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ACÓRDÃO N.º 623 /2020

PROCESSO N.º 796-D/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Isabel Cristina Gustavo de Ceita Bragança, melhor identificada nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que indeferiu a providência de habeas corpus que aí correu termos com o Proc. n.º 382/19.

Notificada para apresentar alegações de recurso, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), a Recorrente alegou que o Acórdão recorrido viola, no essencial, o seguinte:

  • O princípio da legalidade, na medida em que atribui ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade um efeito meramente devolutivo quando a lei confere a esta forma de recurso o efeito suspensivo;
  • O art.º 36.º da Constituição da República de Angola (CRA), o parágrafo 1.º do artigo.º 9.º e o parágrafo 2.º do artigo.º 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos;
  • O princípio da hierarquia das fontes de direito, na medida em que fundamenta a sua decisão numa opinião doutrinal, em detrimento da Lei que está acima da doutrina (artigo.º 6.º da CRA);
  • A proibição de interpretação de normas jurídico-penais, in mallan partem, pois, ao interpretar e aplicar subsidiariamente e de forma errada o regime jurídico do trânsito em julgado das decisões em processo civil no processo penal, fez, no caso em apreço, uma interpretação e aplicação restritiva em prejuízo da arguida;
  • O princípio da aplicação da lei mais favorável (n.º 4 do artigo.º 65.º da CRA com as devidas adaptações) pois as regras do Código de Processo Civil (CPC) sobre trânsito em julgado são desfavoráveis à arguida;
  • O princípio da unidade e harmonia do sistema jurídico do efeito do recurso, pois tomou uma decisão ignorando completamente o regime jurídico do recurso extraordinário de inconstitucionalidade vertido nos artigos 49.º, alínea. a); 50.º alínea. a); 51.º n.º 1 e 52.º n.º1, todos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC) com as alterações efectuadas pela Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro;
  • O princípio da presunção de inocência, na medida em que recolheu à cadeia mesmo depois da interposição do recurso com efeito suspensivo e inexistindo uma decisão transitada em julgado (n.º 2 do artigo.º 67.º da CRA);
  • As normas do recurso extraordinário de inconstitucionalidade são normas constitucionais materiais e, por isso mesmo, se sobrepõe às normas do Código de Processo Civil (CPC) e Código de Processo Penal (CPP), aliás, este último desfasado da nova realidade constitucional, por isso mesmo de aplicação imediata.

Pugna, por fim, pela procedência do recurso e, consequentemente, que se autorize que a Recorrente aguarde em liberdade a decisão do Tribunal Constitucional, alterando-se a medida de coacção.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto, nos termos e com os fundamentos do § único e da alínea. a) do artigo.º 49.º da LPC, de um acórdão proferido no âmbito de uma providência de habeas corpus, pelo que, por se verificar esgotada a cadeia de recursos ordinários da jurisdição comum, este Tribunal é competente para conhecer do recurso.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

A Recorrente foi requerente da providência de habeas corpus no processo que correu seus trâmites na 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, com o número 382/19, tendo, por essa razão, legitimidade para interpor o presente recurso.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é apreciar se, o Acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que negou provimento ao pedido de habeas corpus, violou ou não princípios e direitos constitucionalmente protegidos.

V. APRECIANDO

A Recorrente é Ré num Processo de Querela, no qual foi acusada da prática de crimes de peculato, violação de normas do plano e do orçamento sob a forma continuada, abuso de poder, participação económica em negócio e recebimento indevido de vantagens na forma continuada e condenada numa pena de prisão efectiva, primeiro pela 2ª Secção da Câmara Criminal, como Tribunal de 1.ª instância e, posteriormente, pelo Plenário do Tribunal Supremo, em sede de recurso.

Por ter sido conduzida ao estabelecimento prisional após a sua condenação em segunda instância, apesar de ter interposto recurso extraordinário de inconstitucionalidade, interpôs uma providência cautelar de habeas corpus por entender que, nos termos conjugados dos artigos 44.º e 52.º, ambos da LPC, a decisão proferida em segunda instância não tinha transitado em julgado, pelo que deveria aguardar a decisão do Tribunal Constitucional na situação em que se encontrava antes de proferida tal decisão.

Assim, entende terem sido violados o princípio da legalidade, o princípio da hierarquia das fontes do direito, o princípio da interpretação de normas jurídico-penais, o princípio da aplicação da lei mais favorável, o princípio da unidade e harmonia do sistema jurídico do efeito do recurso e o princípio da presunção de inocência.

Vejamos, pois, se assiste razão à Recorrente.

Como é sabido, a providência de habeas corpus, com tutela constitucional no artigo.º 68.º da CRA, é “uma providência extraordinária expedita destinada a assegurar, de forma especial, o direito à liberdade constitucionalmente garantido e que visa reagir de modo imediato e urgente, contra o abuso de poder em virtude de detenção ou prisão, efectiva e actual, ferida de ilegalidade” (Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, em Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, anotações ao artigo 68.º, págs 388 a 390).

Todos os princípios constitucionais que a Recorrente diz terem sido violados se esgotam, essencialmente, na noção do trânsito em julgado e no efeito de subida aplicável ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

A alínea a) do artigo 44.º aplicável por força do n.º 1 do artigo 52.º, ambos da LPC, determina que os recursos de inconstitucionalidade interpostos para o Tribunal Constitucional têm efeito suspensivo.

No entanto, o acórdão recorrido, tendo como fundamento o disposto no artigo 677.º do CPC, em como a decisão se considera transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação, entendeu que o efeito suspensivo previsto na LPC não deveria ser aplicado aos recursos extraordinários de inconstitucionalidade por, em resumo, ser desconforme à lógica estruturante dos princípios em que assentam os sistemas similares ao nosso (onde, por regra, o efeito suspensivo se aplica aos recursos antes do trânsito em julgado e o efeito meramente devolutivo para os demais casos), e pelo facto de não ser da competência do Tribunal Constitucional conhecer do mérito da questão controvertida, limitado que está o seu âmbito de conhecimento às questões atinentes à violação de princípios, direitos e garantias constitucionalmente previstos. Por outro lado, o seu conhecimento está condicionado ao prévio esgotamento dos recursos ordinários.  

Começando por esta última questão há que dizer que o conceito do esgotamento prévio da cadeia de recursos, previsto no § único do artigo 49.º da LPC, não pode ser confundido com o conceito de trânsito em julgado. Basta para tanto referir que, em processo penal, o trânsito em julgado da decisão decorre passados cinco dias a contar da sua notificação (artigo 651.º do CPP), ao passo que o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de oito dias a contar da notificação da decisão proferida pela última instância de recursos da respectiva jurisdição (vide artigo 38.º da LPC).

O recurso extraordinário de inconstitucionalidade representa a consagração, na nossa realidade constitucional, das figuras da queixa constitucional ou recurso de amparo, como mecanismos de salvaguarda dos direitos fundamentais que gozam da prerrogativa de aplicabilidade directa, nos termos do artigo 28.º da CRA.

Tal como sucedeu com a queixa constitucional alemã, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi introduzido na administração da justiça constitucional fora do texto constitucional. No caso alemão, tal sucedeu porque várias correntes defendiam que os direitos fundamentais eram suficientemente tutelados pela jurisdição comum, perspectiva que veio a ser ultrapassada por se reconhecerem as virtudes na tutela constitucional que prevê a protecção dos direitos fundamentais violados por decisões das instâncias superiores, passando a constar do texto da Constituição da República Federal Alemã de 1951.

A resistência à intervenção da jurisdição constitucional para a salvaguarda dos direitos fundamentais, verifica-se, ainda, em muitas realidades jurídicas que nos são próximas, como o caso de Portugal, em que, conforme destaca Alves Correia, (A justiça constitucional em Portugal e em Espanha - encontros e divergências, in RJM, cit., pp. 237 segs, 270, 271.), as principais objecções à instituição de um recurso de amparo em Portugal, assentam, fundamentalmente, no “temor do surgimento de dificuldades de relacionamento ou mesmo de conflitos entre o Tribunal Constitucional e os restantes tribunais, sobretudo os Supremos Tribunais, nos casos em que o «recurso de amparo» tivesse como objectivo a própria decisão judicial, por ser ela própria violadora de um direito fundamental”.

No caso da República de Angola, essas objecções foram ultrapassadas com a consagração constitucional do princípio segundo o qual todos os actos que consubstanciem violações de princípios e normas constitucionais são passíveis de fiscalização da constitucionalidade. Por sua vez, o legislador ordinário, atribuiu efeito suspensivo ao recurso ordinário e, por remissão, ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade (n.º 1 do artigo 52.º da LPC).

Compulsada a legislação que regulamenta o recurso de amparo em Espanha e em Cabo Verde, que são anteriores à LPC, verifica-se que tanto o artigo 56.º da Lei Orgânica n.º 2/1979, de 3 de Outubro, do Tribunal Constitucional Espanhol, como o artigo 11.º da Lei 109/IV/94, de 24 de Outubro, referente ao Recurso de Amparo de Cabo-Verde, estabelecem como regra a não suspensão dos efeitos do acto ou sentença impugnadas, salvo se da execução do acto ou sentença resultar prejuízo irreparável ao requerente ou inutilidade do amparo.

Entretanto, o legislador angolano inclinou-se – como se disse – pela atribuição de efeito suspensivo à interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, o que apenas se compreende por tal formulação atender às exigências próprias da nossa realidade constitucional, em que o regime jurídico dos direitos, liberdades e garantias fundamentais foi robustecido com a CRA e se impunha a formulação de legislação que salvaguardasse a sua aplicação prática, considerando o histórico recente de violações resultantes de actos administrativos e decisões judiciais, de que resultavam prisões arbitrárias e excessivas.

A alteração à LPC, operada pela Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro, não trouxe qualquer indicação em contrário no que ao efeito da interposição do recurso diz respeito. A alteração trazida por esta lei foi a de incorporar no recurso extraordinário de inconstitucionalidade dois outros pressupostos do amparo constitucional espanhol, nomeadamente a excepcionalidade e a subsidiariedade. A interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade passou a ser possível apenas depois de esgotados todos os recursos ordinários cabíveis.

Catarina Santos Botelho (ATutela Directa dos Direitos Fundamentais – Avanços e recuos na dinâmica garantística das justiças constitucional e internacional, 2010, pág. 233-234), quando caracterizava o amparo espanhol refere que a natureza excepcional do recurso de amparo implica que a violação do direito ou liberdade fundamental não tenha encontrado reparação através do sistema ordinário de garantias, exigindo-se, por isso, em princípio, o recurso prévio aos tribunais ordinários e o esgotamento dos recursos jurisdicionais adequados. Por conseguinte, associada à excepcionalidade, está a denominada subsidiariedade do recurso de amparo constitucional, que espelha com clareza o facto de este não ser uma via alternativa, mas uma via sucessiva de protecção de direitos fundamentais e liberdades públicas. Com a alteração legislativa de 2010, essas considerações passaram a ser aplicáveis ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

 Sendo a LPC posterior ao CPP e ao CPC, e não havendo dúvidas que será a mais conforme com a CRA, pois decorre desta, necessário será reconhecer que o entendimento segundo a qual a interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, apesar de fazer parte da tutela jurisdicional constitucional, produz efeito suspensivo da decisão impugnada, é compatível com a Lei que se encontra em vigor e com a CRA, pelo que será aplicável ao caso concreto.

Em direito penal, o efeito suspensivo traduz-se, essencialmente, no seguinte: a decisão tomada não produz efeito algum, devendo, em princípio, o réu permanecer com a medida de coacção que eventualmente lhe tenha sido aplicada, caso se mantenham os pressupostos legais.

A aplicação do efeito meramente devolutivo, quando a lei prevê efeito suspensivo, viola o princípio da legalidade, consagrado no artigo 177.º da CRA.

Assim, nos termos do n.º 2 do artigo 47.º da LPC, deve o Tribunal Supremo reformar a sua decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em: DAR PROVIMENTO AO RECURSO, DEVENDO A RECORRENTE SER COLOCADA NA SITUAÇÃO CARCERÁRIA EM QUE SE ENCONTRAVA À DATA DA DECISÃO DO PLENÁRIO DO TRIBUNAL SUPREMO.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, da LPC

 Notifique-se.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 20 de Maio de 2020

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Maria de Fátima L. A B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata