ACÓRDÃO N.º 633/2020
PROCESSO N.º 719-C/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Banco de Poupança e Crédito (BPC), SA, melhor identificado nos autos, interpôs no Tribunal Constitucional o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho de 17 de Julho de 2018, proferido pela 1.ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 676/2018 que julgou deserto o recurso de apelação, por falta de pagamento de preparo inicial.
O Recorrente, inconformado com o Despacho prolactado pelo Tribunal ad quem, em síntese, alegou o seguinte:
Termina requerendo a revogação do Despacho recorrido e que seja declarada a sua inconstitucionalidade.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo “ as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que o Tribunal Constitucional tem competência para apreciar este recurso.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é Apelante do Processo n.º 676/2018, que correu termos na 1.ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo e não viu a sua pretensão atendida, por isso, assiste-lhe legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto verificar a constitucionalidade do Despacho de 17 de Julho de 2018, proferido pela 1ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 676/18, que, por falta de pagamento do preparo inicial, declarou a deserção do recurso de apelação interposto pelo Recorrente.
V. APRECIANDO
O que se pede na questão sub judice é a análise, à luz dos princípios, direitos e garantias constitucionais, da decisão do Tribunal ad quem que declarou deserto o recurso e extinta a instância, nos termos do previsto nos nºs 1 e 3 do artigo 292.º do CPC, por incumprimento pelo Recorrente do pagamento do preparo inicial (fls. 106 e verso), no prazo de 5 dias.
Claro está que, a decisão recorrida junto deste Tribunal viola de forma grosseira o princípio constitucional da efectividade do acesso ao direito, comummente referido como direito à tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º n.º 1 da CRA), mas não só.
Atente-se, prima facie, que a plenitude do acesso ao direito e aos tribunais integra a panóplia de direitos e garantias que a própria Constituição atribui ao individuo de accionar a actividade jurisdicional a fim de vincar, de modo pleno, direitos e interesses legalmente protegidos.
É, em nome desse princípio constitucional, e, porque no edifício legislativo angolano, a Constituição está acima de todas as leis (princípio da hierarquia das normas legais, Hans Kelsen), que se reconhece no individuo um conjunto de direitos fundamentais, entre os quais o de acesso a procedimentos judiciais céleres, expeditos e eficazes para proteger-se contra ameaças ou violações desses direitos (artigo 29.º n.º 5 da CRA), contribuindo, como parte, para materialização da justiça.
In casu, o Recorrente aduz nas suas alegações que, no dia 9 de Julho de 2018, procedeu à junção dos comprovativos de pagamento da guia do preparo inicial no Tribunal Supremo e que terá feito várias diligências para a sua entrega, mas o Cartório do Tribunal recusou-se a recebê-los.
Compulsados os autos, constata-se que o Recorrente foi notificado no dia 2 de Julho de 2018, do despacho para cumprimento do pagamento do preparo inicial no prazo de 5 dias, ao abrigo do artigo 134.º do CCJ. Não o tendo feito no prazo estabelecido, o Tribunal Supremo no dia 17 de Julho de 2018, declarou o recurso deserto e extinta a instância, nos termos dos nºs 1 e 3 do artigo 292.º do CPC. Verifica-se, ainda, que só no dia 25 de Julho de 2018 (fls. 131), concretamente, um dia depois de ter sido notificado da deserção do recurso, o Recorrente deu entrada do comprovativo de pagamento do preparo inicial no Tribunal ad quem, ou seja, quando já o recurso havia sido julgado deserto.
Contudo, importa dizer que, mesmo não existindo a situação invocada pelo Recorrente quanto a alegada recusa pelo Tribunal ad quem de receber os comprovativos de pagamento, é convicção deste Tribunal, já decidido em vários Acórdãos sobre a matéria sub judice, que a falta de pagamento do preparo inicial não conduz, necessariamente, à extinção da instância, na medida em que o julgador deve ter em primazia a observância do princípio da interpretação conforme os cânones constitucionais, enquanto corolários do princípio da supremacia da Constituição à lei.
Efectivamente, urge salientar que, em bom rigor, as decisões judiciais não podem fazer tábua rasa dos princípios hermenêuticos que comandam a relação dialéctica do Direito e da Justiça como um todo estruturante, concretizador da ordem jurídica.
Por outra parte, na classificação dicotómica clássica - Direito instrumental e Direito material – refere-se que a sua conexão deve se pautar e harmonizar com a realização da justiça material, respeitando os princípios da plena integração, da hierarquia das fontes e o da adequação funcional que merecem tutela constitucional.
Entretanto, a orientação seguida pelo Tribunal ad quem, relativamente à decisão recorrida, conferiu prevalência a pressupostos de natureza formal, solução que, no caso sub judice, não se compagina com o espírito e a letra da Constituição, enquanto guardiã dos direitos e garantias constitucionais.
Neste contexto, mal se compreende que a alegada inobservância de formalidades de cariz económico e financeiro, que podem ser supridas até à fase final do processo (artigo 698.º e 725.º do CPC), sejam, por si só, motivo razoável e atendível para a derrogação da aplicabilidade e observância dos ditames constitucionais, quando esta prerrogativa legal dispõe de ferramentas que permitem ao julgador não emperrar a marcha do processo por razões de ordem processual.
Numa dimensão assinalável, a lei vem conferir um efeito reparador imediato, flexível e remediável relativamente ao pagamento deferido do preparo inicial, o que afasta os efeitos cominatórios extintivos vertidos no Despacho recorrido.
Daqui resulta que, no plano legal, a faculdade de pagamento de preparo inicial em fase posterior tenha a sua ratio não só em aspectos meramente formais mas, também, na necessidade de se acautelar a efectiva primazia da concretização teórica e prática da segurança jurídica, da certeza do direito e da praticabilidade da justiça.
Acontece que a decisão impugnada desconsiderou tais aspectos. Pese embora baseado em normas ordinárias (artigos 134.º do CCJ e 292.º do CPC), o Despacho recorrido está eivado de inconstitucionalidade material. Por isso mesmo, cede em face de imperativos constitucionais que, a contrario sensu, seriam cerceados e derrogados, comprometendo a eficácia protectora e garantística da prevalência da Lei Magna, na ordem piramidal do ordenamento jurídico vigente.
É neste sentido que os bens e valores jurídicos não podem ser platonizados por via do recurso a meras normas formais desajustadas da ética racional ou axiológica dos preceitos positivos constitucionais, sob pena de se promoverem desequilíbrios que atentam contra interesses tutelados pela Constituição.
Entende-se, assim, que os fundamentos de razão invocados no Despacho recorrido não gozam de amparo nem da protecção jurídica constitucional, representando, por isso, denegação de justiça (n.º 1 do artigo 29.º), em desfavor da realização do direito a um julgamento justo e conforme (artigo 72.º), do direito à ampla defesa (n.º 5 do artigo 29.º), do direito ao recurso (n.º 6 do artigo 67.º) e do princípio de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (n.º 1 do artigo 29.º), todos previstos na CRA.
Neste quadro, verifica-se a violação combinada de princípios, direitos e garantias constitucionais que retiram ao Recorrente o direito de pleitear, contradizer e intervir no processo, de modo a assegurar o exercício do seu direito ao recurso.
Destarte, preceitua o n.º 6 do artigo 67.º da CRA que o direito ao recurso é uma garantia de um processo justo e conforme, que consiste na reapreciação de uma decisão judicial por uma instância diferente daquela que a proferiu.
Assim, o efeito preclusivo do recurso afasta ou retira ao Recorrente a possibilidade de se manter na lide. Entretanto, tal solução merece censura constitucional pelas implicações que desencadeia ao promover restrições ilegítimas, inapropriadas e desadequadas dos direitos e garantias constitucionais.
Como é sabido, a optimização do direito ao recurso e ao princípio da dupla jurisdição constituem garantias processuais comprometidas com o Estado democrático de direito e, por esse motivo, não podem ser silenciadas pelo Tribunal ad quem, sob pena de esvaziar os princípios e direitos constitucionais, designadamente os princípios da eficácia e da máxima efectividade das normas atinentes a direitos fundamentais.
Em referência jurisprudencial do Tribunal Constitucional veja-se o Acórdão n.º 393/2016, de 8 de Junho que traz clareza aos fundamentos subjacentes sobre esta matéria, e citamos:
“Com efeito, a norma do artigo 292.º do CPC, na parte que sanciona com deserção o recurso por falta de pagamento de custas judiciais, não está conforme a CRA, por desatender aos princípios constitucionais de protecção do direito ao recurso e à tutela jurisdicional efectiva (art.º 29.º), do direito a julgamento justo e conforme (art.º 72.º), sacrificando desproporcionalmente estes valores constitucionais”.
No mesmo alinhamento, a doutrina enfatizada por J.J. Gomes Canotilho na sua obra intitulada Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, pág. 496 e 498 refere que, “(…) um direito de acesso aos tribunais este direito concebe-se como uma dupla dimensão: (1) um direito de defesa ante os tribunais e contra os actos dos poderes públicos; (2) um direito de protecção do particular através dos tribunais do Estado no sentido de este o proteger perante a violação dos seus direitos por terceiros (dever de protecção do Estado e o direito do particular a exigir essa protecção).
(…) a determinação legal da via judiciária adequada não se traduza, na prática, num jogo formal sistematicamente reconduzível à existência de formalidades e pressupostos processuais cuja “desatenção” pelos particulares implica a “perda” automática das causas”.
Ora, no seguimento da posição jurisprudencial e da orientação dogmática aqui enfatizadas, subjaz o entendimento de que a dimensão constitucional postula a valoração e a dignidade do ser, enquanto pessoa humana e da plena e efectiva realização dos seus direitos fundamentais, estando o julgador impedido de restringir ou anular o seu gozo, sem atender os princípios da necessidade, da razoabilidade e da proporcionalidade - princípios e pressupostos essenciais, que o despacho recorrido violou ao dispor naqueles termos. Sendo certo que neste particular os princípios acima mencionados também se aplicam ao ora Recorrente no caso vertente.
Assim, atendendo à perspectiva de constitucionalidade ora enunciada e à dupla vinculação dos tribunais à Constituição e à lei, não pode esta Corte Constitucional descartar a imperiosa necessidade de respeito e salvaguarda do regime dos direitos e garantias constitucionalmente consagrados.
É, pois, de considerar que, em situações de incumprimento da obrigação legal de pagamento do preparo inicial, se deve conferir prevalência a cominação sancionatória pecuniária que postula o agravamento do valor das custas e não a cominação extintiva da instância, como se verifica no Despacho recorrido.
Pelo exposto, é convicção do Tribunal Constitucional que assiste razão ao Recorrente quanto ao pedido invocado nas suas alegações, pelo facto do Despacho recorrido violar, de forma manifesta e ostensiva, princípios, direitos e garantias constitucionais.
Neste sentido, devem os presentes autos ser remetidos ao Tribunal Supremo para efeitos de reforma da decisão, conforme o disposto no n.º 2 do artigo 47.º da LPC.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 4 de Agosto de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite Silva Ferreira (Relatora)
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima d`A. B da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata