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ACÓRDÃO N.º 627/2020

PROCESSO N.º 773-A/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

José Pucusso Correia, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 1729/18, que deu provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público junto do Tribunal a quo e condenou o aqui Recorrente na pena de 8 anos de prisão maior, bem como no pagamento de Kz. 500 000,00 (Quinhentos mil Kwanzas) à ofendida, pela prática de crime de violação de menor de 12 anos, nos termos do artigo 394.º do Código Penal (CP).

O Recorrente fundamenta o seu recurso, alegando no essencial o seguinte:

  1. Que foi violado o princípio da presunção de inocência previsto no n.º 2 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola (CRA) e o artigo 11.º n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos;
  1. Durante a audiência de julgamento e produção de prova ficou claro que as declarações da ofendida eram contraditórias, inconsistentes e infundadas;
  1. As provas produzidas durante a instrução do processo e discussão e julgamento não provaram que a menor foi violada ou a autoria do crime, conforme se pode depreender dos documentos de fls. 19, 20, 21, 36 e 45 dos autos;
  1. Que diante de inúmeras dúvidas e incertezas agiu bem o Tribunal a quo ao considerar que não existia prova bastante para condenar o aqui Recorrente, sob pena de, agindo em contrário, estar a violar princípios fundamentais consagrados na CRA e instrumentos jurídicos internacionais de que Angola é parte, nomeadamente o n.º 1 do artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo o qual “toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpa fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”;
  1. O Ministério Público junto do Tribunal a quo interpôs recurso por não conformação, que foi julgado procedente pelo Tribunal Supremo, culminando com a condenação do Recorrente na pena de 8 anos de prisão maior, pela prática de crime de violação de menor de 12 anos, nos termos do artigo 394.º do CP e a pagar, a título de indemnização à vítima, a quantia monetária de Kz. 500 000,00 (Quinhentos mil Kwanzas);
  1. Sem que para isso tivesse sido notificado, foi surpreendido com uma chamada telefónica do Cartório do Tribunal da Comarca do Dande, em que foi informado que deveria comparecer nesse Tribunal para pagar uma guia, e posto lá, foi-lhe dada voz de prisão.

Concluiu referindo que o Acórdão do Tribunal Supremo não teve em conta as premissas enunciadas nos diplomas supra citados e que espelham claramente a dimensão da regra probatória e de julgamento do princípio de presunção de inocência, das garantias da defesa do arguido e do princípio in dubio pro reo.

Termina requerendo que seja dado provimento ao presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade e, consequentemente, a restituição à sua liberdade e absolvido da instância.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente, nos termos do artigo 53.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, interposto com o fundamento na alínea a) do artigo 49.º da LPC, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola”.

Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que, tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é Réu no processo n.º 136/17-F que correu os seus trâmites na 1ª Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial do Bengo, pelo que é parte legítima nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem como objecto a verificação da constitucionalidade do Acórdão proferido a fls. 132 a 139 do Processo n.º 1729/18, pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que deu provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e condenou o ora Recorrente na pena de 8 anos de prisão maior, pela prática do crime de violação de menor de 12 anos, previsto e punível pelo artigo 394.º do CP.

V. APRECIANDO

O Recorrente requer a declaração de inconstitucionalidade do acórdão recorrido por considerar que esta deliberação viola o princípio fundamental da presunção da inocência, consagrado quer no n.º 2 do artigo 67.º da CRA como no n.º 1 do artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Essa inconstitucionalidade decorre, segundo o Recorrente, do facto de a motivação da convicção que resultou na decisão ora sindicada contrariar a tendência dominante da doutrina e da jurisprudência, que propugna no sentido de o depoimento da vítima, quando se revele inconsistente, não deve constituir factor preponderante no processo de descoberta da verdade material, tendo o Tribunal Supremo cedido a uma forte pressão da jurisprudência recente, como se tivesse que respeitar um sistema do precedente, para deliberar em sentido contrário.

A presunção de inocência é um princípio jurídico de ordem constitucional previsto no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, nos termos seguintes “presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.”.

A CRA consagra o princípio da presunção de inocência como eixo fundamental de todo o processo penal, imputando a culpabilidade, após o trânsito em julgado de uma decisão judicial ou seja, apenas quando a decisão já não seja susceptível de modificação por meio de um recurso ordinário.

Deste modo, a CRA encaminha-se para uma garantia ainda maior, ao direito da não culpabilidade, pois garante esse direito até o trânsito em julgado da sentença penal, assegurando ao acusado todos os meios para a sua ampla defesa, não podendo ser revelado culpado enquanto do processo não resultar uma sentença que declare efectiva e definitivamente a sua culpabilidade.

A formulação do n.º 2 do artigo 67.º da CRA vai ao encontro das previsões estatuídas nos instrumentos internacionais sobre direitos fundamentais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece, no seu artigo 11.º, que “toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”. De igual modo, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos consagra, na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º, que toda pessoa tem o “direito de presunção de inocência, até que a sua culpabilidade seja estabelecida por um tribunal competente”. Já o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos estabelece, no n.º 2 do artigo 14.º, que “qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida”.

O princípio in dubio pro reo, que constitui uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência contempla, vincula o julgador a tomada de uma decisão favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos relevantes para a decisão da causa. “Com base neste princípio, compete à parte que acusa demonstrar a culpa do acusado, sem que subsistam dúvidas. Devem ser apresentados os factos que comprovem a culpa e, caso não haja a certeza, o juiz deve abster-se de acusar” (in Anotação n.º 2 ao artigo 67.º da CRA, de ARAÚJO, Raul Carlos Vasques e NUNES, Elisa Rangel, Constituição da República de Angola, Tomo I, pág. 386). Assim, “Não permitindo a prova produzida nos autos certezas, tendo o juiz dúvidas fundadas e legítimas sobre os factos imputados ao réu, terá de absolvê-lo” (Ramos, Vasco A. Grandão Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, Edição Ler e Escrever, 1993, pág. 262).

No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Direito Processual Penal, vol. I, pág. 105, refere que “o princípio da presunção de inocência é antes de mais um princípio natural, lógico, de prova. Com efeito, enquanto não for demonstrada, provada, a culpabilidade do arguido não é admissível a sua condenação. Por isso que o princípio da presunção de inocência seja identificado por muitos autores com o princípio in dubio pro reo, e que efectivamente o abranja, no sentido de que um non liquet na questão da prova deva ser sempre valorado a favor do arguido”.

No presente recurso, verifica-se que o Tribunal a quo, aquando do exercício do seu poder de livre apreciação da prova, concluiu que a prova carreada nos autos não sustentava a convicção necessária para a condenação do réu pelo crime de que vinha acusado e pronunciado.

Porque a livre apreciação da prova estava sujeita ao controlo do tribunal de recurso, que neste caso é o Tribunal Supremo, competia a esta instância analisar se na elaboração da sentença do Tribunal a quo foi seguido um processo lógico, racional e objectivo de apreciação de prova, que atendeu às regras da experiencia comum e do conhecimento científico, para dar por não provados os factos até então imputados ao arguido/réu, e dessa forma, decidir a favor deste, em conformidade com o princípio in dubio pro reo.

O Tribunal ad quem, por sua vez, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção do Tribunal a quo, chegou a conclusão que este não articulou os factos da maneira mais apropriada, considerando que se tal fosse feito a decisão não poderia ser outra senão a de decidir contra o réu. Apontou, portanto, para um erro de valoração da prova carreada aos autos, e decidiu condenar o réu pelo crime de violação de menor de 12 anos, previsto e punível pelo artigo 394.º do CP.

O Recorrente refere como objecto do presente recurso de inconstitucionalidade o exercício de apreciação da prova efectuado pelo tribunal recorrido, por entender que terá levado a um resultado violador do princípio in dubio pro reo, uma vez que, na sua convicção, as dúvidas que afectaram o Tribunal a quo são irremovíveis e deveriam levar o Tribunal ad quem a decidir no mesmo sentido.

Embora seja discutível a idoneidade da questão posta pelo Recorrente para constituir objecto de um recurso de inconstitucionalidade, sempre se dirá que, do aresto em sindicância, é evidente que a prova produzida nos autos não foi susceptível de criar dúvidas ao Tribunal Supremo, ao contrário do que tinha sucedido com o Tribunal a quo. Trata-se de uma convicção motivada no material probatório coligido nos autos, ainda que prejudicada pela falta de mediação. Baseou-se nas declarações orais transcritas e na documentação junta aos autos. O juízo formulado não foi suportado em “presunções de experiência”, não padecendo, deste modo, de qualquer non liquet em matéria de prova. Neste caso, “A convicção do juiz é uma convicção fundamentada, a partir dos dados objectivos fornecidos pelo processo, com vista a um fim específico – a descoberta da verdade material ou objectiva, a verdade tal como ela, na realidade dos factos, ocorreu.” (Ramos, Vasco A. Grandão ob. cit., pág. 253)

Por outro lado, dos autos verifica-se que ao Recorrente foram assegurados o direito de defesa e exercício do contraditório, tendo sido notificado da interposição do recurso e da subida dos autos ao Tribunal Supremo em 23 de Abril de 2017, conforme se depreende da certidão de fls. 128 dos autos, sem que tenha exercido o direito de contra-alegar.

Face ao exposto, o Tribunal Constitucional considera que o Acórdão ora apreciado está conforme aos princípios e normas constitucionalmente tutelados e inerentes ao catálogo de direitos, liberdades e garantias fundamentais, não havendo por isso, violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, previstos no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, bem como no artigo 11.º n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos  Humanos.

Nestes termos, 

DECIDINDO 

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 24 de Junho de 2020. 

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS 

 Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Relatora)