ACÓRDÃO N.º 617/2020
PROCESSO N.º 736-D/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Alberto Paixão Branda, com os demais sinais de identificação nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 295/17.
O Recorrente foi acusado, pronunciado e condenado pela tentativa do crime de concussão, p.p. pelo artigo 314.º do Código Penal (CP).
O tribunal a quo, tendo em consideração as circunstâncias atenuantes que militavam a favor do Recorrente (o facto de se tratar de réu primário, o crime não ter sido consumado, ser de natureza patrimonial e reparável), lançou mão da faculdade de atenuação extraordinária da pena, estabelecida no n.º 1 do artigo 94.º do CP, tendo sido condenado a 3 (três) anos de prisão maior, pelo crime de concussão na sua forma tentada.
Insatisfeito com a decisão, o Recorrente interpôs recurso para o Tribunal Supremo.
O Tribunal Supremo julgou sem efeito o requerimento de interposição de recurso, pelo facto de o Recorrente não ter pago a devida taxa, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 153.º do Código das Custas Judicias (CCJ).
Por discordar da decisão, veio o Recorrente junto desta instância, interpor o presente recurso com base nas seguintes alegações:
“…Recorre da condenação pela prática do crime de concussão na sua forma tentada;
… Suscita previamente a inconstitucionalidade do Acórdão por violação dos artigos 29.º n.º 1, 67.º n.º 1 e 2 e 174.º da CRA, porquanto foi vedado ao Recorrente a garantia constitucional do direito ao recurso, denegando justiça… pelo facto de o Recorrente não ter pago as custas para interposição de recurso”.
O Recorrente terminou as alegações pedindo que se dê provimento ao recurso.
O Processo foi à vista do Ministério Público,
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) e § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional e do prévio esgotamento dos recursos ordinários.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é apelante no Processo n.º 295/17 que deu lugar à decisão recorrida, pelo que tem legitimidade para apresentar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, que dispõe: “têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é o acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que julgou sem efeito o recurso interposto pelo Recorrente, por falta de pagamento das custas judiciais, consagradas no n.º 2 do artigo 153.º do Código das Custas Judiciais (CCJ).
V. APRECIANDO
A. Questão prévia
O Recorrente invoca, nas suas alegações, junto desta instância que “recorre da sua condenação pela prática do crime de concussão na sua forma tentada, porém, suscita previamente a inconstitucionalidade do Acórdão por violação dos artigos 29.º n.º 1, 67.º n.º 1 e 2 e 174.º da CRA, porquanto foi vedado ao Recorrente a garantia constitucional do direito ao recurso… pelo facto de não ter pago as custas para interposição do recurso”.
Decorre dos autos, de fls. 486 v, que o Tribunal Supremo não conheceu o mérito do recurso ordinário interposto pelo Recorrente, por falta de pagamento das custas judiciais.
O Recorrente em sede de alegações, pede que o Tribunal Constitucional aprecie as questões de fundo, que não foram analisadas pelo Tribunal Supremo.
Tendo em consideração que o acórdão do Tribunal Supremo não conheceu o mérito do recurso, por falta de pagamento das custas, o Tribunal Constitucional está vedado a se debruçar sobre as questões que não foram objecto de apreciação pelo acórdão recorrido.
Neste sentido, a pretensão do Recorrente, no que respeita a reapreciação da decisão recorrida, não pode ser atendida por este tribunal, pelas razões acima referidas.
Assim sendo, o Tribunal Constitucional cingir-se-á unicamente a analisar a constitucionalidade do acórdão recorrido.
B. Analisemos
O Recorrente em sede de alegações invoca que “foi vedada a sua garantia constitucional do direito ao recurso, denegando-se-lhe justiça… pelo facto de não ter pago as custas para interposição de recurso, o Tribunal Supremo ao decidir como decidiu violou o n.º 1 do artigo 29.º e o n.º 1 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola (CRA) ”.
A falta de pagamento das custas judiciais dá lugar ao não conhecimento do recurso?
Consta dos autos, a fls. 467, que o Recorrente foi notificado para fazer o pagamento das custas do processo, mas este não o fez, nem juntou, nenhum documento que comprovasse insuficiência de meios económicos, conforme o disposto no Decreto-Lei n.º 15/95, de 10 de Novembro, sobre a assistência judiciária.
O n.º 1 do artigo 292.ºdo Código de Processo Civil (CPC) estabelece que “os recursos são julgados desertos pela falta de preparo ou de pagamento de custas nos termos legais…”.
Face ao disposto no n.º 1 do artigo supra referido, o não pagamento das custas devidas no processo é causa bastante para o não conhecimento do recurso. O Tribunal Supremo ao decidir como decidiu agiu em conformidade com o estabelecido no n.º 1 do artigo 292.º CPC.
Não obstante o preceituado no artigo 292.º do CPC, o Tribunal Constitucional atento à essencialidade dos direitos fundamentais em causa tem já jurisprudência firmada no sentido derrogatório daquela cominação legal, vide o Acórdão n.º 393/2016, conforme transcrição abaixo;
“… é entendimento do Tribunal Constitucional que a falta ou a mora no pagamento das custas, vistos os princípios e valores que emanam da Constituição, não pode ser sancionada com a deserção e o consequente sacrifício do direito fundamental ao recurso e a tutela jurisdicional efectiva”.
Efectivamente, o Tribunal Constitucional entende que a cominação liminar da deserção do recurso por falta de pagamento de preparos ou custas judiciais discrepa com os princípios e valores que emanam da Constituição da República de Angola, maxime, o do direito ao recurso, estabelecido no n.º 6 do artigo 67.º da CRA.
De salientar que, uma norma constitucionalmente consagrada não pode ser prejudicada por questões meramente processuais, a aplicação supletiva do CPC em sede de direito constitucional deve respeitar o princípio da adequação funcional.
Recorrendo ao direito comparado, à semelhança do CPC angolano, o CPC português, antes da sua revisão, estabelecia que a falta de pagamento das custas tinha como cominação a deserção do recurso.
O disposto no artigo 281.º do CPC português, que tem como epigrafe “Deserção da instância e dos recursos”, consagra que:
Tendo em atenção o que estabelece o artigo 281.º em análise, constata-se que a falta de pagamento das custas, já não é causa para a deserção do recurso.
A alteração introduzida no CPC português denota que a falta de pagamento de custas, já não constitui causa de deserção do recurso, solução legal que está em conformidade com os preceitos estabelecidos na Constituição da República Portuguesa (CRP) e que não difere da CRA. Neste sentido, consagra o direito ao recurso como um direito fundamental.
Neste contexto, verifica-se que o n.º 1 do artigo 292.º do CPC, não está em harmonia com a CRA pois o mesmo restringe direitos, liberdades e garantias estabelecidas na carta magna.
Como já foi acima referido, sempre que uma norma ordinária contraria ou esteja em colisão com uma norma constitucional, aquela deve ser afastada ou sacrificada em prol desta.
Com efeito, o ordenamento jurídico-constitucional angolano não se compadece com a cominação estabelecida no n.º 1 do artigo 292.º do CPC.
Assim sendo, no caso vertente, a deserção implicou denegação de justiça ao Recorrente, uma vez que viu a sua situação penal desatendida em virtude do não pagamento das custas devidas.
O Tribunal Constitucional, enquanto tribunal dos direitos fundamentais e garante da Constituição, considera que ponderados os valores em causa, sem prejuízo do pagamento das custas judiciais devidas, a tutela jurisdicional não pode ser preterida por razões de ordem económica ou formal.
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional entende que o acórdão recorrido violou o n.º 1 do artigo 29.º e o n.º 1 do artigo 67.º da CRA.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, da LPC.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, Luanda, aos 20 de Maio de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dr. Maria Fátima de Lima A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata