ACÓRDÃO N.º 637/2020
PROCESSO N.º 728-D/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Noémia Roberta Santiago Paixão Sobrinho, melhor identificada nos autos, interpôs no Tribunal Constitucional o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 17 de Janeiro de 2019, prolactado pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2243/18, que a condenou na pena de 4 (quatro) anos de prisão maior pela prática do crime de burla por defraudação, previsto e punível pelos artigos 451.º n.º 1 e 421.º n.º 4, ambos do Código Penal (CP), e no pagamento solidário de uma indemnização no valor de Kz 150 000,00 (cento e cinquenta mil Kwanzas) a uma das ofendidas.
A Recorrente, inconformada com o douto acórdão, em síntese, arguiu nas suas alegações que:
Termina requerendo que seja dado provimento ao presente recurso e restituída a sua liberdade revogando-se o acórdão recorrido, por violação dos princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na CRA.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento da cadeia recursória, conforme o estatuído no § único do artigo 49.º da LPC.
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é Ré no Processo n.º 2243/18, que correu termos no Tribunal ad quem, por essa razão, tem legitimidade para interpor o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do artigo 50.º da LPC, que estabelece, no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar se o Acórdão de 17 de Janeiro de 2019, prolactado pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2243/18, violou princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
V. APRECIANDO
A. Do Direito ao duplo grau de jurisdição
No presente recurso, inconformada do Acórdão prolactado pelo Tribunal ad quem, a Recorrente veio ao Tribunal Constitucional requerer a sua inconstitucionalidade, por violação dos princípios, direitos e garantias fundamentais.
Na situação em tela e tal como resulta dos termos em que sufraga a impugnação, a Recorrente alega que a sua prisão é ilegal porque o Tribunal a quo executou a decisão sem o trânsito em julgado do Acórdão, violando os princípios da legalidade, do duplo grau de jurisdição e do direito a julgamento justo e conforme, pelo que cabe agora ao Tribunal Constitucional analisar as questões de inconstitucionalidade suscitadas.
Desde logo, é pertinente enfatizar que a Constituição da República de Angola (CRA) proclama um conjunto de direitos e garantias fundamentais atribuídos aos arguidos, nos quais se subsumem o direito ao recurso, o direito à ampla defesa e o direito ao duplo grau de jurisdição.
No processo que ocupa este relato, a Recorrente interpôs, tempestivamente, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade, mas o Tribunal a quo executou a decisão ora em sindicância pelo Tribunal Constitucional, substituindo a medida de coacção pessoal de termo de identidade e residência, que lhe havia sido aplicada pela prisão efectiva.
Sobre os aspectos acima arrolados, vale referir que o princípio do duplo grau de jurisdição comporta uma dimensão plural, perspectivado numa vertente dualista que se entrelaça com o direito ao recurso e o direito à ampla defesa.
Inspirado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (artigo 8.º) e nas constituições modernas seguidoras do iluminismo, o vasto âmbito de direitos e garantias fundamentais consagradas no ordenamento jurídico angolano permite ao arguido contradizer ou impugnar as decisões recorríveis, como decorrência de um processo justo e conforme.
No Estado de direito, a concretização do princípio do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, eleva o direito de recorribilidade das decisões jurisdicionais, como um meio de defesa eficaz para a salvaguarda dos interesses legalmente protegidos pelo artigo 29.º da CRA, sendo evidente que esse tributo da ordem constitucional angolana não foi negado à Recorrente, por ter efectivado na plenitude o exercício do direito jusfundamental ao recurso.
No caso em apreço, constata-se, nos autos a fls. 230, que o despacho proferido pelo Juiz ad quem alude:
“Admito o recurso interposto.
Deve ser remetido nos próprios autos ao Tribunal Constitucional.
O efeito é suspensivo”.
Ora, como decorre do sobredito despacho transcrito, não se suscitou nenhum impedimento ou constrangimento à admissibilidade do recurso, o que deita por terra a invocação feita pela Recorrente sobre essa matéria. Mas, se assim é, quanto a violação do princípio do duplo grau de jurisdição e do direito ao recurso, dúvidas subsistem no que respeita a observância e concretização do efeito suspensivo do recurso, por ter sido, integralmente, desconsiderado em desvalor da ordem jurídica constitucional e da eficácia do acatamento obrigatório das decisões judiciais.
Neste contexto, afigura-se meritório e consentâneo com a lei o efeito suspensivo decretado no despacho supra, pois trata-se de um recurso que afasta a aplicabilidade do efeito devolutivo, nos termos da alínea a) do artigo 44.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 52.º, ambos da LPC.
Salientando Henriques Eiras, Juiz Conselheiro Jubilado, e Guilherme Fortes, na sua obra Processo Penal Elementar, 8ª Edição, Actualizada, Editora Quid Juris, pág. 337, “ o efeito de decisão recorrida significa que o processo pode prosseguir ficando a decisão recorrida suspensa. Sendo a decisão condenatória, se o recurso teve efeito a suspensão, ela não pode ser executada.”
Na mesma esteira, sobre os efeitos do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, a jurisprudência do Tribunal Constitucional concluiu, no Acórdão n.º 623/2020, de 2 de Junho, que, em direito penal, o efeito suspensivo traduz-se, essencialmente, no seguinte: a decisão tomada não produz efeito algum, devendo, em princípio, o réu permanecer com a medida de coacção que eventualmente lhe tenha sido aplicada, caso se mantenham os pressupostos legais.
Em razão disso, à luz da construção dogmática citada e da jurisprudência sedimentada pelo Tribunal Constitucional, resulta evidente que os recursos que determinam o efeito suspensivo das decisões recorríveis, sustêm a execução da pena condenatória. Trata-se de um corolário que sustenta a paralisação da condenação até à decisão do Tribunal de recurso. Aqui, há que atentar, fundamentalmente, o âmbito dos direitos e garantias constitucionais, particularmente, os princípios da segurança e da certeza jurídicas e o da presunção de inocência como pressupostos justificáveis da suspensão da execução da sentença condenatória nos recursos de efeito suspensivo.
Deste modo, é possível assacar que do efeito útil do recurso subjaz a possibilidade de reapreciação ou reexame da decisão sindicada pelo Tribunal recorrido, podendo ou não ocorrer a manutenção, a modificação, ou seja, a alteração da pena, condenando-se ou absolvendo-se o réu.
Assim, sobre este quesito alegado pela Recorrente, entende este Tribunal, conforme orientação já reafirmada na sua jurisprudência, que se deve manter a medida de coacção pessoal aplicada nomeadamente o termo de identidade e residência, existente à data da condenação, caso, ainda, se verifiquem os pressupostos e requisitos legalmente cabíveis.
B. Dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo
Os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo representam a emanação jurídica legal expressiva da consagração constitucional das garantias processuais de defesa dos arguidos, assentes na promoção da dignidade da pessoa humana. O alcance material e formal desses princípios no processo penal releva que a prova produzida, se for insuficiente para o convencimento ou formação do juízo de certeza sobre a existência da infracção, decide-se a favor do réu.
O princípio da presunção de inocência constitui uma garantia do processo criminal fundado na busca da ampla defesa, ancorado no substrato de que o arguido se presume inocente enquanto não for legalmente provada a sua culpabilidade, por sentença transitada em julgado. In casu, refere a Recorrente que criou dúvida quanto à sua culpa, pelo facto de o Tribunal não se ter formado um juízo de certeza, sobre a sua participação no crime que lhe foi imputado.
Contudo, este Tribunal constata que o Tribunal ad quem firmou a sua convicção nas provas constantes dos autos, mormente o auto de declaração da ofendida Verónica Pedro, do relatório final do serviço provincial de investigação criminal e da acta de audiência de julgamento (fls. 25, 44 e 127), que não deixaram dúvidas ou incertezas ao julgador sobre o grau de participação da Recorrente na prática do crime.
Ademais, o Tribunal recorrido, na apreciação que fez desagravou a responsabilidade criminal da Recorrente, porque entendeu que só ficou provado o delito cometido contra a ofendida e não relativamente aos demais ofendidos.
Por isso, não é verdade que, na mensuração da pena, o Tribunal ad quem não tivesse ponderado os elementos a atender na sua determinação, como alega a Recorrente, porquanto o acórdão em crise expressa as circunstâncias atenuantes e agravantes previstas no CP, trazidas à colação, como sendo, a premeditação, o facto do crime ter sido cometido por duas pessoas (n.º 1 e 10 do artigo 34.º); ausência de antecedentes criminais, natureza reparável do crime e encargos familiares (n.º 1, 19 e 23 do artigo 39.º), circunstâncias que estão intimamente relacionadas com o grau de ilicitude, a intensidade do dolo e a personalidade do agente.
Como se vislumbra, esses factores materiais foram graduados e valorados pelo Tribunal ad quem, em respeito ao preceituado no artigo 84.º do CP, que estabelece o seguinte: “A aplicação das penas, entre os limites fixados na lei para cada uma, depende da culpabilidade do delinquente, tendo-se em atenção a gravidade do facto criminoso, os seus resultados, a intensidade do dolo ou grau da culpa, ou motivos do crime e a personalidade do delinquente.”
No caso sub judice, o Tribunal ad quem interpretou a norma do artigo supracitado, pelo que não pode este Tribunal atender como plausível a invocada violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, mesmo porque, só em caso de dúvida, prevalecem estes princípios. Porém, tal não se verificou no concreto, uma vez que, conforme os autos, foi produzida prova bastante e suficiente relativamente ao crime cometido, sem descurar a confissão feita pela própria Recorrente ao admitir a prática do crime, como atestam os autos de (fls. 25, 44 e 127).
C. Do princípio da reformatio in pejus
A proibição da reformatio in pejus vem, no essencial, evitar que o réu seja surpreendido por decisões que agravam a sua situação, pondo em causa os princípios da segurança e certeza jurídicas. Na verdade, no Estado de direito, enquanto garante dos direitos fundamentais, assume particular relevo o princípio da estabilidade das decisões judiciais. No caso particular do processo crime, a sua alteração deve adoptar o sentido mais favorável ao arguido, não podendo, em nenhuma circunstância, representar um agravamento prejudicial dos seus direitos e garantias jusfundamentais.
Não é demais sublinhar que, em matéria de recurso (artigos 47.º e 51.º n.º 3, da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro – Lei sobre o Ajustamento das Leis Processuais Penal e Civil), o Tribunal Supremo tem competência para proceder à reapreciação da causa, conhecendo as matérias de facto e de direito, confirmando, revogando, alterando ou anulando, conforme entender, a decisão objecto de recurso, exceptuando o previsto no artigo 667.º do CPP, que tipifica a proibição da reformatio in pejus (reforma para pior).
Na óptica da Recorrente, o Tribunal ad quem ao ter concluído que a sua conduta se subsume na previsão do n.º 4 do artigo 421.º do CP, cuja previsão é a pena de prisão maior de 2 a 8 anos, preterindo a condenação feita pelo Tribunal a quo prevista no n.º 5 do artigo 421.º do CP, pena de prisão maior de 8 a 12 anos, deveria na aplicação da pena fazer recurso à atenuação extraordinária, tal como o fez o Tribunal a quo. Não o tendo feito, violou o principio da reformatio in pejus.
A este propósito, estabelece o artigo 667.º do CPP (proibição da reformatio in pejus) que “ interposto recurso ordinário de uma sentença ou acórdão somente pelo réu, pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa, ou pelo réu e pelo Ministério Público nesse exclusivo interesse, o tribunal superior não pode, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrente:
1.º - Aplicar pena que, pela espécie ou pela medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida;
2.º- Revogar o benefício da suspensão da execução da pena ou o da sua substituição por pena menos grave;
3.º - Aplicar qualquer pena acessória, não contida na decisão recorrida, fora dos casos em que a lei impõe essa aplicação;
4.º - Modificar, de qualquer modo, a pena aplicada pela decisão recorrida.
Ora, o sentido teleológico do citado preceito sobre os requisitos de aplicabilidade da reformatio in pejus dispõe que, quando é interposto recurso da decisão final, o tribunal superior não pode modificar a pena aplicada pela decisão recorrida, em prejuízo do réu, ou seja, o tribunal superior não pode modificá-la, quer quanto à espécie, quer quanto à medida no sentido do seu agravamento.
Da leitura dos autos (fls. 200 a 201), verifica-se que o Tribunal ad quem, na formulação da sua convicção, baixou a dosimetria penal prevista no n.º 5 do artigo 421.º (8 a 12 anos de prisão maior) para a do n.º 4 do artigo 421.º (2 a 8 anos de prisão maior), ambos do CP e, por conseguinte, não se confunde com a cominação do Tribunal a quo.
Para além disso, é inequívoco que a redução do valor da indemnização arbitrado pelo Tribunal ad quem longe de prejudicar, beneficiou a Recorrente. Assim, este Tribunal verifica que a espécie, crime de burla por defraudação e a medida da pena aplicada, 4 (quatro) anos de prisão maior, não foram modificadas ou agravadas pelo Tribunal ad quem em prejuízo da Recorrente.
D. Do direito a julgamento justo e conforme.
Alega a Recorrente que é inconstitucional a interpretação, segunda a qual, a moldura penal de ambos os réus é igual, uma vez que ao co-réu Manuel José não restam dúvidas da prática do crime de burla por defraudação face aos demais ofendidos nos autos, mas não se provou relativamente a si, com excepção de uma das ofendidas. Será assim?
Vejamos:
O princípio da igualdade de oportunidades (isonomia) não traduz a obrigatoriedade de se tratar igual o que é desigual. Os argumentos chamados á colação pela Recorrente para sustentar a comparação estabelecida com o co-réu por si só, tal como foram enunciados, configuram-se triviais e deslocados da essência deste princípio.
É que, na perspectiva constitucional, as condições de punibilidade nos casos de co-autoria não podem ser vistas numa óptica de dualidade de interesses que imponha a fixação da mesma condenação aos co-autores. A ratio decidendi deve alinhar-se em duas premissas fundamentais, mormente a igualdade formal e a igualdade material, como um pressuposto garantístico da emanação da justiça social.
Neste concreto, a eficácia do princípio da igualdade é correlata à proibição discriminatória e deve ser apreciado materialmente, não se confundindo com o princípio da individualização da pena.
Decorre daqui, bem como da jurisprudência sedimentada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 336/2014, de 11 de Setembro, o entendimento de que, o princípio da igualdade não deve ser assumido de forma descontextualizada, sob pena de poder o próprio conceito criar injustiças. Com efeito, o que este princípio garante é que todos devem ser tratados de forma igual em função da igualdade das situações, reservando tratamento desigual para as situações desiguais na medida da respectiva desigualdade. Ou seja, proíbe que sejam criadas diferenciações arbitrárias, que levem a possíveis discriminações infundadas, mas é certo que o tratamento igual entre iguais e desigual entre desiguais encerra, em si mesmo, uma materialização do conceito de justo.
Como de resto, dispõem os nºs 1 e 2 do artigo 23.º da CRA que todos são iguais perante a Constituição e a lei, sendo que, “Ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções politicas, ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão.
Demonstram os autos que o Tribunal ad quem enquadrou a matéria fáctica na moldura penal abstracta de 2 a 8 anos de prisão maior. Diversamente, o Tribunal a quo fê-lo na previsão de 8 a 12 anos de prisão maior. Pelo que não se pode considerar tratar-se da mesma cominação. Assinala-se que, quer o Tribunal a quo quer o Tribunal ad quem condenaram a Recorrente na pena de prisão de 4 anos, embora estribados em fundamentos e pressupostos jurídicos distintos. Com efeito, o Tribunal a quo recorreu a atenuação extraordinária, o Tribunal ad quem fez recurso a atenuação geral. Contudo, tal condenação do julgador não resulta necessariamente de poderes ilimitados, discricionários ou excessivos.
A solução preconizada pelo Tribunal ad quem conforma-se aos princípios da legalidade, da livre apreciação da prova, da convicção do julgador, da individualização da pena e da fundamentação da decisão.
Ademais, os princípios constitucionais devem ser interpretados de forma harmónica e irrestrita na lógica de um sentido holístico e unitário. Nessa esteira, há que considerar a aferição da cominação das penas numa globalidade sistémica de princípios constitucionais que irradiam sistemas de normas, nos quais confluem valores e bens fundamentais tutelados pela ordem jurídica constitucional numa concordância prática.
Em sede do princípio da livre convicção do julgador, previsto no artigo 655.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente ao processo penal, cabe enfatizar que encaixam na sua ponderação, elementos subjectivos e elementos objectivos, atinentes à culpabilidade, à personalidade, à conduta social e outros. Esse mixtum compositum ou arbitrum regulatum é uma faculdade que a CRA e a lei atribuem ao julgador de face a tais circunstâncias e mediante a observância de critérios de legalidade, graduar e aplicar as penas cabíveis na justa medida do dano ou lesão provocada.
Esta vinculatividade legal afasta a discricionariedade e, por isso, deve ser bem compreendida, porquanto a mensuração da pena assenta num sistema pluridimensional de valorações de natureza garantística entrelaçados num equilíbrio que promove a imparcialidade, a equidade e a realização da justiça material.
Por outro lado, é mister ressaltar que o princípio da individualização da pena assenta em aspectos fundamentais que na sua génese postulam que a pena deve ser proporcional à lesão do bem jurídico tutelado, sob pena de perigar a paz social e minar a confiança dos cidadãos na realização da justiça, na perspectiva da ressocialização do criminoso e da realização dos fins das penas (prevenção geral e prevenção especial).
Face a esse cômputo de razões é que se deve respeitar, prima facie, os valores constitucionais tutelados, sendo que, in casu, o bem jurídico – liberdade – cede face à lesão do bem jurídico ofendido pela Recorrente. Apesar desta restrição aos direitos fundamentais, a CRA admite e reconhece a suspensão do seu gozo assegurado por um conjunto de cautelas e garantias constitucionais, que constituem um verdadeiro penhor garantístico da defesa dos direitos e liberdades da Recorrente contra atitudes abusivas do poder.
É certo que o Tribunal ad quem fixou a pena de 4 anos de prisão maior, moldura penal correspondente ao valor dissipado pela Recorrente à ofendida. Porém, exigir que, por esse motivo, deve ser decretada a absolvição ou a redução da pena, como refere a Recorrente nas suas alegações, parece irrazoável, pela controversa que suscita, se assim fosse impeliria o Tribunal Constitucional a ajuizar o mérito da causa do processo à margem das suas competências constitucionais, o que não faria sentido, porquanto verifica-se na decisão recorrida a observância dos princípios gerais da pena (legalidade, igualdade, adequação, proporcionalidade e jurisdicionalidade).
Sobre esta matéria escreveu José de Sousa e Brito (A Lei Penal na Constituição, Estudos sobre a Constituição, Vol. II.º, Lisboa, Petrony, 1978, pág. 218) o seguinte:
“Entende-se que as sanções penais só se justificam quando forem necessárias, isto é, indispensáveis tanto na sua existência como na sua medida, à conservação e à paz da sociedade civil, uma vez que as sanções penais se traduzem numa limitação mais ou menos graves dos direitos individuais, o princípio restritivo dirá que essa limitação será a menor que as necessidades da conservação e da paz sociais consentirem. Haverá que adquirir em cada caso a convicção de que, se a sanção fosse reduzida ou suprimida a ordem social podia ser posta em causa”.
A propósito deste quesito, há jurisprudência firmada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 336/2014, de 11 de Setembro, que vinca a conclusão segundo a qual, “o direito a julgamento justo deve ser entendido enquanto imposição da lei de que, aquando da administração da justiça, seja assegurado ao arguido todo um conjunto de direitos e garantias legalmente previstos, desde o momento da suspeita de cometimento do crime até ao momento da total execução da pena condenatória. Assim, no caso do julgamento, o tribunal está obrigado a respeitar os princípios da independência e imparcialidade, como condição de garantia do arguido de que as audiências sejam conduzidas com equidade. Julgamento justo é aquele que respeita o princípio da igualdade de armas e trata as partes e os seus representantes de maneira formalmente igual”.
Dilucidada a questão nestes termos, impõe-se mencionar que o Aresto recorrido conforma-se ao princípio da proporcionalidade ínsito no Estado de Direito. Pelo que, não é de acolher a alegada violação do direito a julgamento justo e conforme previsto no artigo 72.º da CRA, por não se considerar a pena abusiva, excessiva, ilegal ou discriminatória.
Em suma, atendendo o exposto, constata este Tribunal que não se vislumbra a violação de princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 8 de Setembro de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel M. da Costa Aragão (Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira (Relatora)
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata