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ACÓRDÃO N.º 636/2020

 PROCESSO N.º 786-B/2020

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO 

DOMINGOS SANGUEVE PAULO, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.

Inconformado com a decisão, o Recorrente apresentou em síntese as seguintes alegações:

  1. Foi condenado em primeira instância pela prática dos crimes de homicídio involuntário, ofensas corporais involuntárias e danos voluntários na pena de 18 meses de prisão, suspensa por um período de 3 anos, com a obrigação de proceder, no prazo de 6 meses, à indemnização de AKZ 300 000,00 (trezentos mil Kwanzas) aos ofendidos, e Kzs 5 000 000,00 (cinco milhões de kwanzas aos familiares do de cujus, e mais Kzs. 35 000 000,00 (trinta e cinco milhões de Kwanzas) da viatura NISSAN HARDBODY.
  2. Inconformado, recorreu para o Tribunal Supremo que confirmou a decisão então recorrida na parte referente à reparação civil ordenada nos autos.
  3. A decisão recorrida demonstra-se inconstitucional por violar os princípios da tutela jurisdicional efectiva, do julgamento justo e conforme, consagrados nos artigos 29.º, n.º 4 e 72.º, ambos da Constituição da República de Angola (CRA), respectivamente.
  4. Tal violação deve-se ao facto de o Recorrente ter sido condenado ao pagamento de indemnizações superiores ao devido e sem a observância do disposto nos artigos 562.º, 564.º e 566.º do Código Civil (CC).
  5. Não sendo possível a reintegração in natura da viatura de marca Nissan Hardbody, por se mostrar impossível, dever-se-á recorrer a reintegração por mero equivalente ou indemnização, que têm necessariamente de ter em atenção aquilo que é o valor real da respectiva viatura à data do acidente e não a sua valoração como se de nova se tratasse, sendo que, há uma supervalorização da viatura de tal ordem que ao concretizar-se o pagamento dos trinta e cinco milhões de Kwanzas, estar-se-á numa situação de enriquecimento sem causa justificativa.
  6. Consta junto dos autos documentos que evidenciam que, mesmo por mera hipótese, se tivesse que ser dada uma viatura nova à título de reparação o seu valor seria, à data da condenação, no máximo AKZ 10 650 000,00 (dez milhões seiscentos e cinquenta mil kwanzas), e, tratando-se de uma viatura já usada, levar-se-ia em conta a sua desvalorização gradual ao longo dos anos; por isso, o Recorrente foi condenado arbitrariamente e de forma excessiva pelas duas instâncias judicias.
  7. A condenação do Recorrente no pagamento de AKZ. 5 000 000,00 (cinco milhões de Kwanzas) a favor dos familiares do de cujus revela-se desproporcional, por não se ter em conta as condições económicas do arguido, cuja capacidade económica comprovada nos autos, não lhe permite cumprir integralmente em tão pouco tempo a indemnização arbitrada.
  8. Ao condicionar a suspensão da pena ao efectivo pagamento de indemnizações tão avultadas no curto prazo de 6 meses, a decisão recorrida demonstra-se injusta e parcial, violadora do direito ao julgamento justo, conforme e equitativo.
  9. A decisão recorrida é inconstitucional por ofender os princípios da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme.

O Recorrente terminou solicitando que este Tribunal dê provimento ao presente recurso e declare inconstitucional o Acórdão do Tribunal Supremo.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

 III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é réu no Processo n.º 1861, que correu os seus trâmites na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, subsidiariamente, ao caso em apreço, por previsão do artigo 2.º da LPC.

Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.

 IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo que correu seus termos naquela instância, cabendo agora verificar se tal decisão violou ou não princípios ou normas constitucionais.

V. APRECIANDO

O Recorrente, Domingos Sangueve Paulo, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, sustentando no essencial que o Acórdão do Tribunal Supremo violou os princípios da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme, na medida em que foi condenado a pagar uma indemnização superior ao valor real do dano efectivamente causado na viatura de marca Nissan Hardbody, implicada no acidente do qual resultaram os presentes autos.

 À data da condenação, a respectiva viatura tinha um preço no mercado que não excedia o valor de AKZ 10 650 000,00 (dez milhões, seiscentos e cinquenta mil Kwanzas), estando, por isso, a decisão recorrida eivada de ilegalidade, propiciando, assim, o enriquecimento sem justa causa dos ofendidos.  

Alegou ainda entre outras, que a decisão em causa, não teve em conta a condição económica do Recorrente, porquanto obteve um prazo demasiado curto, que não lhe possibilita cumprir a decisão judicial em causa na íntegra.

Para melhor apreciação das questões supra, vale referir que a Constituição da República de Angola consagra no seu artigo 1.º a dignidade da pessoa humana e a justiça como objectivos fundamentais do Estado angolano. Sendo esta a matriz do Estado de Direito igualmente consagrado no artigo 2.º da CRA que enaltece o primado da Constituição, da lei e a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos cuja função de assegurá-los e efectivá-los é também dos tribunais.

 Feita esta introdução, cumpre, hic et nunc, analisar se a decisão recorrida terá ou não violado o princípio da tutela jurisdicional efectiva, o direito ao julgamento justo e conforme. Ora, o princípio da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 29.º da CRA, visa realizar e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos por via judicial e não se esgota numa simples apreciação dos factos pelos tribunais, mas também pela subsunção dos mesmos ao direito vigente, com intuito de garantir a intangibilidade do núcleo essencial dos direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos.

Aliás, só nesta óptica se justifica por que razão a realização da justiça ou a resolução de conflitos é um monopólio do Estado, embora não exclusivo, que é, efectivamente, evitar os excessos motivados pela ira, dor dos lesados ou uso da lei da força em vez da força da lei.

Destarte, num Estado de direito como o nosso, a tutela jurisdicional efectiva, implica não só a simples apreciação pelos tribunais das questões que lhe são submetidas com base na lei, como também, apreciar e decidir com base em outros princípios constitucionais tais como, o da equidade, o da proporcionalidade e da razoabilidade porque estes carregam consigo a verdadeira justiça que muitas vezes a lei de per si não pode fazê-la adequadamente. Dito de outra forma, para que se verifique a tutela jurisdicional efectiva é imperioso que a decisão judicial atenda de forma justa e equitativa as pretensões das partes, de tal modo que não se sacrifique demasiadamente direitos de uns à favor de outros, (suum quique  tribuere).

Dos factos carreados aos autos, é possível verificar que o Tribunal recorrido condenou o ora Recorrente, ao pagamento de trinta e cinco milhões de Kwanzas, a titulo de indemnização pelos danos causados da viatura de marca Nissan, valor este superior ao valor real da viatura, como se pode constatar das facturas proformas constantes dos autos (cfr. fls 294, 295, 396 dos autos), emitidas pela representante da marca Nissan, a TDA, uma factura, cujo valor não excedia a AKZ 10 650 000,00 (dez milhões, seiscentos e cinquenta mil kwanzas) à data da condenação em 1ª instância do aqui Recorrente, o que torna excessivo o valor arbitrado, visto que o Código Civil, no seu n.º 2 do artigo 566.º, estabelece, como medida da indemnização, quanto aos danos materiais, a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.

Desta norma resulta que qualquer encargo superior ao prejuízo causado é injusto e ilegal por configurar enriquecimento sem justa causa, proibida legalmente pelo artigo 473.º do CC.

Reitera-se que há distinção entre punição e reparação de danos que, segundo Gratius, “a pena é o mal do sofrimento, que é infligido por causa do mal da acção” e cuja aplicação, segundo Pascoal de Melo, “é determinada pela quantidade de moralidade com que alguém comete o delito, enquanto a restituição ou reparação atende-se à quantidade da lesão”, (vide, Lourenço, Paula Meira, in A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, página 80, Coimbra Editora,2006).

Desde logo, o valor ora impugnado não é uma punição, é uma reparação do dano, ipso facto, deveria ter maior correspondência com o valor real da referida viatura em vigor no mercado, o que não aconteceu.

O Tribunal baseou-se simplesmente numa avaliação feita por peritos durante a fase de instrução processual, ignorando as provas da fase da instrução contraditória apresentadas pelo Recorrente, sendo esta uma violação ao princípio da imparcialidade, previsto no artigo 175.° da CRA.

 Ademais, os tribunais, na tomada das suas decisões, estão vinculados, para além dos princípios já elencados, também ao dever de fundamentação porque o seu fim último é criar a harmonia social, razão pela qual se fosse a intenção do julgador incluir neste valor a reparação de outros danos (morais, danos doloris, estéticos, etc …), a decisão recorrida deveria ser explícita, postergando, assim, o dever de fundamentação.

Assim sendo, a decisão recorrida atentou não só contra os princípios da ponderação e da razoabilidade, estando enfermada de arbitrariedade, no que ao valor da viatura diz respeito, como também viola o direito ao julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, por condenar o Recorrente num valor diverso do valor real do bem danificado.

Por outra, importa referir, que muitas das questões levantadas pelo Recorrente, tais como o aludido curto prazo para o cumprimento da decisão recorrida, o facto de o valor de 5 000 000,00 (cinco milhões de Kwanzas) a que foi condenado como forma de compensação à favor dos familiares do de cujus, serem na sua visão elevados, estas matérias não estão na alçada das competências do Tribunal Constitucional, que no rigor da lei só deve pronunciar-se sobre questões de natureza jurídico-constitucional, conforme prevê o artigo 180.º da CRA, conjugado com o artigo 16.º da Lei n.º 2/08 de 17 de Junho, ( redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10 de 3 de Dezembro ).

Este Tribunal não é mais uma super instância ou terceira instância da jurisdição comum, conforme ensina o Professor Carlos Blanco de Morais: esta não é uma instância suprema de mérito, ou um Tribunal de super revisão, não lhe compete aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo…”( vide, De Morais , Carlos Blanco, in Justiça Constitucional TOMO II O Direito do Contencioso Constitucional, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág.619 Lisboa 2011).

 Por isso, não pode este Tribunal em circunstância alguma, pronunciar-se sobre as questões supramencionadas, sob pena de violar o princípio da legalidade e o da independência dos tribunais que lhe servem de barómetro.

Por tudo quanto foi dito e analisado, o Tribunal Constitucional pugna pela procedência parcial do presente recurso, por se vislumbrar no Acórdão recorrido, violação das normas e princípios constitucionais nomeadamente, o da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 29.º e 72.º, ambos da CRA.

Neste sentido, devem os presentes autos ser remetidos ao Tribunal Supremo para efeitos de reforma da decisão, conforme o disposto no n.º2 do artigo 47.º da LPC.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 05 de Agosto de 2020

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) ­

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator) 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lemos d´A. B. da Silva 

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata