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ACÓRDÃO N.º 620/2020

PROCESSO N.º 792-D/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Artur Vasco Caxito, melhor identificado nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Proc. n.º 355/19, que negou provimento ao seu pedido de habeas corpus, por considerar legal a manutenção da prisão preventiva contra si decretada.

O Recorrente, que foi indiciado pela prática dos crimes de furto simples e de falsificação de documentos, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 421.º e 216.º do Código Penal (CP), com processo a correr trâmites na 10ª Secção da Sala do Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, fundamentou o pedido de habeas corpus nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 40.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP). Ou seja, decorreram 4 meses desde a sua detenção preventiva, verificada a 11 de Maio de 2019, sem que, no entanto, tivesse sido notificado da acusação, do despacho fundamentado do reexame obrigatório e oficioso dos pressupostos da aplicação desta medida cautelar e da prorrogação do prazo da prisão preventiva, ex vi do n.º 1 do artigo 39.º e do n.º 3 do artigo 40.º, ambos da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, tal como se extrai das alegações apresentadas nesta instância constitucional.

Do aresto ora em sindicância resulta, entretanto, ter sido deduzida acusação, a 28 de Outubro de 2019, cujo despacho consta de fls. 17 a 22 dos autos. Este acórdão faz também referência à expedição de mandados de notificação desta acusação, relativamente à qual se aguardava por pronunciamento ou eventual contestação. Dos autos não se retira, porém, indicação sobre a expedição dos referidos mandados, nem qualquer confirmação sobre o seu recebimento pelo aqui Recorrente.

A decisão recorrida dá igualmente conta da prolação, aos 8 de Julho de 2019, de um despacho de reexame da prisão preventiva, apenso a fls. 23 dos autos, de que não existe, também, qualquer evidência sobre a sua notificação ao Recorrente.

A par disso e não obstante ter decidido no sentido da legalidade da prisão preventiva, o Tribunal Supremo reconhece, neste seu Acórdão, o facto de o despacho de acusação ter sido exarado 1 mês e 17 dias após o término do prazo estabelecido no n.º 1 da alínea a) do artigo 40.º da LMCPP. Justifica, contudo, o seu decisium argumentando que, lê-se no aresto, datado de 12 de Dezembro de 2019, contactada pessoalmente, via telefónica, a Juíza da causa, obteve-se informação de que houve prorrogação do prazo por parte do Magistrado do Ministério Público, de modo que o despacho de pronúncia pode ser proferido até ao mês de Dezembro, o que equivale a dizer que a detenção do Requerente (aqui Recorrente) está dentro dos prazos legais de prisão preventiva, nos termos do n.º 2 do artigo 40.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro.

Nas alegações apresentadas junto deste Tribunal Constitucional, o Recorrente refere, no entanto que, até à data da interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade e decorridos oito meses, não havia, ainda, sido notificado nem da acusação, nem da pronúncia, pelo que se mantinha, por excesso do prazo, a ilegalidade da sua detenção, excesso não justificado ou fundamentado, encontrando-se em contradição com os artigos 66.º, n.º 1, 67.º, n.º 2 e 68.º nºs 1 e 2 da Constituição da República de Angola (CRA).

Considera, deste modo, que o acórdão do Tribunal Supremo viola os princípios da legalidade, da presunção da inocência, de um julgamento justo, equitativo e conforme, bem como os demais direitos, garantias e liberdades fundamentais decorrentes da privação da liberdade consagrados na CRA, nos artigos 1.º (dignidade da pessoa humana), 6.º (supremacia da Constituição e legalidade), 36.º, n.º 2 (liberdade física), 57.º (restrição de direitos, liberdades e garantias), 64.º (privação da liberdade), 66.º, n.º 1 (limites da privação da liberdade), 67.º, n.º 2 (presunção de inocência), 68.º (habeas corpus) e 174.º, n.º 1 e 2 (dever tutela dos direitos fundamentais).

Termina, assim, pedindo que o aresto que ora impugna seja declarado inconstitucional e que, em consequência, seja restituído à liberdade.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA 

O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos.

Da decisão proferida pelo Tribunal Supremo não cabe recurso para outra instância da jurisdição comum, pelo que se esgota a cadeia recursória em sede dessa jurisdição.

III. LEGITIMIDADE 

A LPC, na alínea a) do artigo 50.º, atribui legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade ao Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

O Recorrente é o autor da providência de habeas corpus, cujo provimento foi negado. Tem, por isso, legitimidade processual activa para interpor este recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto o Acórdão do Tribunal Supremo que negou provimento ao pedido de habeas corpus, providência consagrada no artigo 68.º da Constituição da República de Angola (CRA).

V. APRECIANDO

Como decorre dos autos, no recurso submetido à sindicância deste Tribunal Constitucional está em causa um pedido de tutela do direito à liberdade, liberdade física ou de locomoção, se se preferir, fundado na rejeição de uma providência de habeas corpus, que não atendeu a alegada ilegalidade da manutenção da prisão preventiva do aqui Recorrente, resultante do decurso de prazos fixados, para o efeito, na Lei n.º 25/15, 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP).

Nos termos do artigo 40.º do supra mencionado diploma legal, a prisão preventiva deve cessar quando, desde o seu início, tenham decorrido (i) quatro meses sem acusação, (ii) seis meses sem pronúncia e (iii) 12 meses sem condenação em 1ª instância, prazos que podem ser elevados por mais dois meses, mediante despacho devidamente fundamentado.

Acontece que, aquando da interposição da providência de habeas corpus e por constatação do próprio Tribunal ad quem, já havia decorrido o prazo de quatro meses para a dedução da acusação, previsto na alínea a) do artigo 40.º, aqui em causa, requisito bastante para pôr termo à prisão preventiva, uma vez que não havia sequer sido prolactado despacho fundamentado no sentido da prorrogação da referida medida cautelar, de que, pelo menos, os presentes autos façam prova.

Ainda assim, o Tribunal Supremo, com fundamento numa informação verbal prestada pela Meritíssima Juíza da causa, relativa ao facto de ter sido prorrogada a prisão preventiva pelo competente Magistrado do Ministério Público, entendeu “suprida” a ilegalidade incidente sobre a manutenção da detenção, precisando que a prolação do despacho de pronúncia poderia ocorrer até ao mês de Dezembro do ano transacto, o que não se verificou, como resulta das alegações do Recorrente. Este também alega que não foi notificado de nenhum dos despachos que, eventualmente, pudessem legitimar a manutenção da sua prisão preventiva, nem antes, nem até à interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como já antes referido.

Ora, o acto de notificação visa, tendencialmente, produzir certos efeitos na esfera jurídica do seu destinatário, permitindo que este intervenha no processo e possa exercer determinados direitos, como, por exemplo, o direito ao contraditório. O n.º 2 do artigo 228.º do Código do Processo Civil, aplicado supletivamente ao processo penal, dispõe, pois, que a notificação serve (…) para chamar alguém a juízo ou dar conhecimento de um facto, sendo que, por seu lado, o n.º 2 do artigo 229.º deste mesmo Código estabelece, na parte final, que (…) devem ser notificadas, sem necessidade de ordem expressa, as sentenças e os despachos que a lei mande notificar (…).

Deste modo, não se afigura processualmente irrelevante, mesmo à luz do processo justo e conforme com a lei, a falta de notificação ao arguido de todos os despachos relacionados com a manutenção da sua prisão preventiva, notificação que, no caso sub judice, porque inexistente na perspectiva do seu destinatário, o aqui Recorrente, não pode ser tida em conta para fazer valer a observância de qualquer prazo, na medida em que os actos que lhe estão subjacentes são dados como não praticados.

Assim, estando a prisão preventiva, por imperativo constitucional e legal, sujeita a prazos, impõe-se concluir, ante os factos e pressupostos acima vertidos, que a privação da liberdade do Recorrente configura, efectivamente, uma situação de prisão ilegal, pelo decurso do prazo estabelecido nas alíneas a) e b) do artigo 40.º da LMCPP o que acarreta a extinção desta medida privativa da liberdade e a consequente restituição do arguido à liberdade (n.º 1 do artigo 42.º da mesma Lei).

Destarte, entende este Tribunal Constitucional, em face do caso concreto, estarem reunidos os requisitos para a concessão do habeas corpus, nos termos do artigo 68º da CRA e da alínea c) do § único do artigo 315.º do Código do Processo Penal, que estabelece como um dos fundamentos da ilegalidade da prisão, efectiva e actual, a sua manutenção além dos prazos legais para a apresentação em juízo e para a formação de culpa.

Com o deferimento deste remédio constitucional, que é o habeas corpus, estará, assim, em causa efectivar o direito à requerida tutela jurisdicional do direito à liberdade, um direito jurídico-constitucionalmente garantido (artigo 36.º da CRA) que, como tal, só é passível de sofrer as restrições que resultam da Constituição e da lei (artigo 57.º da CRA). Ou seja, aquelas restrições emanadas directas ou indirectamente da Mater Legis, o que, aliás, tem sido o entendimento firmado, a propósito, por este Tribunal Constitucional.

Atendendo, igualmente, ao que dispõe a CRA, quer no seu artigo 64.º n.º 1 (a privação da liberdade apenas é permitida nos casos e nas condições determinadas por lei), quer no seu artigo 66.º, n.º 1 (não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida), tem, em consonância, este Tribunal decidido no sentido da observância rigorosa dos limites temporais impostos por lei às medidas restritivas da liberdade. Aqui se inclui, obviamente, a prisão preventiva, medida de ultima ratio, cuja aplicação deve ser balizada pelo princípio da presunção de inocência e eventualmente justificar-se quando considerado inadequado ou insuficiente o recurso a qualquer outra medida de coacção processual.

Por outro lado, entende ainda este Tribunal que a pretensão do Recorrente encontra acolhimento à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, que configura um princípio fundante do Estado democrático de direito, positivado no artigo 1.º da CRA e que está intrinsecamente associado ao reconhecimento e à protecção dos direitos fundamentais.

Das diferentes manifestações deste princípio, que deve nortear a aplicação do direito ao caso concreto, decorre, além de outras, a ideia de protecção contra a actuação ilegal ou abusiva dos poderes públicos, o que, obviamente, encontra repercussão no domínio do direito processual penal. Tal compreensão, que se compagina, igualmente, com o consagrado no n.º 2 do artigo 31.º da CRA (o Estado respeita e protege a pessoa e a dignidade humanas), concorre, perante a ilegalidade de que se reveste a manutenção da prisão preventiva do Recorrente, como demonstrado, para alicerçar os fundamentos que legitimam a concessão da requerida providência extraordinária de habeas corpus.

A prisão preventiva do Recorrente estava ferida de ilegalidade aquando do pedido habeas corpus, ilegalidade que se mantinha à data da interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. Este facto materializa, assim, uma violação ao princípio da legalidade, também este chamado a limitar os actos de interferência na esfera das liberdades individuais, quando não conformes com a lei, na medida em que os poderes públicos estão obrigados a respeitar e a fazer respeitar as leis (artigo 6.º, nº 2 da CRA). Os tribunais judiciais, em concreto, por força do disposto no n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 2/15 (Lei Orgânica sobre a Organização e o Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum), são convocados a assegurar as garantias do processo penal, nomeadamente, a legalidade das detenções e prisões (…).

O direito à liberdade, visado no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, é, como antes asseverado, um direito fundamental que, além de consagrado na CRA, está igualmente previsto em alguns dos instrumentos internacionais de direitos humanos de que Angola é parte, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 3.º) ou a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 6.º).

Tendo como parâmetro a lei e os princípios e garantias que emanam da Constituição e dos referidos instrumentos internacionais de protecção dos direitos humanos, as restrições de que possa ser objecto devem afigurar-se como de ultima ratio, sendo que, como acentua o Recorrente, no Estado democrático de direito à liberdade do cidadão é a regra e a privação dessa liberdade a excepção.

Assim não acontecendo, legitima-se o recurso à garantia constitucional do habeas corpus de que o Recorrente fez uso para assegurar o seu direito à liberdade, ante a ilegalidade da manutenção da sua prisão preventiva, que é temporalmente limitada, à luz da Constituição e da demais legislação em vigor sobre esta matéria.

Deste modo, devem os autos baixar ao Tribunal de onde provieram a fim de ser executada a presente decisão, conforme o artigo 47.º da LPC.

DECIDINDO

Nestes termos

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: 

 Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 21 de Maio de 2020.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora) 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima A. B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata