ACÓRDÃO N.º 612/2020
PROCESSO N.º 790-B/2020
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade - Habeas Corpus
Em nome do Povo, acordam, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Augusto da Silva Tomás, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que indeferiu a providência de habeas corpus, que aí correu termos com o P.º n.º 383/19.
Notificado para apresentar alegações de recurso, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), o Recorrente alegou, no essencial, que:
Termina requerendo a sua restituição à liberdade, por violação da CRA e da lei, nomeadamente dos artigos 29.º, 64.º, 66.º, 67.º, n.º 1, e 68.º, todos da CRA, conjugados com os preceitos do artigo 315.º § único, alínea c), do CPP e dos artigos 40.º e 42.º da LMCPP.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos na alínea a) do artigo 49.º da LPC, norma, que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, (LPC), têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional "as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
O Recorrente foi requerente da providência de habeas corpus no processo que correu os seus termos com o P.º n.º 383/19, na 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, tendo, por essa razão, legitimidade para interpor o presente recurso.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é, apreciar a constitucionalidade do Acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, em 12 de Dezembro de 2019 que negou provimento ao pedido de habeas corpus formulado pelo Recorrente, no âmbito do Processo P.º n.º 383/19.
V. APRECIANDO
O pedido de declaração de inconstitucionalidade do acórdão recorrido assenta sobre as conclusões que, por força do disposto no artigo 690.º do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo constitucional ex vi do artigo 2.º da LPC, delimitam as questões a conhecer no presente recurso.
Ao apreciar-se as alegadas violações à CRA e à lei, é mister realçar, tal como fez o Recorrente na sua alegação, que a apreciação da constitucionalidade do acórdão posto em causa deverá ser feita atendendo aos factos vigentes no momento em que a providência extraordinária de habeas corpus foi apresentada em juízo, ou seja, às matérias anteriormente sujeitas à apreciação do Tribunal recorrido, com o requerimento de interposição da aludida providência.
A questão suscitada sobre a extemporaneidade do Despacho de prorrogação do prazo da prisão preventiva do Recorrente, proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente da causa, fundamenta-se no facto de ter sido proferido quando, alegadamente, já se tinha esgotado o seu poder jurisdicional, uma vez que já tinha sido proferido o acórdão condenatório. O Recorrente, porque inconformado, recorreu tão logo teve conhecimento do mesmo, alegadamente por intermédio do advogado de um outro co-réu, não tendo o recurso conhecido uma decisão. Entretanto, é possível verificar nos autos do processo principal que o Recorrente foi efectivamente notificado desse Despacho aos 20 de Setembro de 2019.
Assim, está-se perante um facto que constituiu objecto de um recurso ordinário interposto pelo ora Recorrente, e que este, enquanto Requerente, pretendeu que fosse apreciado de igual modo pelo Tribunal Supremo em sede da providência extraordinária do habeas corpus, tendo esse Tribunal considerado, no entanto, que este facto não se enquadrava em nenhum dos requisitos do § único do artigo 315.º do CPP.
Ora, este Tribunal não comunga desta posição defendida no Aresto sindicado, uma vez que logo a alínea a) do § único dessa disposição legal estabelece como causa atendível de ilegalidade o facto de ter sido ordenada por quem para tanto não tenha competência legal, pelo que deveria o Tribunal Supremo ter tomado uma posição sobre a legalidade do Despacho de prorrogação da prisão preventiva, independentemente dessa decisão ter sido objecto de recurso ordinário.
Pelo que antecede, resulta claro que este Tribunal não partilha a concepção restritiva do habeas corpus segundo o qual, por ser uma providência extraordinária, tem a aplicação reservada àqueles casos em que inexistem outros meios processuais, nomeadamente recursos ordinários, para fazer cessar a ofensa ilegítima ao direito à liberdade de ir e vir. Efectivamente, “o habeas corpus é uma providencia extraordinária e expedita destinada a assegurar, de forma especial, o direito à liberdade constitucionalmente garantido e que visa reagir de modo imediato e urgente, contra o abuso de poder em virtude de detenção ou prisão, efectiva e actual, ferida de ilegalidade”, que “…pode ser requerido com base em vários fundamentos, como sejam: (…) ter sido a privação de liberdade ordenada ou efectuada por entidade incompetente…” (Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, em Constituição de República de Angola Anotada Tomo I, anotações ao artigo 68.º).
