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ACÓRDÃO N.º 626/2020


PROCESSO N.º 771-C/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:


I. RELATÓRIO

Salvador Francisco Garcia Manuel, melhor identificado nos autos, vem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, fls. 309, 312, 313 e 283, no âmbito do Processo n.º 3374/19, que julga deserto o recurso, por falta de alegações motivadas, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), por inferir que ofende o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva e o direito ao recurso, consagrado no n.º 1 do artigo 29.º e no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola (CRA).

O Recorrente apresenta, em síntese, a fls. 317, as seguintes alegações:

a) Por suspeitar-se ter o Recorrente praticado o tipo legal de crime de homicídio voluntário simples foi este condenado, pela 3.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, a uma pena de prisão efectiva de oito anos;
b) Inconformado com a decisão, por a julgar injusta, recorreu dela em audiência de julgamento;
c) Sucede que o aqui Recorrente não apresentou as alegações, situação que levou o tribunal de que se recorre a julgar o recurso deserto por falta de alegações;
d) Discordando o Recorrente da decisão proferida, por julgar manifestamente injusta, dela interpôs recurso para este Egrégio Tribunal;
e) Tudo porque, em sede de audiência e julgamento, juntou contestação, na qual, impugnou a existência de ónus de prova que recaia ao Recorrente;
f) Ainda, requereu a junção das suas alegações orais, por tê-las por escrito, sendo admitido a sua junção e nela demostrou que no processo não se lograva a prova de facto capaz de conduzir o Recorrente à condenação;
g) Entende o Recorrente que, não obstante a deselegância de não ter apresentado as suas alegações, para efeito de recurso, no processo, tendo em atenção a sua contestação e alegações orais (seu manuscrito) que se juntaram, no processo, conforme fls. 182 a 194 dos autos, havia (há) elementos suficientes para se fixar o objecto do recurso, pois a pretensão de recorrer e o seu objecto nelas estão harmonicamente espelhados;
h) Julgando o recurso deserto por falta de alegações, quando o processo contém elementos suficientes e esclarecedores para determinar o objecto do recurso, pressupõe obstaculizar o direito de acesso aos tribunais, cabível ao Recorrente.
Nestes termos, e atento aos fundamentos que apresenta, o Recorrente requer ao Tribunal Constitucional a revogação por inconstitucionalidade do douto acórdão proferido pelo Tribunal ad quem e consequentemente apela a concretização da esperada e pretendida justiça;


II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) e do § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

III. LEGITIMIDADE
O Recorrente foi Réu no Proc. n.º 541/17-C, que correu seus termos na 3.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, pelo que tem legitimidade para recorrer nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “... podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (...) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo que julgou deserto o recurso, com fundamento na “falta de alegações”, conforme fls. 295 dos autos, o que pretensamente ofende os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e do direito ao recurso, consagrados no n.º 1 do artigo 29.º e nos nºs 1 e 6 do artigo 67.º da CRA.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
V. APRECIANDO
Não conformado com o Acórdão do Tribunal ad quem que julga deserto o recurso por falta de alegações, vem o Recorrente a este Tribunal interpor recurso, por considerar que o mesmo desrespeita o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos ex vi n.º 1 do artigo 29.º da CRA, que cabe analisar.
A) Sobre a ofensa do princípio da tutela jurisdicional efectiva
É vasta a jurisprudência firmada por este tribunal sobre este princípio constitucional previsto no n.º 1 do artigo 29.º da CRA (vide acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 154/2012, 155 /2012 e 393/2016).
Importa realçar, como descreve JORGE MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, pág. 320), que “o eficaz funcionamento e o constante aperfeiçoamento da tutela jurisdicional dos direitos das pessoas, são sinais de civilização jurídica”.
A tutela jurisdicional efectiva para além de ser um direito é também uma garantia constitucional e tem, igualmente, consagração nos instrumentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH (artigo 10.º), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos - PIDCP (artigo 14.º) e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 7.º), aplicáveis pelos tribunais angolanos, ex vi artigos 13.º e 26.º, n.º 2 da CRA.
Por outro lado, como asseveram J. J. CANOTILHO e VITAL MOREIRA (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, pág. 416) o princípio da tutela jurisdicional efectiva obriga que a protecção através dos tribunais seja real e exequível, pressupondo um quadro de direito material compatível com o estatuto do Estado de Direito e com os direitos fundamentais.
No caso vertente, a decisão recorrida, ao determinar a deserção do recurso, fundamentada nos artigos 292.º, n.º 1 e 690.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, impede que o Recorrente possa continuar a aceder aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, com vista a obter tutela efectiva, tal como prescreve o artigo 29.º da CRA.
B) Sobre a violação do direito ao recurso
O recurso é um instrumento para pedir a mudança de uma decisão da mesma instância ou em instância superior, sobre o mesmo processo, resultando de um direito constitucionalmente consagrado para provocar o reexame de uma decisão, visando a obtenção da sua reforma ou modificação.
Trata-se de um mecanismo processual que é, pois, um direito e garantia do processo criminal que, conforme doutrinou AMÂNCIO FERREIRA, (Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 85) “visa um novo exame da decisão impugnada por parte do órgão jurisdicional hierarquicamente superior”, in casu, o Tribunal Supremo.
No âmbito das garantias de defesa enquadram-se todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para qualquer pessoa condenada defender a sua posição e rebater a decisão contra si proferida. Dentre os direitos de defesa aflorados pela norma constitucional, sobressai o direito ao recurso, plasmado no artigo 67.º da CRA, e igualmente previsto no artigo 8.º da DUDH, e no n.º 5 do PIDCP, aplicáveis pelos tribunais angolanos ex vi do n.º 3 do artigo 26.º da CRA.
Em sede de matéria penal, o direito de defesa do arguido pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição, na medida em que o direito ao recurso incorpora o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Assim, o direito ao recurso, em sede do Direito Processual Penal, traduz-se numa expressão cristalina do direito de defesa dos arguidos ou condenados, consagrado no artigo 67.º da CRA. Assim, por força do disposto no n.º 2 do artigo 57.º da CRA, a restrição a este direito dos arguidos, não pode em caso algum, atingir o núcleo essencial do direito de defesa.
Ademais, conforme esclarece MAIA GONÇALVES (in Código do Processo Penal, Anotado, pág. 910) o princípio das garantias de defesa tem o sentido de que o processo criminal deve ser um processo justo e leal, ficando por isso, proibidas as restrições intoleráveis ou inadmissíveis da possibilidade de defesa dos arguidos.
No caso sub judice, o Recorrente não apresentou as alegações na instância de recurso, conforme fls. 280 dos autos, situação que levou o Tribunal ad quem a julgar o recurso deserto, nos termos do n.º 1 do artigo 292.º e do n.º 1 e 2 do artigo 690.º do CPC.
É inegável que o processo judicial se deve desenvolver dentro de uma ordem lógica e cronológica razoável, com o intuito de atingir o seu objectivo maior que é a resolução dos conflitos. Mas, tem de se ter sempre em atenção que a primeira e principal fonte do Direito processual penal é a Constituição da República de Angola e que, por isso, os alicerces do direito processual penal são, simultaneamente, os alicerces constitucionais do Estado.
Na verdade, o processo não pode ser compreendido como mera técnica processual conducente a disciplinar o exercício da jurisdição, através de princípios e regras que confiram o maior alcance prático e o menor custo possível na protecção concreta dos direitos dos cidadãos, mas, sim, como instrumento de valores e, especialmente, de valores constitucionais.
A concretização da norma processual deve tomar em conta as necessidades do direito material, por ser este o seu fim último, isto é “... a existência do direito processual penal se justifica pela necessidade da aplicação do direito penal aos casos concretos submetidos a julgamento dos tribunais. É através do direito processual penal que se aplica o direito penal”. RAMOS, Vasco A. Grandão, in Direito Processual Penal – Noções Fundamentais. 2015, pág. 12.
O processo penal é, portanto, uma das formas do processo judicial, composto por...uma sucessão de actividades, actos [estreitamente dependentes uns dos outros] e formalidades que têm em vista a realização do direito penal e, através dela, o restabelecimento da ordem jurídica ofendida por comportamentos humanos, legalmente definidos como crimes. Vasco A. Grandão Ramos. 2011 in Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, pág. 10.).
Acontece porém que, in casu, indicam os autos que, para além do Recorrente ter interposto recurso e porque também o digno representante do Ministério Público recorreu da sentença por imperativo legal, admite-se subsistirem elementos essenciais e esclarecedores para se fixar o objecto do recurso e, consequentemente, permitir o direito de acesso aos tribunais que é cabível ao Recorrente (fls. 317, 182, 252, 253, 259 e 263 dos autos).
A consequência jurídica de deserção resulta de regras processuais que devem ser interpretadas tendo em atenção os nºs 1 e 6 do artigo 67.º CRA, pois este preceito reconhece aos cidadãos o direito ao recurso, ao estabelecer que é “…garantido a todos os arguidos ou presos o direito de defesa, de recurso e de patrocínio judiciário” e que “qualquer pessoa condenada tem o direito de interpor recurso ordinário ou extraordinário no tribunal competente da decisão contra si proferida em matéria penal, nos termos da lei”.
Além disso, no âmbito da posição que o Tribunal Constitucional vem defendendo (Acórdão n.º 387/2016), em respeito ao direito ao recurso, constitucionalmente consagrado, o Tribunal Supremo poderia salvaguardar o direito ao recurso mediante a imposição ao Recorrente de pagamento de multa e fixar prazo, nos termos dos artigos 144.º e 145.º do CPC, para que este aduzisse as referidas alegações.
Embora reconhecer-se que a jurisprudência não obriga como obriga a lei, nem entra em confronto de hierarquia com ela, por não se tratar de uma fonte imediata de direito, tem sido entendimento também do Tribunal Constitucional, que, “... num recurso penal o Tribunal ad quem, na falta de alegações, tem nos autos elementos mínimos que lhe permitam conhecer o mérito do recurso sem sacrificar, em substância, o direito constitucional à apreciação do processo em segunda instância (dupla jurisdição)”. (Acórdão n.º 387/2016).
Neste contexto, o artigo 292.º CPC, na parte que se refere à deserção por falta de alegações, não integra o espírito da Constituição da República de Angola e coarta o direito de recurso do Recorrente. A consagração constitucional do direito ao recurso entre as garantias de defesa do Recorrente “significa que o direito a um recurso é manifestação jurídico-constitucionalmente vinculante de um direito, liberdade e garantia pessoal da defesa. Ela não pode ser posta em causa em hipótese alguma. Sempre que, num concreto caso judicial de qualquer espécie, a lei denegue ao arguido condenado o direito a um recurso, a lei é materialmente inconstitucional e não pode, como tal, ser aplicada” (Jorge de Figueiredo Dias, Por onde vai o Processo Penal Português, in As Conferências do Centro de Estudos Judiciários. 2014. Pág. 80).
Nesta ordem de ideias e na esteira da jurisprudência firmada por este Tribunal, nomeadamente, no Acórdão n.º 393/2016, a deserção do recurso por falta de apresentação das alegações configura em última análise, a negação do acesso ao Direito e à Justiça, visto que o objecto da lide não chegou a ser reapreciado pelo Tribunal de recurso, em virtude da ausência de um formalismo processual, que, em última análise, configura uma quebra da garantia constitucional do direito ao recurso.
O Tribunal Constitucional entende que o acórdão recorrido, ao determinar a deserção do recurso, é inconstitucional, por ofender o direito ao recurso instituído nos nºs 1 e 6 do artigo 67.º da CRA, como garantia de defesa em processo penal.

Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:

Sem custas nos termos do artigo 15.º da LPC.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 24 de Junho de 2020.
O JUIZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilherma Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva (Relator)
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima d´ A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor (declarou-se impedido)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata