Loading…
Acórdãos > ACÓRDÃO 625/2020

Conteúdo

ACÓRDÃO N.º 625/2020

PROCESSO N.º 759-C/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, Acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Catito-Lda., melhor identificada nos autos, vem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da Câmara do Cível e Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2183/15, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), por inferir que o mesmo ofende os princípios constitucionais, previstos nos artigos 14.º, 37.º n.º 1, 72.º, 6.º nºs 1 e 2, 29.º, 174.º n.º 1, todos da Constituição da República de Angola (CRA) e nºs 1 e 2 do artigo 17.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), aplicado por força do artigo 13.º da CRA.

A Recorrente apresenta, em síntese conclusiva, as seguintes alegações:

  1. A Empresa Alves Caunda & Filhos Lda. alega ter comprado, da Administração Municipal, uma parcela de terreno, porém, olvida-se intencionalmente de exibir o título que lhe permitiria obter uma aquisição legítima e válida. Ciente dessa realidade, não consegue demonstrar nos autos o título aquisitivo, salvo a única e exclusiva Escritura de quitação. Daqui conclui-se em termos cristalinos que ao ter adquirido o bem imóvel sem a competente escritura pública, celebrou um negócio inválido à luz da lei vigente em Angola, pelo que

não pode vir ao Tribunal obter tutela e ou protecção que por lei deva ser garantida e legitimada a bem de quem cumpre a lei. No caso vertente é a Recorrente quem tem direito à protecção dos seus direitos e interesses legítimos, tal como melhor consagra a conjugação dos artigos 177.º n.º 1 da CRA e 875.º do CC, mas com a redacção que lhe é dada pela Lei n.º 9/11, de 16 de Fevereiro.

  1. A análise simples e directa de fotocópias dos documentos – “certidão de termo de quitação”, emitida pela Administração Municipal do Huambo, constantes a folhas 11, 12 e 13 dos autos, com as cópias feitas do livro n.º 1/2002-2003 confrontados a Norte, Sul, Este e Oeste com Terrenos do Estado", e em nome da Empresa Alves Caunda & Filhos, é por demais bastante para se concluir que os quinze mil metros quadrados, aí descritos, nada têm que ver com a área de 90.000 m2, tal como melhor consta da escritura pública e registo predial - constante nos autos a folhas 32. De resto foi a conclusão a que chegou o Digníssimo Representante do Ministério Público na vista que deu a este processo.
  2. Ainda na mesma senda, e com o devido respeito que se tem pelo Tribunal Supremo, e não é pouco, este gizou uma engenharia jurídica que arrasa a justeza e a justiça da sua decisão, ora recorrida, ao sustentar que “…devido ao facto de a Direcção Nacional do Ordenamento do Território, que confirmou a titularidade, isto é, aquisição da parcela de terra por parte da Apelante mediante a apresentação da devida certidão, constante no Livro de assento (fls. 73 a 76 dos autos) o que confirma plenamente a legitimidade da Apelante sobre o prédio rústico e prevalência perante terceiros", vide folhas 238 dos autos e pág. 12 do douto acórdão. Ora bem, é inaceitável tal fundamento num Estado democrático de direito; primeiro pelo facto de não existir nos autos qualquer documento da Direcção Nacional do Ordenamento do Território no Huambo; segundo, mesmo que existisse um documento da tal instituição, sempre seria legítimo para indagarmos se tem ou não competência para emitir certidões que confiram legitimidade sobre prédios rústicos.
  3. O Tribunal Supremo, ciente da falta de legitimidade por não ter escritura pública em nome da Empresa Alves Caunda & Filhos Lda., foi então gizar tamanha engenharia, atropelando completamente o bloco da legalidade. E porque será que o fez? A função jurisdicional cometida aos juízes permite a invenção de factos?
  4. Na senda das inverdades, está cimentada no douto acórdão uma ideia perigosa para a segurança e certezas jurídicas, segundo a qual ''não se considera aceitável que a Apelada (agora Recorrente) seja neste caso um terceiro de boa fé, uma vez que a Apelante inclusive procedeu a plantações no domínio prédio rústico que demarcavam uma possível titularidade a qualquer um que a vislumbrasse e/ou pudesse ter interesse sobre o referido espaço, pelo que se pode deduzir que tal inobservância seja intencional...”, sobre essa questão vale indagar: como é que o Tribunal Supremo fez essa constatação? Existe nos autos um auto de inspecção judicial a folhas 65, não se lê aí a existência de qualquer plantação de árvores. Onde e porque razão se trouxe esse facto para o processo, cujo beneficiário só a Alves Caunda & Filhos Lda. aproveita?
  5. Então a questão da boa-fé em direito agora é por decisão do Tribunal Supremo aferida com base nas plantações que nem existem no mundo físico? Onde se quer chegar realmente, apagar da ordem jurídica valores positivos que há séculos estabelecem através do direito regras jurídicas da aferição de princípios como esse da boa fé? E mais, como se concluiu que realmente foi o representante da Empresa Alves Caunda & Filhos Lda. que fez (... isso se existissem) tais plantações e não os seus sócios? Diga-se mais aqui com particular verdade, que esse facto também não resultou como facto provado da decisão preferida em primeira instância..., portanto não é de aceitar que se dê por provados factos nunca provados e que nem sequer existem no processo.
  6. Em síntese, cristalino está que ao se ter decidido nos termos que o fez o Douto Acórdão objecto do presente recurso, o Tribunal Supremo violou flagrantemente normas e princípios consagrados na Constituição, tais são a título de exemplos: artigos 6.º n.º 1 e 2; 14.º, 29.º, n.º 2; 37.º n.º 1, 72.º, do artigo 174.º e ainda o n.º 1 do artigo 177.º, CRA. O direito que assiste aqui à Recorrente é o direito de propriedade privada que está inserido no leque de direitos, liberdades e garantias fundamentais, e como é de aplicação directa e vincula todas entidades, sejam elas públicas ou privadas.
  7. A CRA ao consagrar que ''a todos é garantido o direito à propriedade privada... '' e o ''Estado protege a propriedade privada das pessoas singulares ... '' se está aqui a reconhecer o âmbito privado económico face ao Estado, porém esta protecção apenas assiste em relação aos bens legal e efectivamente inscritos na esfera jurídico-patrimonial dos sujeitos, isto quando se tenha observado todos trâmites legais. Tal como temos vindo a defender, reza o artigo 1316.º do CC que um dos modos válidos de adquirir a propriedade é mediante o contrato, todavia por exigência legal do artigo 875.º do CC, mas com a redacção que lhe é dada pela Lei n.º 9/11, de 16 de Fevereiro, por se tratar de bem imóvel, a aquisição da propriedade só é válida se for celebrada por escritura pública. Cumprido esse requisito é dever dos Tribunais proteger o direito adquirido e nos seus precisos termos, é o que a Recorrente aqui peticiona.
  8. Nos termos expostos e nos demais de direito e sempre com mui Douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Conselheiros deste Augusto Tribunal Constitucional, requer a Recorrente:                                                                                                                                                                                                                                                                              a) Que seja revista e revogada a decisão do Tribunal Supremo que motivou o presente recurso por reflectir uma aplicação errada da lei e ter feito um julgamento injusto e em desconformidade com a lei.                                                                                 b) Que seja declarada de nenhum efeito a decisão recorrida por constituir flagrante violação à Constituição da República de Angola (CRA);                                                                                                                                                                      c) Sejam por razões pedagógicas que exerce o Tribunal Supremo, corrigidas as contradições existentes na decisão do Tribunal a quo, mas que seja mantido o sentido da sua lógica decisória.                                                                                                  d) Reconhecer a Recorrente como única e exclusiva titular de direitos sobre o imóvel em causa.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos previstos na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “... podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (...) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO

Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo – Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro, que declarou nula a decisão do Tribunal a quo, reconheceu o direito de superfície da Empresa Alves Caunda & Filhos, Lda. sobre o prédio rústico, bem como declarou nulo o registo feito pela Recorrente, no âmbito do recurso interposto pelo Apelante no Processo n.º 2183/15.