Compulsados os autos do processo principal, que correm termos no Tribunal Constitucional, em virtude da interposição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade do acórdão proferido pelo Plenário do Tribunal Supremo, verifica-se efectivamente que o processo foi decidido em primeira instância a 15 de Agosto de 2019, tendo o ora Recorrente interposto recurso, e o Tribunal a quo admitido, ainda durante a sessão de leitura e publicação do acórdão ocorrida na mesma data. O processo subiu para o Plenário do Tribunal Supremo, o Tribunal ad quem, a 27 de Setembro de 2019, porém, o Despacho de prorrogação do prazo da prisão preventiva, proferido pelo Juiz Presidente da causa, no tribunal a quo, é de 19 de Setembro de 2019 (fls. 5.363).
Tem razão o Recorrente quando alega que com a prolação do acórdão datado de 15 de Agosto de 2019 ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz Presidente do Tribunal de primeira instância quanto à matéria da causa.
Entretanto, no que à prisão preventiva diz respeito, estava o Juiz Presidente da causa obrigado a proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva quando essa decisão foi proferida, sob pena de irregularidade, segundo os termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 39.º da LMCPP. Não o tendo feito, tinha ainda a possibilidade de suprir essa irregularidade quando o processo lhe fosse concluso pela primeira vez, conforme o previsto no § 1.º do artigo 100.º do CPP. E assim o fez. Nessa altura, o Juiz Presidente da causa entendeu ser conveniente a prorrogação do prazo da prisão preventiva, em consonância com os números 2 e 3 do artigo 40.º da LMCPP.
Portanto, este facto não pode ser considerado fundamento para a ilegalidade da prisão, pelo que não se reconduz à alínea a) do § único do artigo 315.º do CPP.
Quanto ao facto de o Tribunal a quo, entendido como o Tribunal de primeira instância, que proferiu o acórdão condenatório, não se ter pronunciado sobre o recurso interposto pelo Recorrente contra o Despacho que prorrogou a prisão preventiva, não podia o Tribunal recorrido pronunciar-se, já que essa alegada omissão de pronúncia ou falta de celeridade do Tribunal Supremo não é matéria para ser julgada no âmbito da providência de habeas corpus, cuja decisão é objecto do presente recurso.
No tocante ao alegado excesso de prisão preventiva que já se verificava à altura da interposição da providência extraordinária em causa, atente-se como assente que o Recorrente foi detido no dia 21 de Setembro de 2018, e a providência foi requerida no dia 04 de Dezembro de 2019.
A 19 de Setembro de 2019 o Juiz Presidente da causa proferiu um Despacho de prorrogação do prazo da prisão preventiva, pelo que o prazo máximo foi alongado por mais 2 (dois) meses, ou seja, para 14 (catorze) meses. Antes ainda, a 15 de Agosto de 2019, foi proferido o acórdão condenatório, que corresponde à condenação em primeira instância.
Por sua vez, o Plenário do Tribunal Supremo, enquanto Tribunal ad quem, notificou o Recorrente do seu acórdão a 02 de Dezembro de 2019 (fls. 5.503 a 5.508).
Os prazos máximos de prisão preventiva estão estabelecidos no artigo 40.º da LMCPP que referem que a prisão preventiva deve cessar quando desde o seu início decorrerem 12 (doze) meses sem condenação em primeira instância sendo que este prazo pode ser acrescido de dois meses em casos de especial complexidade, por despacho devidamente fundamentado.
No presente caso e conforme enfatizado pelo douto acórdão do Tribunal Supremo, objecto do presente recurso, a providência não foi concedida por falta de objecto, uma vez que, à data da sua interposição, “… já havia sido proferida decisão do Plenário do Tribunal Supremo, aos 19 de Setembro de 2019, cujas questões suscitadas pelo Requerente, foram clara e exaustivamente esclarecidas e decididas no referido acórdão…”
Como as questões referentes ao excesso da prisão preventiva não foram tratadas no acórdão do Plenário do Tribunal Supremo, como não era suposto tratar, a interpretação que se faz do Aresto ora impugnado, que tem em consideração a vista do Digno Representante do Ministério Público junto da mais alta instância de jurisdição comum, é a de que o Tribunal Supremo considerou que, com a prolação do acórdão do Plenário do Tribunal Supremo, a medida cautelar aplicada se extinguiu, passando o Recorrente a cumprir, desde a data desse acórdão, a pena de prisão efectiva de que tinha sido condenado.
Impõe-se revisitar as disposições legais atinentes. Por um lado, a alínea e) do n.º 1 do artigo 24.º da LMCPP estabelece que as medidas de coacção aplicadas ao arguido extinguem-se com “O trânsito em julgado da sentença condenatória”. Por outro, determina o artigo 677.º do CPC que “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação, nos termos dos artigos 668.º e 669.º”. Significa dizer que nos termos do Código de Processo Civil (aplicável subsidiariamente ao processo penal, segundo o § único do artigo 1.º do CPP), sempre que da decisão que não couber apelação ou agravo, transitou em julgado.
Perante este quadro legal, considera-se assente que a partir do momento em que o Recorrente passou à condição de condenado com trânsito em julgado da decisão proferida pelo Plenário do Tribunal Supremo, extinguiu-se a medida de coacção de prisão preventiva que vigorava até então, pelo que não se concebe que em virtude da interposição do presente recurso, o Recorrente retorne à condição carcerária de preventivamente preso.
No caso em apreciação não existia mais a possibilidade de o Recorrente interpor um recurso extraordinário para o Tribunal Pleno, pelo que a decisão condenatória deste transitou em julgado, não tendo mais este Tribunal de se pronunciar sobre a medida de coacção, uma vez que se tinha extinguido com a condenação definitiva.
Este entendimento é o único consentâneo com a natureza do Tribunal Constitucional, que tem competência especializada em matérias de natureza jurídico-constitucional, e que, por essa razão, não poderia reapreciar o mérito ou quaisquer nulidades da decisão impugnada que não podem ser objecto de um recurso de inconstitucionalidade.
Assim sendo, tendo a decisão do Plenário do Tribunal Supremo transitado em julgado, o recurso interposto ao Tribunal Constitucional, embora lhe tenha sido conferido efeito suspensivo, não torna ilegal a prisão do Recorrente, porquanto a alegada ilegalidade foi acautelada pela decisão definitiva do Plenário do Tribunal Supremo, que o condenou à pena de prisão efectiva.
Nesse sentido, encontramos na doutrina a referência da Dra. Rosa Maria Guerra, na obra “recurso extraordinário de inconstitucionalidade, problemas de configuração”, Edição 2017, páginas 198 e seguintes, segundo a qual “…Não existem na LPC normas que disciplinem a matéria dos efeitos do recurso extraordinário de inconstitucionalidade. Quanto aos efeitos de interposição, existe o artigo 44.º expressamente dirigido ao recurso ordinário de inconstitucionalidade mas que por força do artigo 52.º da LPC tem sido aplicável ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Sendo o recurso extraordinário de inconstitucionalidade um mecanismo que se interpõe depois de previamente esgotada a via judicial comum, quer isto dizer que quando o recurso é recebido no Tribunal Constitucional é porque já foi objecto de apreciação em outras jurisdições. Se assim é, o efeito compatível com o novo sistema de acesso ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade consiste em atribuir à interposição de recurso contra sentenças o efeito natural, ou devolutivo, pretendendo-se o mesmo efeito para os recursos extraordinários contra os actos administrativos (cfr. artigos 60.º e ss. do Decreto-Lei n.º4-A/96…”
O Tribunal Constitucional entende, então, que o Recorrente não está sob qualquer medida de coacção a partir do momento em que foi julgado e condenado. Neste sentido se decidiu no Acórdão n.º 335/2014, de 10 de Setembro, onde expressamente se refere que “…o Tribunal Constitucional não pode eximir-se de referir o facto alegado pelos Recorrentes quanto ao excesso da sua prisão preventiva no momento da interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade com base no seu pedido de habeas corpus. Acontece porém, que é do conhecimento oficioso, pelos processos que posteriormente deram entrada neste Tribunal, que os Recorrentes foram já condenados, estando a cumprir a pena que lhes foi determinada relativamente a qual já não é admissível recurso ordinário”.
Em conclusão, este Tribunal considera a inexistência de violação do direito à liberdade e do direito a não ser mantido em prisão preventiva fora dos prazos legalmente estabelecidos, por aplicação da disposição da alínea e), do n.º 1, do artigo 24.º da LMCPP e do § 3.º do artigo 308.º do CPP.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos da segunda parte do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC).
Notifique.
Plenário do Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 28 de Abril de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente e Relatora)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D’Almeida B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata