mas de uma lei ou norma que se examina atendendo à posição que ocupa no ordenamento jurídico em globo: o que quer dizer que o que efectivamente se interpreta é esse ordenamento e, como consequência, a norma singular”.
Assim sendo, no § único do artigo 49.º o legislador quis ser categórico ao consagrar como requisito de admissibilidade do recurso o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
O sentido do preceito é, porém, excluir em absoluto a possibilidade de interposição do recurso, quando exista, nas instâncias ordinárias, a possibilidade de reapreciação da decisão, seja por via de reclamação ou de recursos ordinários.
A interpretação de uma fonte normativa, tendo-se em conta a unidade do sistema jurídico, porque necessária, em nada viola o princípio constitucional da legalidade, ínsito no n.º 2 do artigo 6.º e o princípio do julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º, todos da CRA.
Do que fica exposto decorre que, em princípio, só após ter sido percorrido todo o caminho normalmente previsto na lei processual aplicável é que os interessados têm o direito de se dirigir ao Tribunal Constitucional.
Assim, por não se ter verificado o esgotamento dos recursos ordinários, no presente caso, por falta de reclamação para o Presidente do Tribunal Supremo, a quem se poderia dirigir a referida reclamação, este Tribunal é incompetente para apreciar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, cf. a alínea f) do artigo 494.º, alínea e) do artigo 288.º e n.º 1 do artigo 289.º, todos do CPC, aplicável ex.vi do artigo 2.º da LPC.
DECIDINDO
Nestes termos
Tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho (Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 22 de Abril de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria Fátima da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel Izata