V. APRECIANDO

Não conformado com a decisão do Tribunal ad quem, a Recorrente vem perante o Tribunal Constitucional considerar que a mesma violou o direito de propriedade privada consagrado nos artigos 14.º e 37.º, n.º 1 da CRA e nos §§ 1 e 2 do artigo 17.º da DUDH, ex vi artigos 13.º e 26.º da CRA; o direito a julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA; o princípio do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 29.º, 174.º, n.º 1 e 2 e 177.º da CRA, bem como o princípio da legalidade prescrito no artigo 6.º, nºs 1 e 2 da CRA, que cabe analisar:

A. Sobre a violação do direito à propriedade privada

A concepção constitucional angolana do direito de propriedade privada está consagrada nos artigos 14.º e 37.º da CRA ao prescreverem que "a todos é garantido o direito à propriedade privada... " e que "o Estado protege a propriedade privada das pessoas singulares ... nos termos da Constituição e da Lei", o que revela bem o elevado carácter conferido ao direito fundamental à propriedade no âmbito do Direito Privado. Sendo um direito fundamental de propriedade, eleva-se, em termos de estrutura, à direitos, liberdades e garantias e, como tal, beneficia do regime aplicável aos direitos de liberdade. (Miguel Nogueira de Brito. 2007. A justificação da propriedade privada, pág. 846).

De acordo com Jorge Miranda a Constituição protege a propriedade privada porque a encara como um instrumento necessário para a realização de projectos de vida livremente traçados, responsavelmente cumpridos, e que não podem, nem devem ser interrompidos ou impossibilitados por opressivas ingerências externas e abrange as três componentes: (i) o direito de aceder à propriedade; (ii) o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade; (iii) o direito de transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa (Jorge Miranda, Rui Medeiros, 2010, Constituição Anotada, Tomo I. Pág. 1246).

O direito à propriedade privada ao reconhecer o âmbito privado económico do indivíduo face ao Estado, garante proteger todo o acervo patrimonial que o indivíduo adquiriu ou venha a adquirir durante a sua vida. No entanto, não se pode descurar que esta protecção apenas é garantida em relação aos bens legal e efectivamente inscritos na esfera jurídico-patrimonial dos indivíduos, isto é, quando se tenham observado todos os trâmites legais e não se violem direitos de outrem.

Acontece, porém, que, na presente lide, o direito de propriedade a que se arroga o Recorrente Catito, Lda. incide sobre o mesmo prédio rústico que é reivindicado por Alves Caunda & Filhos Lda., Apelante no Acórdão que é objecto do presente recurso.

Por esta razão afirma o acórdão do Tribunal ad quem que “em relação as alegações da Apelante no sentido de que os actos praticados pela Apelada para ter a documentação apresentada no processo e referenciados na sentença, são tidos como contra a lei, porque foram obtidos à margem dela, veio ainda o Tribunal a quo abordar sobre a legalidade dos documentos em questão, dizendo em suma que, (...) passando para análise da validade dos mesmos, genericamente, podemos dizer que qualquer um deles adquiriu validamente o prédio rústico em litígio. (fls. 204 in fine e 205).

Afirma ainda o mesmo acórdão que “Na verdade, o Tribunal a quo chegou a considerar efectivamente que ambas as partes possuem direitos legítimos sobre a parcela de terra em litígio, porém, não se pode resolver o caso em análise com base numa decisão Salomônica, onde a mesma decisão fosse repartida em dois, garantido a satisfação do direito às duas partes” (fls. 205).

Verifica-se, portanto, que no âmbito da presente lide está judicialmente reconhecido não apenas o direito à propriedade do Recorrente Catito, Lda. mas, também, o direito à propriedade do Apelante Alves Caunda & Filhos, Lda.  

Para situações desta natureza, o Acórdão n.º 334/2014 do Tribunal Constitucional considera que é necessário saber qual das vendas efectuadas pelo Estado “deve ser considerada válida, posto que, o Estado não pode proteger dois direitos de propriedade, sobre o mesmo bem (salvo, mutatis mutandis, os casos de compropriedade). Não podem coexistir dois direitos de propriedade sobre o mesmo bem. Com efeito, os poderes inerentes ao proprietário (uso, fruição e disposição), são de seu gozo pleno e exclusivo conforme dispõe o artigo 1305.º do Código Civil (CC).”

Aliás, foi precisamente por esta razão que o Acórdão do Tribunal ad quem elegeu como primordial questão a ser apreciada a de aferir “Sobre quem deve recair a titularidade do prédio rústico?” (fls. 205).

Assim, com vista a uma decisão meritória, o Acórdão recorrido, por considerar que o Recorrente e o então Apelante adquiriram validamente o imóvel através de instituições locais do Estado, mas não são terceiros entre si para efeitos de registo, decidiu que a sua titularidade deveria recair sobre aquele que foi o primeiro adquirente.

Na verdade, verifica-se que só foi possível a aquisição do mesmo prédio rústico por ambos os intervenientes por estes terem observado o recurso a diferentes serviços dos órgãos locais do Estado. Assim, enquanto Alves Caunda & Filhos, Lda. procedeu a sua aquisição através de serviços afectos à Administração Municipal do Huambo (fls. 11, 73 a 76 dos autos), Catito Sociedade Agro-pecuária, Industrial & Comercial de Angola, Limitada. efectuou a sua aquisição através da Direcção do Urbanismo e Ambiente do Huambo, conforme fls. 29 e 36 dos autos.

De acordo com Bacelar Gouveia, “o Estado é a estrutura juridicamente personalizada, que num dado território exerce um poder político soberano, em nome de uma comunidade de cidadãos que ao mesmo se vincula, destacando-se entre as suas características a complexidade organizatória e funcional: o Estado pressupõe um mínimo de complexidade organizacional e funcional, isso acarretando uma pluralidade de organismos, de tarefas, de actividades e de competências para levar a cabo os seus objectivos.” (2014. Direito Constitucional de Angola, pág. 130.)

É precisamente esta complexidade organizatória e funcional do Estado que permite concluir que embora, em última instância, ambas as partes adquirentes (Catito-Sociedade Agro-Pecuária, Industrial & Comercial de Angola, Limitada e Alves Caunda & Filhos, Limitada) tenham adquirido o mesmo imóvel ao Estado, não são terceiros entre si pois, no percurso aquisitório, recorreram a organismos e serviços estaduais distintos da administração local.

De acordo com Manuel de Andrade “ (…) são considerados terceiros para efeitos de registo as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquirem direitos incompatíveis sobre o mesmo prédio” (Burity da Silva, 2018. Teoria Geral do Direito Civil. pág. 420).

Foi nesta perspectiva que o Tribunal ad quem pretendeu dar solução à questão que lhe foi submetida, tendo em conta que o julgador forma o juízo de certeza com base nos factos submetidos à sua apreciação, e a lei confere a este uma livre apreciação e valoração das provas.

Perante este facto, não é competência do Tribunal Constitucional aferir se o juízo do Tribunal ad quem procedeu a uma correcta apreciação da prova ou não, conforme ensina o Professor Carlos Blanco de Morais, que, “esta não é uma instância suprema de mérito, ou um Tribunal de super-revisão, não lhe compete aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo…” (2011. Justiça Constitucional, Tomo II - O Direito do Contencioso Constitucional. pág. 619).

O Tribunal Constitucional não pode constituir uma terceira instância da jurisdição comum, pois as suas competências estão delineadas nas disposições conjugadas dos artigos 180.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08 de 17 de Junho (redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10 de 3 de Dezembro) e são, estritamente, as de administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional.

Por tudo quanto foi dito e analisado, sendo ambas as partes processuais portadoras de títulos de aquisição, sobre os quais recaiu a decisão do Tribunal ad quem, não se vislumbra na decisão recorrida, quaisquer ofensas a princípios e direitos consagrados nos artigos 14.º e 37.º nº 1 da CRA.

B. Sobre a violação do direito ao julgamento justo e conforme 

O julgamento justo inclui, essencialmente, o direito de estar presente em tribunal; de ter um julgamento público, célere, perante um tribunal independente e imparcial e de ter um advogado de escolha. Estas características estão implícitas no artigo 72.º da CRA e, também, no artigo 10.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no artigo 8.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, aplicados por força do artigo 26.º da CRA. 

Por outro lado, resulta do artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) aplicada na República de Angola por força do artigo 13.º da CRA, que os Estados devem respeitar que, todo ser humano tenha direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Nestes termos, as duas partes processuais fizeram-se representar pelos seus mandatários legais, apreciados pelo Tribunal ad quem, praticaram os devidos actos processuais que foram e são do conhecimento do poder judicial e, em consequência, foi decidido pelo Tribunal Supremo, conforme fls. 5, 23, 53, 86, 87, 32, 34, 36, 40, 177, 187 e outras dos autos.

Não se constata aqui a existência de qualquer acto ou omissão conducentes a ofensa do direito fundamental consagrado no artigo 72.º da CRA, porquanto, verifica-se nos autos que, o Recorrente praticou todos os actos processuais quer junto do Tribunal ad quem, quer perante o Tribunal a quo, deduziu as suas razões de facto e de direito e produziu os respectivos argumentos de prova e outros em defesa dos seus direitos, sobre os quais e após apreciação, conheceu uma solução jurídica e dela interpôs recurso extraordinário de inconstitucionalidade a este Tribunal.

Conclui-se, assim, que não resultam verificadas aqui as inconstitucionalidades suscitadas pelo Recorrente.

 C. Sobre a violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva

A Recorrente considera, também, que o acórdão recorrido violou o princípio do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 29.º, 174, nºs 1 e 2 e 177.º da CRA.

Na verdade, o artigo 29.º da CRA assegura, antes de mais, a todos o acesso ao direito, visto que só quem tem consciência dos seus direitos, consegue usufruir os bens a que eles correspondem e sabe avaliar as desvantagens e os prejuízos que sofre quando não os pode exercer ou efectivar ou quando eles são violados ou restringidos. Neste sentido, in casu, este direito foi concretizado.

O Julgamento justo é aquele que respeita o princípio da igualdade de armas e trata as partes e os seus representantes de maneira formalmente igual, com igualdade processual e de forma alguma se escamoteou tal desiderato, porquanto, a Recorrente defendeu-se em todas as instâncias em paridade de condições, sendo admitido o exercício e alcance de todos os meios processuais. Portanto, foi facultado o poder de expor as suas razões de facto e de direito perante o Tribunal em condições de igualdade e certamente assegurado o direito do contraditório.

De acordo com jurisprudência firmada é entendimento do Tribunal Constitucional que se todos os momentos processuais e actos tiveram lugar e foram praticados pela Recorrente, o impulso processual foi da iniciativa do recorrente, que também interpôs o competente recurso e juntou alegações, logo, não se afigura que tenha ocorrido alguma violação do princípio do julgamento justo e equitativo. Esta garantia, proíbe o tratamento desigual dos sujeitos processuais e manifesta-se, tanto como um direito que cada sujeito processual tem de apresentar a sua versão dos factos sob condições que lhe não coloquem numa posição de substancial desvantagem em relação ao seu oponente, como direito de conhecer e comentar as observações e as provas apresentadas pela outra parte ou mesmo intervenientes processuais imparciais. (Vide Acórdão n.º 318/2013).

Compulsados os autos, não se verificou a violação deste princípio, pois, antes pelo contrário, verifica-se, analisada a trajectória do processo que o Tribunal Supremo assumiu efectivamente uma posição de árbitro e não de parte, uma posição equidistante.

Nestes termos não se verifica aqui, também, a ofensa do princípio constitucional consagrado no artigo 29.º da CRA.

D. Sobre a violação do princípio da legalidade

A Recorrente considera, ainda, que o acórdão em referência violou o princípio da legalidade prescrito no artigo 6.º nºs 1 e 2 da CRA.

O princípio da legalidade vem consagrado no artigo 6.º da Constituição da República de Angola (CRA). É um princípio destinado a todos os poderes públicos, que devem agir dentro da lei para que os seus actos sejam juridicamente válidos, pois constitui uma das principais garantias no que diz respeito aos direitos individuais.

 De forma geral, o princípio da legalidade pode ser resumido a partir do artigo 6.º da CRA, que estabelece que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei”.

O direito processual civil, de forma genérica obriga que o juiz tenha o dever de aplicar o ordenamento jurídico, na marcha e termos do processo, tendo em conta as conveniências do caso concreto. Logo, ao desempenhar a função jurisdicional, o juiz deve observar a aplicação do princípio da legalidade (artigos 266.º, 138.º e 659.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CP).

O Tribunal ad quem conheceu, fundamentou e cuidou de decidir sobre a escritura de quitação conforme fls. 237 e 238 verso. Igualmente reflectiu e decidiu ser o órgão que lavrou a escritura de venda e quitação competente na matéria, e pronunciou-se sobre a validade do negócio à luz da lei vigente em Angola. Tudo isto e outros documentos constantes dos autos permitiram que o Tribunal ad quem aferisse e decidisse em conformidade com a lei e não se levanta aqui qualquer ofensa ao princípio da legalidade consagrado no artigo 6.º da Constituição da República de Angola.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em: 

Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 23 de Junho de 2020. 

 

O JUIZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilherma Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator) 

Dr. Carlos Magalhães 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Maria de Fátima Lima d´A. B. da Silva 

Dr. Simão de Sousa Victor (declarou-se impedido)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata