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ACÓRDÃO N.º 634/2020

PROCESSO N.º 753-A/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Sociedade Mineira do Cuango, LDA, melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, do Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, datado de 30 de Agosto de 2018.

Admitido o recurso e notificada para apresentar alegações em observância ao disposto no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, da Lei do Processo Constitucional (LPC), fê-lo, conforme se vê a fls. 198 à 204 dos autos, alegando que:

  1. O fundamento, que serviu de base para o não provimento do recurso interposto pela aqui Recorrente, foi única e exclusivamente a entrada tardia da contestação em sede da primeira instância.
  1. A decisão recorrida está eivada de vício interpretativo do benefício do aproveitamento do prazo previsto no n.º 5 do artigo 145.º do CPC, revestido de dignidade constitucional, nos termos do artigo 27.º da CRA, pelo que deverá ser considerada inconstitucional.
  1. A decisão recorrida procurou beneficiar um trabalhador, em detrimento do empregador, tudo por entender que o empregador poderia suportar os custos com a indemnização ao trabalhador, mesmo não sendo devida a referida indemnização. Só assim se justificaria o indeferimento liminar com fundamento na extemporaneidade, quando claramente não verificada.
  1. A actuação supra, num tratamento desigual por aplicação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, em virtude da sua qualidade e condição social, o que, a contrário sensu, resulta numa discriminação ao empregador pelas mesmas razões (qualidade e condição social).
  1. A decisão está ferida de inconstitucionalidade por ignorar de todo, os fundamentos de facto e de direito vertidos nas alegações de recurso de apelação, ao não conhecer dos elementos que sustentavam a defesa da Recorrente.

Terminou pedindo provimento ao presente recurso e, por via dele, que se revogue o Acórdão recorrido, por estar desconforme com a Constituição, designadamente, por violação dos seguintes princípios e direitos com dignidade constitucional:

i. Violação do Princípio da Igualdade de Armas (à luz do artigo 23.º da CRA);

ii. Violação do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do direito a um processo equitativo (artigo 29.º da CRA);

iii. Violação do direito a um julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA).

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.° da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos. Esta competência está igualmente prevista na alínea m), do artigo 16.° da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC. A decisão proferida pelo Tribunal Supremo esgota a cadeia recursória em sede da jurisdição comum.

III. LEGITIMIDADE   

A Recorrente é parte vencida no Processo n.º 622/17, que correu seus trâmites na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, na sequência da acção de despedimento por justa causa, julgada pela 3.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda. Tem direito a contradizer, segundo dispõe o n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional por força do artigo 2.º da LPC.

A legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, cabe-lhe, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é saber se o Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, datado de 30 de Agosto de 2018, proferido no Processo n.º 622/17, terá incorrido em inconstitucionalidade, violando os mais lídimos direitos fundamentais da Recorrente, a saber: princípio da igualdade, acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, direito a um julgamento justo e conforme.

V. APRECIANDO

A. Violação do princípio da igualdade

A Recorrente veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, pois, de seu entendimento, este andou à margem da Constituição e da lei. O cerne das questões invocadas centra-se na condenação à revelia em sede da instância a quo, pelo facto da contestação ter entrado no cartório com o número do processo incorrecto.

A sindicância do Tribunal ad quem ignorou o facto de que, a fls. 44 dos autos o despacho de citação, proferido pela Juiz da causa a 07.10.2015, contém o número do Processo n.º 376/2015-F, quando deveria ser 376/2014-F, conforme fls. 35 dos autos.

Assim, tal situação como se vislumbra, violou direito com dignidade constitucional da Recorrente.

Nos autos, a fls. 198 a 204, alega a Recorrente, violação do princípio da igualdade. Este princípio assenta a sua base no ideal de que, as partes são iguais, merecem tratamento de seus litígios nos mesmos moldes em observância aos ditames processuais, nos termos da Constituição e da lei.

A Recorrente assevera em suas alegações, que o Acórdão recorrido, andou à margem do entendimento hermenêutico do princípio da igualdade, resvalando num tratamento discriminatório, na medida em que o Acórdão recorrido, fez letra morta da celeuma provocada pelo cartório, ao citar erradamente a Recorrente para contestar. Ao confirmar esta decisão incorreu o Acórdão recorrido na violação do princípio da igualdade, porquanto o erro do número do processo é imputável ao cartório, conforme atestam os autos.

O princípio da igualdade defendido por Celso Bandeira de Melo na sua obra, (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, pág. 10, 2008), traz à liça a lógica aristotélica, a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Ou seja, quer às pessoas físicas quanto às pessoas jurídicas é garantido o acesso à jurisdição judicial em virtude de verem os seus direitos salvaguardados nos termos da Constituição e da lei, devendo a lei assegurar tratamento igualitário para todos. O princípio da igualdade, enunciado pela Recorrente, aqui trazida como princípio da igualdade, é um corolário do princípio da legalidade.

Assim, em face disso, à Recorrente não foram dadas iguais circunstâncias nos mesmos termos da contraparte. A questão discordante é assente na linha de pensamento em que seguiu o Acórdão recorrido, para não atribuir razão à Recorrente, quando na verdade, foi erradamente citada, conforme se pode aludir nos autos a fls. 119.

Nestes termos, não se vislumbra no Acórdão recorrido, uma decisão em observância ao princípio da igualdade. Fica, assim, contundido o direito a um processo equitativo à luz do artigo 23.º da CRA.

B. Violação do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do direito a um processo equitativo

A Recorrente afirma no seu requerimento de interposição de recurso, que o Tribunal Supremo ao decidir nos moldes em que decidiu, atropelou o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, doutrinariamente entendido e que, oferece às partes envolventes na querela, a garantia de oportunamente, disporem de todos os meios e fazerem valer junto das instâncias de justiça, os seus lídimos direitos, garantindo o direito ao recurso.

 O exercício da tutela jurisdicional efectiva constitui uma garantia constitucionalmente consagrada, que não pode, em momento algum, ser coarctada num quadro de normalidade constitucional, salvo se dela o ente prescindir.

Daquilo que se pode vislumbrar nos autos, a violação do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, abarcada no Acórdão recorrido, resulta da chancela do Tribunal Supremo a fls. 158 a 169 dos autos, quando defende que o Tribunal a quo andou em conformidade com a lei, ao não receber a contestação.

A materialização da tutela jurisdicional efectiva tem que ver, não só com a acessibilidade aos tribunais em iguais oportunidades de defesa, mas primordialmente com a obtenção de uma decisão alicerçada na justiça e fundada no direito, no cumprimento estrito e rigoroso do estabelecido na Constituição e na Lei. Dito de outro modo, esta questão resvala no princípio da legalidade, enuncia tão-somente que, quer a decisão seja favorável ou não, o Tribunal tem obrigação de pautar todos os seus actos em obediência aos pressupostos da Constituição e da lei.

A Constituição, ao consagrar a tutela jurisdicional efectiva, defende o acesso facilitado aos Tribunais, a celeridade e a igualdade das partes no tratamento das questões em litígio, sem olvidar a observância de todo o processo assente nos demais actos legislativos, em torno dele. Este espírito hermenêutico, depreende-se do artigo 29.º da Constituição traduzido no devido processo legal.

A violação referida em autos de alegações pela Recorrente, em volta do artigo 29.º da CRA, tem razão de ser. Ao contrário dos termos em que se apresenta o Acórdão recorrido, uma vez que o erro do número do processo foi cometido pelo Tribunal a quo, conforme se atesta a fls. 119, o Tribunal Supremo, ao ignorar este facto, chancelou a inconstitucionalidade, prejudicando a Recorrente, na medida em que o Acórdão recorrido deixou de atender aspectos fulcrais que permitiriam olhar para decisão judicial como fim último da realização da justiça.

O direito à tutela jurisdicional não pode ficar comprometido em virtude da exigência legal de pressupostos processuais desnecessários, não adequados e desproporcionados”, (Vide J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª Edição, Almedina 2003. Pág. 498). Aproveitando a deixa deste autor, sublinha-se que o direito ao recurso constitucionalmente previsto no n.º 4 do artigo 29.º da Constituição, não pode ser prejudicado por actos processuais passíveis de serem sanados em outras fases, mediante o pagamento de multa, como já se fez menção acima.

Um outro aspecto igualmente digno de realce, tem que ver com a garantia do benefício do prazo que se estabelece aqui, um paralelismo com o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, pois, o Acórdão recorrido fez menção que os direitos da Recorrente, em sede, de instância a quo, foram prejudicados, por conta da entrada tardia da contestação, o qual afirma a fls. 167 dos autos, que aqui se transcreve:

“Por outro lado, como agravante da situação acabada de referir, somos a constatar que a contestação oferecida (referente ao processo em causa) foi entregue tardiamente, porquanto a apelante foi notificada no dia 10 /08/2016 e ofereceu o seu articulado apenas no dia 19/08/2016, conforme fls. 60-61, isto é decorrido mais de 8 dias após a data devida para apresentação do articulado já referido.

Assim, a questão suscitada não deve ser atendida, pois o lapso ocorrido (troca do número do processo 376/2015-F por 376/2014-F), deve ser imputado única e exclusivamente à negligência da ora Apelante, e nunca à secretaria do Tribunal a quo.

Porém, admitindo apenas por mera hipótese que tal erro não tivesse ocorrido, também é nosso entendimento que da referida peça processual jamais podiam emergir os efeitos preconizados pela Apelante, pelo facto de a contestação ser extemporânea.

Por estas notas, provindas do Acórdão recorrido, depreende-se que o Tribunal ad quem, não julgou em observância ao disposto no n.º 5 do artigo 145.º do CPC:

Independentemente de justo impedimento, pode o acto ser praticado no primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo, ficando porém, a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa de montante igual a 25 por cento do imposto de justiça que seria devido a final pelo processo, ou parte do processo, mas nunca inferior a 500 kz.”

A rácio contida na norma sobredita, resulta do entendimento com dignidade constitucional do artigo 29.º da CRA, no exercício efectivo da chamada tutela jurisdicional efectiva, pois, sonega o direito de a decisão ser apreciada com fundamentos processuais sanáveis mediante o pagamento de multa. Configurou violação da Constituição, nos termos do artigo já citado. Mal andou o Acórdão recorrido.

C. Violação do direito a um julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA)

O fundamento doutrinário com base na doutrina sublinhada pelo jusfilósofo Norberto Bobbio, ensina que a norma jurídica tem de necessariamente obedecer a três valorações, a saber: “ 1) se é justa ou injusta; 2) se é válida ou inválida; 3) se é ineficaz ou eficaz. Trata-se dos três problemas distintos: da justiça, da validade e da eficácia de uma norma jurídica.” (BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 5.ª Edição, pág. 47). De que serve a subsunção que se impõe ao caso concreto, se a norma jurídica não for capaz de realizar a justiça? Do que se depreende a sua validade e eficácia? Não basta só decidir, é imperioso que a decisão satisfaça, ainda que, o Recorrente não logre ganhar a causa. A satisfação, traduz-se na argumentação e fundamentação da decisão, permitindo fazer a sã e acostumada justiça.

A observação dos autos sustenta que não se logrou a realização da justiça, porquanto, a Recorrente foi alvo de um descuido processual cometido pelo cartório, isto em sede da instância a quo, que deveria em bom rigor, ser atendido pelo Tribunal ad quem.

Gomes Canotilho enfatiza que, “Do princípio do Estado de direito deduz-se, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito” (Vide J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, 2003, pág. 494). A realização do direito aqui, traduz-se em equidade das decisões judiciais, ou seja, todos têm direito a um “processo legal, justo e adequado”, significa que toda a acção do tribunal obedece ao estrito e rigoroso cumprimento do legalmente previsto, atentando para a materialização de uma justiça adequada, justa e proporcional nos termos da Constituição e da lei.

O fundamento de Gomes Canotilho traduz a compreensão de que o direito ao julgamento justo tem que ver com a realização do Estado de direito que se alicerça na justiça. Os cânones da ciência jurídica ensinam que o direito não deve estar desprovido de justiça, sob pena de perigar o Estado de direito. Os tribunais devem pautar suas decisões aliadas ao princípio da legalidade, à certeza jurídica, às decisões providas de soluções equitativas, pressupostos estes que não se vislumbram no Acórdão recorrido.

Note-se que a fls. 46, ao ser citada, à Recorrente foi-lhe entregue o despacho que se vê a fls. 44, onde se pode ver, no mesmo, o número do Processo n.º 375/2015-F, que clarifica que por conta do erro cometido pelo cartório do Tribunal a quo, foi prejudicado o direito da Recorrente para que a sua acção não fosse apreciada nos termos que se impunha.

De igual modo, não colhem as razões apresentadas no Acórdão recorrido, sobre a interposição da contestação fora do prazo, na medida em que a lei determina a possibilidade de ser suprida com o pagamento de multa, conforme determina o CPC no n.º 5 do artigo 145.º, a fim de não ser prejudicado o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.

Face ao exposto, esta instância de justiça constitucional é de entendimento que o Acórdão recorrido violou os lídimos direitos e princípios da Recorrente, com dignidade constitucional, em atenção aos artigos, 6.º, 29.º e 72.º todos da CRA. O Tribunal ad quem, inobservou uma cadeia de factos evidentes, que permitiria outro curso do Acórdão recorrido.

Neste sentido, devem os presentes autos serem remetidos ao Tribunal Supremo para efeitos da reforma da decisão conforme disposto n.º 2 do artigo 47.º da LPC.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:

 Sem custas, nos termos do artigo 15.º da LPC.                       

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 4 de Agosto de 2020.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora) 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima d´ A. B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata