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ACÓRDÃO N.º 614/2020

 

PROCESSO N.º 772-D/2019

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I. RELATÓRIO

Gaspar Domingos da Silva Famorosa, devidamente identificado nos autos, interpôs, junto deste Tribunal Constitucional, o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), impugnando o Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no Processo n.º 16982, que negou provimento ao seu pedido de declaração de nulidade da sentença recorrida.

Em 1.ª instância, o então réu foi condenado pelo crime de violação, p.p. pelo artigo 393.º do Código Penal (CP), na pena de oito (8) anos de prisão maior e no pagamento de Kz. 75 000,00 (setenta e cinco mil kwanzas) de taxa de justiça e Kz. 250 000,00 (duzentos e cinquenta mil kwanzas) a título de indemnização aos familiares da vítima.

Inconformado, interpôs recurso junto da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, onde pediu; i) que fossem declaradas nulas todas audiências de julgamento, porque realizadas sem observância da lei em matéria da constituição de tribunais colectivos; ii) que fosse declarada nula a sessão da leitura às respostas dos quesitos e do acórdão por não cumprimento da obrigação necessária de haver três Juízes para compor o Tribunal Colectivo; e iii) que fosse o réu absolvido por insuficiência de prova.

O Tribunal Supremo, no Acórdão de 17 de Janeiro de 2019, decidiu confirmar a sentença proferida pelo tribunal a quo, tendo apenas perdoado a pena de prisão do réu em ¼, por força da Lei n.º 11/16, de 02 de Agosto (Lei de Amnistia).

Novamente inconformado, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade junto deste Tribunal, alegando em síntese que:

  1. O Tribunal Supremo não deu provimento à nulidade invocada pelo Recorrente, segundo a qual o Tribunal de primeira instância realizou o julgamento sem se constituir em Tribunal Colectivo, conforme orientam os nºs 2 e 3 do artigo 45.º da Lei n.º 2/15, de 02 de Fevereiro, Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum (LOFTJC). Pelo contrário, confirmou a decisão do tribunal a quo;
  2. Deste modo, o Tribunal Supremo violou a Constituição, por ter efectuado julgamento sem observância da supra referida Lei;
  3. O fundamento do Tribunal Supremo segundo o qual, por Resolução do Conselho Superior da Magistratura Judicial de 2015, suspendeu-se a aplicação da (LOFTJC), por insuficiência do número de Magistrados para a sua implementação cabal, é inconstitucional porque não pode, dentro dos limites da divisão de poderes, um tribunal suspender a aplicação de uma lei;
  4. A LOFTJC, no seu artigo 93.º, apenas dá competência ao Conselho Superior da Magistratura Judicial para deliberar, excepcionalmente, quanto à entrada em vigor, a título experimental ou definitivo da lei;
  5. O processo foi instruído com várias irregularidades, adulterando a verdade dos factos, nomeadamente a história da ofendida e a forma como foram obtidos os elementos probatórios; foi posta em causa a realização de um julgamento justo, conforme dispõe o artigo 72.º da CRA;
  6. A ofendida declarou que seu pai era comerciante, quando, na verdade, é oficial da Polícia Nacional, escondendo a verdade;
  7. O tribunal de primeira instância deu relevância ao retrato falado, que foi efectuado em violação das mais elementares regras do processo penal, sendo certo que o Director Provincial de Investigação havia solicitado um retrato falado dos presumíveis criminosos, por intermédio do ofício n.º 0362/DCCVD/DPIC/2015. Porém, o mesmo já havia sido feito sem especificar quem ordenou tal diligência;
  8. Foram cometidas violações graves à Constituição: foram violados os princípios da separação de poderes entre o Poder Legislativo e o Poder Judicial e o princípio da verdade material, que preside o processo penal.

O Recorrente termina requerendo a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, na parte em que se recusa a declaração de nulidade quanto à constituição do Tribunal de primeira instância, e de violação do direito a um julgamento justo, na parte que toca à matéria probatória, isso é, como foi obtido o retrato falado e a forma como foi instruído o processo.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA 

O Tribunal Constitucional é competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais, dos cidadãos, nos termos da alínea a) e do parágrafo único do artigo 49.º da LPC.

III. LEGITIMIDADE 

A alínea a) do artigo 50.º da LPC estabelece que têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

Têm legitimidade, em processo penal, para interpor recurso ordinário, os réus cuja decisão lhes tenha sido desfavorável, nos termos do n.º 2 do artigo 647.º do Código de Processo Penal.

Nesta perspectiva, o Recorrente tem legitimidade, pois, o Tribunal Supremo confirmou a decisão da primeira instância, mantendo a sentença condenatória.

IV. OBJECTO 

Constitui objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade a verificação da constitucionalidade do Acórdão da 2.ª Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no Processo n.º 16982, que julgou não provado e improcedente o recurso e manteve a decisão recorrida

V. APRECIANDO 

Antes de mais, importa, para o caso, precisar que, em sede do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, foi transversalmente colocada a questão da inconstitucionalidade da Resolução n.º 1/15, de 29 de Abril, matéria própria de um recurso ordinário de inconstitucionalidade. 

Assim, tal como foi colocada a referida questão neste recurso de inconstitucionalidade, não se irá apreciar a inconstitucionalidade de uma norma, quer seja decorrente da deliberação do CSMJ nos termos da Resolução n.º 1/15 ou da norma prevista no artigo 93.º da LOFTJC, mas apenas aferir a inconstitucionalidade do acto judicial em si consubstanciado no acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo por, alegadamente, violar princípios constitucionais. Caso contrário, somente em sede de um recurso ordinário de inconstitucionalidade poderia, nos termos previstos no artigo 36.º e ss da LPC, decidir-se sobre a inconstitucionalidade ou não da Resolução n.º 1/15, do CSMJ, que determinou a suspensão do artigo 45.º da LOFTJC. Assim sendo, apenas cabe, por ora, determinar, em face da matéria alegada, se o Acórdão do Tribunal Supremo, que deixou de conceder provimento à nulidade invocada pelo Recorrente, desconsiderou normas e princípios constitucionais, designadamente, o princípio da separação de poderes e do julgamento justo.  

  1. Sobre a violação do princípio da separação de poderes entre o Poder Legislativo e o Poder Judicial. 

O princípio da separação de poderes e interdependência de funções, vem previsto no artigo 2.º da Constituição da República de Angola (como um dos princípios integrantes do Estado democrático de direito, encerrando em si a teoria da relação entre os três pilares do poder do Estado) e no n.º 3 do artigo 105.º do mesmo diploma, neste, como forma de organização do poder do Estado. Assim sendo, no âmbito do constitucionalismo moderno, a separação de poderes significa mais do que a reserva de competências entre os vários órgãos do poder do Estado entre si, de acordo com Jorge Miranda/Rui Medeiros, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo 1, 2ª edição, págs. 110 e 111, “…não tanto a pluralidade de órgãos quanto a distribuição de competências em moldes funcionalmente adequados, na qual a par de uma conexão mais ou menos próxima com a função do Estado, sobreleva o intuito de divisão, de desconcentração e de limitação de poder. Por isso, não pode deixar de ao mesmo tempo, postular a interdependência entre os três poderes.”

De acordo com o Professor JJ. Gomes Canotilho, a divisão de poderes, impõe uma individualização dos momentos essenciais da directiva fundamental da organização do poder político nomeadamente: primeiro, a separação das funções estaduais e atribuição das mesmas a diferentes titulares (separação funcional, institucional, e pessoal); segundo, a interdependência de funções através de dependências recíprocas (de natureza funcional, orgânica ou pessoal); terceiro, o balanço ou controle das funções, a fim de impedir um super poder com a consequente possibilidade de abusos e desvios (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição págs. 556 e ss).

Contudo, o Recorrente veio, essencialmente, por via do presente recurso, impugnar o acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, por ter este decidido que não houve violação do disposto na LOFTJC relativamente à composição do Tribunal que julgou o Recorrente em primeira instância.

Com efeito, estipulam os nºs 1 e 2 do artigo 45.º, da LOFTJC, o seguinte:

  1. Os Tribunais de Comarca podem funcionar como Tribunal Singular ou Colectivo.
  2. É sempre obrigatório o funcionamento como Tribunal colectivo nas causas cíveis de valor superior ao dobro da alçada do Tribunal da Relação, ou, em matéria criminal, sempre que o crime seja punível, em abstracto, com pena superior a cinco anos.

No caso vertente, o Recorrente, mediante querela do Ministério Público, foi inicialmente pronunciado nos autos como autor material de um crime de roubo concorrendo com violação, p.p pelo artigo 434.º do Código Penal (CP), acabando por ser, finalmente, condenado pelo crime de violação, p.p pelo artigo 393.º do CP, cuja penalidade abstracta vai de 2 a 8 anos de prisão maior, levando a crer que o tribunal que julgou o Recorrente teria de estar necessariamente constituído por mais de um Juiz, de acordo com o estipulado no n.º 3 do artigo 45.º da LOFTJC.

Todavia, resulta do disposto no n.º 1 do artigo 91.º, da mesma LOFTJC, que a instalação dos Tribunais de Comarca nas diversas províncias do país, obedece ao princípio do gradualismo, que é estabelecido em função das condições materiais, humanas e técnicas existentes.

Sequencialmente, prevê o capítulo referente às disposições transitórias no diploma supracitado, precisamente no artigo 93.º, “que os Conselhos Superiores das Magistraturas Judicial, e do Ministério Publico, tomam deliberações no âmbito da sua competência, necessárias à entrada em vigor a título experimental e a título definitivo da presente lei”. 

Enquanto que o n.º 3 do artigo 95.º do mesmo diploma legal estabelece que “os tribunais provinciais e municipais vigentes antes da entrada em vigor da presente lei, mantêm a sua jurisdição até os novos tribunais de comarca serem instalados na respectiva província”

Logo, pelo acima expendido, este Tribunal não considera que o acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, tenha contrariado princípios ou violado direitos constitucionais, ao decidir que não eram nulas as audiências de julgamento realizadas na primeira instância sem a constituição do tribunal colectivo, tendo em atenção que a constituição de tribunais colectivos só é obrigatória nos tribunais de comarca já instalados e não naqueles tribunais, cuja jurisdição não tenha ainda sido transferida para um tribunal de comarca.

Tal significa, que, no caso sub judice, ainda que não existisse a Resolução do Conselho Superior da Magistratura Judicial, não seria exigível ao tribunal, em que o Recorrente foi julgado em primeira instância, constituir-se em tribunal colectivo, posto que ele é um dos tribunais que ainda funciona como tribunal provincial.

Ou seja, não foi devido à referida Resolução que a constituição do tribunal foi singular. Assim, o Recorrente vem levantar uma questão para a qual nem sequer tem legitimidade material. Se o tribunal que o julgou é legalmente singular, não há razões para se proceder hic et nunc à discussão sobre a constitucionalidade da Resolução n.º 1/15, de 29 de Abril, do Conselho Superior da Magistratura Judicial.

A Resolução não influenciou nem fundamentou o procedimento nem a decisão do tribunal que julgou a matéria de facto. Na verdade, voluntária ou involuntariamente, a evocação da Resolução consubstancia-se numa mera manobra dilatória.

Esta discussão seria objecto de um recurso ordinário de inconstitucionalidade como se referiu acima, caso a legitimidade do Recorrente o permitisse, através de uma ligação entre a Resolução e a matéria procedimental sub judice. Embora se tivesse constituído uma legitimidade formal para interposição do presente recurso, não estão criadas as condições processuais para a discussão da matéria proposta quanto à violação do princípio da separação de poderes.   

  1. Violação do direito a um julgamento justo e conforme

O Recorrente alega que, no que tange a matéria probatória, o retrato falado foi obtido à margem das regras do processo penal, pois terá sido efectuado após o reconhecimento do Réu, aqui Recorrente, pelo que se violou o princípio constitucional do julgamento justo e conforme, em matéria probatória.

O direito a um julgamento justo e conforme, nos termos do artigo 72.º da CRA, quer significar que todo o acto praticado por autoridade judicial, para ser considerado válido, eficaz e completo, deve seguir todas as etapas previstas na lei.

Quanto à matéria de prova em processo penal, ela é produzida em dois momentos específicos: na fase de instrução e na fase de julgamento. Nesta segunda fase, toda a prova produzida na instrução é reapreciada pelo tribunal, o que ajudará a criar, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, o seu juízo de certeza.

Ora, compulsados os autos, verifica-se que, além do retrato falado, outros meios de prova foram carreados ao processo, dentre eles o auto de reconhecimento a fls. 24.

Também ocorre que, em sede de audiência de julgamento, toda a prova produzida obedeceu os procedimentos legais, pelo que o Juiz da primeira instância deu os factos como provados de acordo a sua livre convicção pessoal, em função das provas produzidas no processo, atendendo ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artigo 655.º do Código Processo Civil (CPC), aplicado a título subsidiário ao processo penal.

Face ao exposto, o Tribunal Constitucional considera que não existe qualquer violação ao princípio constitucional do julgamento justo e conforme, no Acórdão recorrido.

 DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: 

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da LPC.

 

Tribunal Constitucional em Luanda, 29 de Abril de 2020

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

 Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente- declarou-se impedido)

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva 

Dr. Carlos Magalhães 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira 

Dra. Maria da Conceição Almeida Sango 

Dra. Maria de Fátima L. A. B. da Silva (Relatora) 

Dr. Simão de Sousa Victor (declarou-se impedido)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata