ACÓRDÃO N.º 629/2020PROCESSO N.º 775-C/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Estevão Carlos Filipe Catraio e Daniel Mateus Salesso, melhor identificados nos autos, vêm junto desta instância interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo, proferido pela 1ª Secção da Câmara Criminal, no âmbito do Processo n.º 642/17.
Em concurso de crimes, os Recorrentes foram acusados, pronunciados e condenados a dez de prisão maior, pela prática do crime de roubo qualificado na sua forma frustrada previsto e punido (p.p) pelo n.º 2 do artigo 435.º, 10.º e 104.º, todos do Código Penal (CP) e pelo crime de detenção, uso e porte de arma de fogo, p.p. pelos artigos 8.º, 9.º e 123.º, todos do diploma legislativo 3778/67, de 22 de Novembro.
O Ministério Público, por imperativo legal, interpôs recurso da decisão proferida pelo tribunal a quo, nos termos dos artigos 473.º, § único e 647.º, § 1.º do Código de Processo Penal (CPP).
O Tribunal Supremo, por sua vez, agravou a pena de dez para quinze anos de prisão maior, pelos crimes supra mencionados.
Os Recorrentes, não concordando com a decisão do Tribunal ad quem, vêm ao Tribunal Constitucional impugnar o aresto em causa, pedindo que seja declarado inconstitucional, pelos seguintes fundamentos:
“O acórdão do Tribunal Supremo violou o princípio da proibição da reformatio in pejus;
… o Acórdão do Tribunal Supremo viola de forma clara as disposições constantes do n.º 2 do § 1.º do artigo 667.º do CPP, bem como o princípio do contraditório consagrado nos termos do artigo 415.º do CP e da defesa ampla, porquanto os Réus nos presentes autos, em nenhum momento foram notificados do parecer do Ministério Público que propôs a elevação da pena.
… O tribunal ad quem violou gravemente as disposições constitucionalmente consagradas nos termos do n.º 1 do artigo 67.º, conjugado com o artigo 174.º da CRA. Porquanto o direito adjectivo penal sobre a reformatio in pejus, consagra a excepção de que o tribunal ad quem deveria notificar os réus, para se defender desta reforma da pena ou alteração de dez para quinze anos de prisão maior”.
Os Recorrentes terminaram as alegações solicitando que se declare inconstitucional o Acórdão recorrido por violarem disposições constantes da alínea g) do artigo 63.º, 67.º e do n.º 2 do artigo 174.º, todos da CRA, bem como do n.º 2 do § 1.º do artigo 667.º e do artigo 415.º, ambos do CPP.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional: “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
III. LEGITIMIDADE
Os Recorrentes, são apelados no Processo n.º 642/17, que deu lugar à decisão recorrida, pelo que têm legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º LPC, que dispõe: “têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é apreciar a constitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo que alterou a pena dos Recorrentes de dez para quinze anos de prisão maior.
V. APRECIANDO
Tendo em consideração as alegações dos Recorrentes, infere-se que o presente recurso visa apreciar a violação ou não dos princípios da proibição da reformatio in pejus, do contraditório e da ampla defesa.
A. Sobre a violação do princípio da proibição da reformatio in pejus
Os Recorrentes vêm a terreiro sustentar que o Acórdão do Tribunal Supremo violou o disposto no artigo 667.º do CPP.
Vejamos:
A proibição da reformatio in pejus constitui um princípio que enforma todo processo penal e traduz-se na proibição da reforma da sentença para pior, no sentido de, em sede de recurso, a pena aplicada ao arguido não poder ser agravada. A teleologia subjacente a este princípio é a de não se desincentivar a interposição de recursos pelo arguido, que repute injusta uma decisão judicial (Ana Prata; Catarina Veiga, et. alli in Dicionário Jurídico, Direito Penal e Processual Penal, pág. 441, Ed. Almedina 2014).
O artigo 667.º do CPP estabelece o seguinte “interposto recurso ordinário de uma sentença ou acórdão somente pelo réu, pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa; ou pelo réu e pelo Ministério Público nesse exclusivo interesse, o tribunal superior não pode, em prejuízo de qualquer arguido, ainda que não recorrente:
1.º Aplicar pena que, pela espécie ou medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida;
2.º Revogar o benefício da suspensão da execução da pena ou o da sua substituição por pena menos grave;
3.º Aplicar qualquer pena acessória, não contida na decisão recorrida, fora dos casos em que a lei impõe essa aplicação:
4.º Modificar, de qualquer modo, a pena aplicada pela decisão recorrida.
Da disposição acima decorre que a violação da proibição da reformatio in pejus depende, essencialmente, de dois pressupostos:
No caso vertente, os Recorrentes foram condenados, pelo tribunal a quo, em concurso de crimes, na pena única de dez anos de prisão maior. Contudo, viram esta pena ser agravada para quinze anos de prisão maior, na sequência do recurso interposto pelo Ministério Público, por imperativo legal.
Sobre o recurso interposto pelo Ministério Público, os aqui Recorrentes foram notificados, porém, não contra-alegaram, sendo que o Ministério Público junto do Tribunal Supremo expediu o seu parecer no sentido concordante com a sentença do tribunal a quo.
Alegam os Recorrentes que a agravação da pena pelo tribunal ad quem violou a proibição da reformatio in pejus.
O Tribunal Constitucional entende que o Aresto do tribunal ad quem não violou a proibição da reformatio in pejus, visto que um dos pressupostos essenciais para que haja a referida violação é a existência de recurso interposto exclusivamente no interesse do réu ou da defesa, o que não se verificou no caso em análise.
Não se verificou tal violação, porque, in casu, o recurso interposto pelo Magistrado do Ministério Público, foi por imperativo legal, e este não tem, exclusivamente, em vista tutelar o interesse dos réus ou da defesa, mas antes o interesse da legalidade, da boa administração da justiça penal, permitindo que a decisão do tribunal a quo seja reapreciada e reavaliada pelo tribunal superior, por forma a garantir a justeza da decisão.
Ante o recurso interposto por imperativo legal, o tribunal ad quem tem competência para tomar todas as decisões legais possíveis: confirmação, absolvição, redução ou agravamento da pena, sendo perfeitamente legal a decisão.
B. Sobre a violação do princípio do contraditório e da ampla defesa
Os Recorrentes referem, ainda, que o Acórdão recorrido violou o direito ao contraditório e da ampla defesa, estabelecido no artigo 415.º do CPP; bem como a alínea g) do artigo 63.º, 67.º e o n.º 2 do artigo 174.º, todos da CRA, por ter agravado a pena dos Recorrentes, sem que lhes tenha sido notificado do parecer do Ministério Público, que promove o agravamento da mesma.
O Tribunal Constitucional julga improcedente este argumento, por ser equívoco e infundado, porquanto, atento aos autos, o parecer do Ministério Público foi no sentido da confirmação da decisão proferida pelo tribunal a quo, e não no sentido da sua agravação, como alegam os Recorrentes, vide fls. 137.
O direito ao contraditório é exercido entre as partes do processo, permitindo que cada uma delas possa opor-se ou impugnar o alegado pela parte contrária em seu desfavor.
No caso sub judice, o Tribunal Supremo não tinha obrigação de mandar notificar os Recorrentes, visto que o parecer do Ministério Público junto desta instância, promoveu a confirmação da decisão do Tribunal a quo, decisão esta, com a qual os Recorrentes se conformaram. Conquanto não a impugnaram, nem se dignaram a contra-alegar o recurso interposto pelo Ministério Público, por imperativo legal.
Com efeito, o parecer do Ministério Público junto do Tribunal ad quem, não desencadeou a necessidade de ouvir os recorrentes, pelo facto do mesmo não lhes ser desfavorável.
O Tribunal ad quem só estaria obrigado a notificar os Recorrentes, caso o parecer do Ministério Público naquela instância de recurso fosse pelo agravamento da pena, conforme estabelece o n.º 2 do § 1.º do artigo 667.º do CPP, o que não sucedeu no caso em apreciação.
Nesta conformidade, o Tribunal Constitucional considera não ter havido qualquer violação do princípio do contraditório ou de qualquer outro princípio respeitante ao exercício do direito de defesa dos Recorrentes.
Importa ainda referir que, embora não suscitado pelos Recorrentes, o acórdão recorrido encerra uma fundamentação deficiente, pelo facto de não ter demonstrado com mais elementos, o que motivou a alterar a pena dos Recorrentes de dez para quinze anos de prisão maior.
Não obstante o referido supra, a deficiência da fundamentação, não constitui fundamento bastante para nulidade de uma sentença, tal só seria caso houvesse a omissão total de fundamentação, conforme o disposto na alínea b) n.º 1, do artigo 668.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicado subsidiariamente por força do § único artigo 1.º do CPP.
Neste contexto, o Tribunal Constitucional entende que o Acórdão recorrido não violou os princípios da proibição da reformatio in pejus, do contraditório e da ampla defesa, nem qualquer outro princípio constitucional, sendo legal a decisão do tribunal ad quem.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, o Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 03/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional em Luanda, aos 30 de Junho de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dr. Maria de Fátima de Lima d´A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata