ACÓRDÃO N.º 618/2020
PROCESSO N.º 752-D-2019
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Enoch Mendes da Conceição Vasconcelos, melhor identificado nos autos, interpôs recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo, proferido na Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro, no âmbito de uma acção especial de restituição de posse, no Processo n.º 1546/10.
Inconformado com a decisão proferida no referido Acórdão de 28 de Março de 2019, veio o Recorrente apresentar as alegações como se segue:
O Recorrente termina as alegações pedindo que o presente recurso seja julgado procedente; que se declare inconstitucional, ilegal e nulo o acórdão do Tribunal Supremo, uma vez que violou o artigo 2.º da Constituição da República, que impõe o primado da Constituição e da Lei, o artigo 72.º da Constituição, que impõe o reconhecimento a todos de julgamento justo, célere e conforme a lei, o artigo 37.º da Constituição, que garante a todos o direito à propriedade privada e à sua transmissão.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) e do § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade e do prévio esgotamento dos recursos ordinários.
III. LEGITIMIDADE
Conforme a lei, tem legitimidade para interpor recurso quem, sendo parte na causa, tenha ficado vencido, nos termos do n.º 1 do artigo 680.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável, ex vi do artigo 2.º da LPC.
Assim, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto apreciar a constitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo que declarou nula a sentença proferida na acção especial de restituição de posse, que correu os seus termos na 1.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial do Cuanza Sul e, em consequência, não reconheceu a posse do Autor, aqui Recorrente.
V. APRECIANDO
O Recorrente veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, que não reconheceu a posse do Autor, aqui Recorrente, com fundamento de que o Réu detém a posse e que tal foi adquirida por constituto possessório, nos termos em que dispõe a alínea c) do artigo 1263.º e do artigo 1264.º, ambos do Código Civil.
Nas suas alegações, referiu o Recorrente que o Tribunal Supremo, no seu douto acórdão, violou o artigo 2.º da Constituição, que dispõe sobre o primado da Constituição e da Lei; o artigo 72.º da Constituição, que prevê o direito a todo o cidadão a julgamento justo, célere e conforme a lei, o artigo 37.º da Constituição, que garante a todos o direito à propriedade privada e à sua transmissão.
Debruçando sobre as conclusões que o Recorrente formulou nas suas alegações, cabe apreciar as violações invocadas por este, começando do modo seguinte:
A. Princípio do Estado democrático de direito, artigo 2.º da CRA
Relativamente à violação do princípio do Estado democrático de direito, embora o Recorrente o invoque, não se vislumbra nas suas alegações fundamento bastante de que tenha ocorrido.
Sobre este princípio, fundante da República de Angola, importa expô-lo, descrevendo a sua norma, segundo a qual “a República de Angola é um Estado democrático de direito que tem como fundamentos a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de organização política e a democracia representativa e participativa”; “a República de Angola promove e defende os direitos e liberdades fundamentais do homem, quer como indivíduo quer como membro de grupos sociais organizados, e assegura o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo, executivo e judicial, seus órgãos e instituições bem como por todas as pessoas singulares e colectivas”.
O princípio plasmado nessa disposição normativa é amplo, cabendo a quem o invoca o dever de restringi-lo a uma particularidade, o que não acontece nas alegações do Recorrente.
Sucede, de acordo com as anotações ao n.º 1 do artigo 2.º da CRA, que o Estado democrático de direito se subdivide em vários outros princípios, como o i) da constitucionalidade dos actos do Estado, ii) divisão de poderes, iii) legalidade da administração, iv) garantia da protecção jurídica e abertura da via judiciária que assegura ao cidadão uma defesa sem lacunas, v) proporcionalidade ou proibição dos excessos, sustentado no princípio enformador da legalidade da administração, vi) soberania popular, vii) representatividade e viii) do sufrágio, que se manifesta no direito de voto para escolher representantes; - vide a esse respeito Constituição da República de Angola anotada, Araújo, Raul e Rangel, Elisa, Tomo I, Luanda 2014, págs. 183 e 184.
Destarte, não se precisando de que forma o acórdão recorrido teria violado o princípio plasmado no artigo 2.º da CRA, não se tem como verificar se o aresto da Câmara do Cível e Administrativo violou ou não o aludido princípio constitucional.
B. Direito a julgamento justo e conforme, artigo 72.º da CRA
O Recorrente invoca ter havido a violação do direito a julgamento justo e conforme, pelo facto do acórdão recorrido sustentar que o segundo possuidor adquiriu a Fazenda n.º 4, situada na Chiloemba 2, comuna de Kissanga Kungo, Município da Cela, por constituto possessório, nos termos da alínea c) do artigo 1263.º e do 1264.º, ambos do CC e ter, por conseguinte, declarado nula a sentença da 1ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial do Cuanza Sul, que lhe restituíra a posse sobre a mesma Fazenda.
Segundo o Recorrente, o acórdão do Tribunal Supremo ao apreciar a sentença recorrida, violou essa garantia constitucional, na medida em que ao sustentar que o Autor nunca deteve a posse da referida parcela, e que de todo não existe nos autos indícios que o demonstrem, esqueceu de considerar que ficou provado nos autos (doc.1, fls. 7) que a cessão onerosa da referida parcela de terreno ao Autor, ocorreu a 25 de Abril do ano de 2005, mediante declaração feita pelo senhor Fernando Pedro, de resto, facto igualmente confirmado pelo depoimento da testemunha Elias Manuel Ferreira, conforme auto de inquerição constitutivo de fls. 131.
Ora, diante de tal argumentação do Recorrente, sem contudo se apartar do domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade, no caso, do objecto do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, cabe a esta jurisdição constitucional apenas, apreciar se a decisão recorrida (acórdão do Tribunal Supremo) violou ou não a garantia constitucional referente ao julgamento justo e conforme e o consequente direito fundamental invocado, o que para tal importará determinar se o acórdão do Tribunal Supremo ora recorrido, fez ou não letra morta sobre os factos alegados e provados na sentença da primeira instância que deu ganho de causa ao Autor, ora Recorrente.
Vejamos melhor:
No caso introduzido pelos autos, à semelhança do que refere Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, in Direitos Reais, 2.ª edição, Editora Almedina, Fevereiro de 2011, págs. 125-126, traduz “a existência de um concurso de posses, na forma de conflito de posses, em que existam duas posses em conflito sobre a mesma coisa, o qual terá que ser resolvido com a atribuição da posse a um dos litigantes.”
O acórdão recorrido decidiu não reconhecer a posse do autor ao contrário da sentença da primeira instância que lhe deu ganho de causa, mas isso por si só não significa que o acórdão recorrido tenha beliscado a garantia constitucional do direito a julgamento justo e conforme.
Com efeito extrai-se do disposto no artigo 72.º da CRA, referente a secção de garantias dos direitos e liberdades fundamentais, que, “a todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei.”
Nesta ordem de raciocínio, impõe-se aqui precisar sobre o que consiste a protecção ao direito a um julgamento justo e conforme a lei, quais as características que o compõem para então determinar se, no caso em apreciação, o acórdão recorrido teria, ou não, violado este direito.
Logo, é importante frisar que o direito ao julgamento justo e conforme a lei é, antes de mais, uma garantia constitucional implicando, para sua concretização, a observância de diversas outras garantias legais, ou seja, consiste numa ampla garantia que em si mesma engloba a observância de outras, previstas na lei, tais como o direito a igualdade das partes; direito de defesa e igualdade de armas, aspecto fundamental para composição de um juízo justo; direito a um tribunal independente, imparcial e competente, enfim, a garantia do julgamento de uma causa sem arbitrariedades.
O direito a um julgamento justo é também um pressuposto do Estado democrático de direito e uma garantia que pressupõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente. Este princípio constitucional tem como objectivo fulcral assegurar um julgamento justo, cujo processo deve ser equitativo, capaz de garantir a justiça substantiva e uma decisão num prazo razoável e garantias de defesa material. Tais como a celeridade e domínio de modo a obter a tutela efectiva em tempo útil contra ameaças ou violações dos direitos das garantias constitucionalmente consagradas.
Um julgamento é considerado justo quando são acautelados e respeitados, pelos Tribunais, os princípios da imparcialidade, da independência e de equidade no tratamento das partes e seus representantes, conforme consigna o artigo 72.º da CRA.
Este princípio, conforme referem Araújo, Raul e Nunes, Elisa Rangel, Constituição da Republica de Angola anotada, Tomo I, Luanda, 2014, pág. 398, op. cit., exige de juízes e outros operadores de justiça que sejam capazes de responder às necessidades dos processos.
Isto é, decorrem, de tal garantia constitucional, determinadas restrições ao julgador, como a de não interpretar errada e arbitrariamente as normas jurídicas. Para haver julgamento justo é necessário cumprir com o formalismo e os procedimentos (justiça formal ou adjectiva) bem como com uma correcta e justa interpretação da lei e a sua subsunção aos factos (justiça material ou substantiva)
Concebe-se, igualmente, que a garantia constitucional, ora invocada constitui, também ela, uma restrição ao princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador, ao determinar-se que este, na apreciação dos casos, deve construir um raciocínio lógico, coerente e não contraditório entre a fundamentação e a conclusão das suas decisões.
Conforme referido acima, os presentes autos fazem referência a aquisição da posse de uma parcela de terreno, pelo Recorrente, em 25 de Abril de 2005 e pelo segundo adquirente em 26 de Maio de 2006, colocando-se a questão primordial de determinar se foi ou não violado o direito à posse do primeiro adquirente.
O acórdão, ora recorrido, reconheceu como provados os seguintes factos:
- Que o Recorrente, a 25 de Abril de 2005, negociou com Fernando Pedro a transmissão de uma parcela de terra, denominada por fazenda n.º 4, sita na localidade de Chiloemba 2, na Comuna de kissanga – Kungo, no Município da Cela, conforme consta dos autos a fls. 7.
- O aqui Recorrente deveria pagar pela transmissão o equivalente a USD 20.000.00, vide depoimento fls. 63.
- Elias Nauela António, director da Bacia Leitera da Cela, recebeu os valores monetários cifrados em USD 20.000.00, vide fls. 93, isto no dia 21 de Novembro do ano de 2005.
-Fernando Pedro não recebeu os valores acima referidos, e no dia 26 de Maio de 2006, endereçou uma carta ao director do Gabinete da Bacia Leiteira, Elias Nauela António, onde lhe comunicava que declarava nula a declaração que transmitiu a referida fazenda a favor do Recorrente nestes autos, e as razões eram por este não honrar os compromissos assumidos e, declarava que transmitira o direito de concessão a Dário de Oliveira, fls. 25 e 26.
- Que o mesmo Dário de Oliveira detinha a posse da referida fazenda, e que este não esbulhou a posse da mesma ao Recorrente.
Ora, perante tais factos, demonstrados no processo, a decisão vertida no acórdão do Tribunal Supremo não leva este Tribunal a concluir que no aresto em apreciação se tenha violado a garantia a um julgamento justo e conforme, na media em que não se reconhece que foram negligenciadas as necessidades do processo tendo-se observado o formalismo e os procedimentos, tanto como não se concebe que, no âmbito da livre apreciação da prova, aquela instância de recurso tenha interpretado errada e arbitrariamente as normas ou preceitos legais respeitantes ao instituto jurídico da aquisição e perda da posse.
Ou seja, no seu julgamento, o Tribunal Supremo teve em consideração os factos invocados e provados no processo, deste modo decidindo em desfavor de uma das partes, o que leva a concluir que não deixou de ter uma actuação justa e imparcial na reapreciação que fez da matéria da causa.
Por conseguinte, na acepção aqui abordada, o direito a um julgamento justo e conforme, à luz da dimensão exigida e o absoluto respeito pela protecção legal e a inviolabilidade das garantias constitucionalmente consagradas, foi efectivamente acautelado e estritamente observado, preservando-se o adequado equilíbrio dos interesses do Recorrente, da comunidade, da paz social e da segurança jurídica.
C. Direito de propriedade, requisição e expropriação, artigo 37.º, n.º 2 da CRA
Relativamente a invocada violação ao direito de propriedade, requisição e expropriação, estabelece o n.º 2 do artigo 37.º da CRA o seguinte:
“O Estado respeita e protege (sublinhado nosso) a propriedade e demais direitos reais das pessoas singulares, colectivas e das comunidades locais, só sendo permitida a requisição civil temporária e a expropriação por utilidade pública mediante justa e pronta indemnização nos termos da Constituição e da lei.”
Resulta deste preceito constitucional que ao Estado se exige não só respeito pela propriedade e demais direitos reais a estes equiparados, como igualmente as garantias da sua protecção.
Ainda em alusão ao artigo 37.º da CRA (in Constituição da República de Angola anotada, pág. 301, “o direito de propriedade é concebido como sendo o direito de usar, gozar, usufruir e dispor de um determinado bem, de reavê-lo, de quem quer que injustamente o esteja possuindo (ius utendi, fruendi e abutendi).”
O direito de propriedade é regulado nos artigos 1302.º e ss do CC, sendo o seu conteúdo (1305.º do CC) a faculdade que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo para usar, fruir e dispor das coisas que lhe pertencem dentro dos limites da lei.
Neste particular, apesar de os autos se referirem à posse, esta tem o mesmo sentido e está associada ao consagrado sobre a propriedade, conforme o disposto no artigo 1251.º do CC, segundo o qual “a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
Feito esse enquadramento, da equiparação da posse à propriedade, refere-se igualmente, que o direito de propriedade no âmbito do direito constitucional é mais amplo ainda que no quadro do direito civil. Ele abrange “qualquer direito de conteúdo patrimonial, económico, tudo o que possa ser convertido em dinheiro, alcançando créditos e direitos pessoais. Sem a extensão dessa tutela, direitos pessoais de natureza económica poderiam ser desapropriados sem o pagamento de qualquer indemnização, o que seria um absurdo”.
Não obstante, no caso em apreço não se apresenta como tendo sido violado o direito à posse que, nos termos da CRA, tem a mesma protecção que o direito de propriedade, na medida em que, no seu julgamento o Tribunal Supremo seguiu uma correcta e justa interpretação da lei e a sua subsunção aos factos, conferindo a posse da propriedade em disputa ao possuidor actual demostrando que este jamais esbulhou a posse ao Recorrente.
De resto, é entendimento deste Tribunal, que não se verificou violação do direito à propriedade pelo facto de o acórdão do Tribunal Supremo não ter reconhecido a posse ao Recorrente. Não tendo este a posse, não se verifica a violação do direito em causa, como acima se referiu.
Pelo exposto, conclui este Tribunal que não são atendíveis as alegadas violações dos princípios, direitos, e garantias consagrados na CRA, alegados pelo Recorrente.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da LPC.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 20 de Maio de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente- declarou-se impedido)
Dra. Guilhermina Prata (Vice- Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel da Silva Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima A. B. da Silva (Relatora)
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Vitória Manuel da Silva Izata