ACÓRDÃO N.º 621/2020
PROCESSO N.º 761-A/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Eliandro Valdir Henriques Sebastião, com os demais sinais de identificação nos autos, foi indiciado, pronunciado e, em cúmulo jurídico, condenado em primeira instância na pena única de oito anos e 10 meses de prisão maior e dois anos de multa no valor de trezentos mil Kwanzas (kzs 300 000, 00), pelos crimes de roubo qualificado, p. e p. pelo artigo 435.º, nºs 1 e 2 do Código Penal (CP), e detenção e posse ilegal de arma de fogo, p. e p. pela conjugação dos artigos 9.º e 123.º do Diploma Legislativo n.º 3778/67, de 22 de Novembro.
Desta decisão interpôs recurso o Digno Magistrado do Ministério Público para o Tribunal Supremo, por imperativo legal, sem ter apresentado alegações, no entanto, dispensáveis nos termos do n.º 5 do artigo 690.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex.vi do artigo 649.º do Código Processo Penal (CPP).
Por acórdão do Tribunal Supremo de 5 de Dezembro de 2018, foi alterada a pena, sendo o réu condenado na pena única de oito anos e quatro meses de prisão maior e multa de dez mil kwanzas (kzs. 10 000, 00), confirmando-se, no mais, o acórdão da 13.ª Secção Criminal do Tribunal Provincial de Luanda.
Veio então o referido Recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), inconformado com o acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da medida da pena.
O Recorrente apresentou alegações, culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é réu no Processo n.º 2149/18, que correu os seus trâmites na 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, subsidiariamente, ao caso em apreço, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.
Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso incide sobre o acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo. Ao Tribunal Constitucional caberá analisar se a referida decisão viola algum dispositivo constitucional.
V. APRECIANDO
Dispõe o artigo 57.º da Constituição:
“1- A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário, proporcional e razoável numa sociedade livre e democrática, para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
2- As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão nem o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”
No entanto, este preceito refere-se tão-só às denominadas restrições legais. Os seus nºs 1 e 2 têm por destinatário directo apenas o legislador e são somente as leis os actos jurídico-públicos que pretendem condicionar de imediato. Ficam seguramente de fora todos os actos de afectação individual e concreta de direitos, liberdades e garantias, por força de decisão administrativa ou jurisdicional tomada com base em lei prévia, como a decisão de aplicação de penas privativas da liberdade.
É inequívoco que o Recorrente pretendia, pois, ter indicado, para efeito de apreciação de constitucionalidade o princípio da proporcionalidade que é, também, um dos elementos estruturantes do Estado democrático de direito, previsto no artigo 2.º da CRA.
É, pois, o princípio constitucional da proporcionalidade a observar na fundamentação das decisões judiciais que está essencialmente em causa na apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
Como é notório nas alegações de recurso, toda a argumentação esgrimida padece do erro de se perspectivar a fiscalização cometida a este Tribunal como se tratasse de mais uma instância interpretativa e aplicativa do direito infraconstitucional.
Com efeito, não basta, para assegurar um problema de inconstitucionalidade judicial, fazer referência a um ou vários preceitos normativos, e remeter genericamente para uma sua interpretação. Na verdade, há que atender à distinção, formal e funcional, no âmbito do sistema de fiscalização da constitucionalidade, entre a (s) norma (s), princípios ou interpretação normativa que constitui objecto de julgamento cometido ao Tribunal Constitucional, e a fundamentação, de facto ou de direito, onde se aloja o critério ou padrão de decisão efectivamente aplicado como determinante do julgado.
Assim é também assinalado na doutrina, mormente por Lopes do Rego (Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina 2010) e Matos Correia (Introdução ao Direito Processual Constitucional, Universidade Lusíada Editora 2011):
«Importa distinguir claramente - para o efeito da precisa delimitação do objecto dos recursos de fiscalização concreta - os conceitos de norma e de preceito ou disposição legal que a suporta: na verdade, tais recursos reportam-se e incidem sempre, não sobre puras disposições ou comandos de direito positivo em vigor, mas sobre determinadas regras ou padrões valorativos neles contidos, impostos, de forma heterónoma, aos respectivos destinatários - embora sempre identificados por referência aos preceitos, legais ou regulamentares, que, servindo-lhes de suporte formal ou de fonte normativa, os sustentam» (pág. 50).
«Este recurso não pode ser usado para solicitar ao Tribunal Constitucional a reanálise do conteúdo material da decisão tomada pelo tribunal "a quo". Se este deu razão a uma das partes no processo, o Tribunal Constitucional não pode em circunstância alguma, alterar tal decisão. O recurso deve ater-se, apenas, à dimensão da inconstitucionalidade, porque se destina a permitir que a jurisdição constitucional confirme ou infirme a decisão do tribunal "a quo" quanto a esse particular ponto» (pág.161).
Ora, no requerimento de interposição de recurso, o Recorrente não enuncia um preciso e claro sentido ou dimensão normativa, nem identifica qual o resultado hermenêutico que, judicialmente construído, considera violar o princípio constitucional da proibição de excesso, ínsito no artigo 2.º da Constituição.
O Recorrente não invoca qualquer fundamentação que serve de base à decisão recorrida merecedora de censura, à luz do princípio da proporcionalidade, e muito menos a razão de tal juízo negativo, sendo certo que na presente lide não se discute propriamente a determinação da medida da pena objecto da matéria controvertida.
A crítica de inconstitucionalidade, neste caso, é dirigida ao acto de julgamento, em si mesmo, por, na óptica do Recorrente, ter sido decidida a causa de forma injusta e acolhida uma leitura do direito ordinário que os recorrentes consideram incorrecta.
Veja-se, o acórdão recorrido está devidamente fundamentado, tendo o Recorrente gozado de atenuação extraordinária da pena, prevista no n.º 1 do artigo 94.º do CP, tendo-se ainda em conta a sua idade, a confissão, a restituição do bem, assim como o facto de o Recorrente ser réu primário. Elementos, por sua vez, apontados como ignorados pelo Recorrente nas suas alegações de recurso.
O Tribunal de primeira instância foi claro ao identificar as circunstâncias agravantes e atenuantes da responsabilização penal do Recorrente, tendo o Tribunal ad quem confirmado, tout court, a decisão no que a estes elementos respeita.
Não incumbe, portanto, a este Tribunal definir a correcta conformação da lide ou determinar a melhor interpretação de direito ordinário. Na verdade, o que se pretende ver discutido no presente recurso é o acerto do concreto resultado aplicativo atingido, com referência às circunstâncias do caso, questões que relevam da conformidade do acto impugnado com parâmetros de direito ordinário, e não da conformidade das razões de facto e de direito com a Lei Fundamental.
O Tribunal Constitucional não tem competência para sindicar o mérito ou a bondade das próprias decisões recorridas.
Assim sendo, a decisão recorrida em nada afecta o núcleo essencial do princípio da proporcionalidade, porquanto a pena concretamente aplicada traduz-se no meio necessário, por ser o mais eficaz na concretização da finalidade imediata das penas e que consiste na prevenção geral e especial; adequado, por ser o meio idóneo à satisfação do referido fim, e proporcional em sentido estrito, pois, encontra-se uma justa medida face ao fim visado.
Compulsados os autos, à fls. 120, 121, 122 e 123, verifica-se que o recorrente foi devidamente notificado da admissão do recurso, tendo recebido a comunicação de notificação aos 18 de Julho de 2018, passados oito dias da data de apresentação do requerimento de interposição de recurso aos 26 de Julho de 2018.
Assim sendo, improcede a questão prévia invocada pelo Recorrente por falta de fundamento bastante.
DECIDINDO
Neste termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho da LPC.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 26 de Maio de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dr. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria Fátima Lima A. B da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata