ACÓRDÃO N.º 636/2020
PROCESSO N.º 786-B/2020
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
DOMINGOS SANGUEVE PAULO, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.
Inconformado com a decisão, o Recorrente apresentou em síntese as seguintes alegações:
O Recorrente terminou solicitando que este Tribunal dê provimento ao presente recurso e declare inconstitucional o Acórdão do Tribunal Supremo.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é réu no Processo n.º 1861, que correu os seus trâmites na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, subsidiariamente, ao caso em apreço, por previsão do artigo 2.º da LPC.
Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo que correu seus termos naquela instância, cabendo agora verificar se tal decisão violou ou não princípios ou normas constitucionais.
V. APRECIANDO
O Recorrente, Domingos Sangueve Paulo, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, sustentando no essencial que o Acórdão do Tribunal Supremo violou os princípios da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme, na medida em que foi condenado a pagar uma indemnização superior ao valor real do dano efectivamente causado na viatura de marca Nissan Hardbody, implicada no acidente do qual resultaram os presentes autos.
À data da condenação, a respectiva viatura tinha um preço no mercado que não excedia o valor de AKZ 10 650 000,00 (dez milhões, seiscentos e cinquenta mil Kwanzas), estando, por isso, a decisão recorrida eivada de ilegalidade, propiciando, assim, o enriquecimento sem justa causa dos ofendidos.
Alegou ainda entre outras, que a decisão em causa, não teve em conta a condição económica do Recorrente, porquanto obteve um prazo demasiado curto, que não lhe possibilita cumprir a decisão judicial em causa na íntegra.
Para melhor apreciação das questões supra, vale referir que a Constituição da República de Angola consagra no seu artigo 1.º a dignidade da pessoa humana e a justiça como objectivos fundamentais do Estado angolano. Sendo esta a matriz do Estado de Direito igualmente consagrado no artigo 2.º da CRA que enaltece o primado da Constituição, da lei e a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos cuja função de assegurá-los e efectivá-los é também dos tribunais.
Feita esta introdução, cumpre, hic et nunc, analisar se a decisão recorrida terá ou não violado o princípio da tutela jurisdicional efectiva, o direito ao julgamento justo e conforme. Ora, o princípio da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 29.º da CRA, visa realizar e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos por via judicial e não se esgota numa simples apreciação dos factos pelos tribunais, mas também pela subsunção dos mesmos ao direito vigente, com intuito de garantir a intangibilidade do núcleo essencial dos direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos.
Aliás, só nesta óptica se justifica por que razão a realização da justiça ou a resolução de conflitos é um monopólio do Estado, embora não exclusivo, que é, efectivamente, evitar os excessos motivados pela ira, dor dos lesados ou uso da lei da força em vez da força da lei.
Destarte, num Estado de direito como o nosso, a tutela jurisdicional efectiva, implica não só a simples apreciação pelos tribunais das questões que lhe são submetidas com base na lei, como também, apreciar e decidir com base em outros princípios constitucionais tais como, o da equidade, o da proporcionalidade e da razoabilidade porque estes carregam consigo a verdadeira justiça que muitas vezes a lei de per si não pode fazê-la adequadamente. Dito de outra forma, para que se verifique a tutela jurisdicional efectiva é imperioso que a decisão judicial atenda de forma justa e equitativa as pretensões das partes, de tal modo que não se sacrifique demasiadamente direitos de uns à favor de outros, (suum quique tribuere).
Dos factos carreados aos autos, é possível verificar que o Tribunal recorrido condenou o ora Recorrente, ao pagamento de trinta e cinco milhões de Kwanzas, a titulo de indemnização pelos danos causados da viatura de marca Nissan, valor este superior ao valor real da viatura, como se pode constatar das facturas proformas constantes dos autos (cfr. fls 294, 295, 396 dos autos), emitidas pela representante da marca Nissan, a TDA, uma factura, cujo valor não excedia a AKZ 10 650 000,00 (dez milhões, seiscentos e cinquenta mil kwanzas) à data da condenação em 1ª instância do aqui Recorrente, o que torna excessivo o valor arbitrado, visto que o Código Civil, no seu n.º 2 do artigo 566.º, estabelece, como medida da indemnização, quanto aos danos materiais, a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
Desta norma resulta que qualquer encargo superior ao prejuízo causado é injusto e ilegal por configurar enriquecimento sem justa causa, proibida legalmente pelo artigo 473.º do CC.
Reitera-se que há distinção entre punição e reparação de danos que, segundo Gratius, “a pena é o mal do sofrimento, que é infligido por causa do mal da acção” e cuja aplicação, segundo Pascoal de Melo, “é determinada pela quantidade de moralidade com que alguém comete o delito, enquanto a restituição ou reparação atende-se à quantidade da lesão”, (vide, Lourenço, Paula Meira, in A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, página 80, Coimbra Editora,2006).
Desde logo, o valor ora impugnado não é uma punição, é uma reparação do dano, ipso facto, deveria ter maior correspondência com o valor real da referida viatura em vigor no mercado, o que não aconteceu.
O Tribunal baseou-se simplesmente numa avaliação feita por peritos durante a fase de instrução processual, ignorando as provas da fase da instrução contraditória apresentadas pelo Recorrente, sendo esta uma violação ao princípio da imparcialidade, previsto no artigo 175.° da CRA.
Ademais, os tribunais, na tomada das suas decisões, estão vinculados, para além dos princípios já elencados, também ao dever de fundamentação porque o seu fim último é criar a harmonia social, razão pela qual se fosse a intenção do julgador incluir neste valor a reparação de outros danos (morais, danos doloris, estéticos, etc …), a decisão recorrida deveria ser explícita, postergando, assim, o dever de fundamentação.
Assim sendo, a decisão recorrida atentou não só contra os princípios da ponderação e da razoabilidade, estando enfermada de arbitrariedade, no que ao valor da viatura diz respeito, como também viola o direito ao julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, por condenar o Recorrente num valor diverso do valor real do bem danificado.
Por outra, importa referir, que muitas das questões levantadas pelo Recorrente, tais como o aludido curto prazo para o cumprimento da decisão recorrida, o facto de o valor de 5 000 000,00 (cinco milhões de Kwanzas) a que foi condenado como forma de compensação à favor dos familiares do de cujus, serem na sua visão elevados, estas matérias não estão na alçada das competências do Tribunal Constitucional, que no rigor da lei só deve pronunciar-se sobre questões de natureza jurídico-constitucional, conforme prevê o artigo 180.º da CRA, conjugado com o artigo 16.º da Lei n.º 2/08 de 17 de Junho, ( redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10 de 3 de Dezembro ).
Este Tribunal não é mais uma super instância ou terceira instância da jurisdição comum, conforme ensina o Professor Carlos Blanco de Morais: esta não é uma instância suprema de mérito, ou um Tribunal de super revisão, não lhe compete aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo…”( vide, De Morais , Carlos Blanco, in Justiça Constitucional TOMO II O Direito do Contencioso Constitucional, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág.619 Lisboa 2011).
Por isso, não pode este Tribunal em circunstância alguma, pronunciar-se sobre as questões supramencionadas, sob pena de violar o princípio da legalidade e o da independência dos tribunais que lhe servem de barómetro.
Por tudo quanto foi dito e analisado, o Tribunal Constitucional pugna pela procedência parcial do presente recurso, por se vislumbrar no Acórdão recorrido, violação das normas e princípios constitucionais nomeadamente, o da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 29.º e 72.º, ambos da CRA.
Neste sentido, devem os presentes autos ser remetidos ao Tribunal Supremo para efeitos de reforma da decisão, conforme o disposto no n.º2 do artigo 47.º da LPC.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 05 de Agosto de 2020
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lemos d´A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata