ACÓRDÃO N.º 639/2020
PROCESSO N.º 774-B/2019
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Matomena António e Manuel Ferraz dos Santos, melhor identificados nos autos, vêm ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 14436.
Inconformados com a douta decisão, os Recorrentes apresentaram em síntese as seguintes alegações:
Em suma, os Recorrentes terminam dizendo que a animosidade da decisão recorrida viola, entre outros, a tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º da CRA), pois os actos de feiticismo e/ou curandeirismo não são criminalmente censuráveis, por isso, o Tribunal Supremo eximiu-se da sua nobre vocação legal e constitucional de fazer a justiça equitativa, nos termos do artigo 72.º da CRA.
Tal decisão é, ainda, violadora do princípio do duplo grau de jurisdição, da ampla defesa e do direito ao julgamento justo e do processo equitativo (artigos 29.º e 72.º da CRA), por isso, deve a mesma ser declarada inconstitucional e nula, por violação do dever implícito nos artigos 1.º e 2.ºda CRA, de fundamentação das decisões judiciais.
Os Recorrentes solicitam que este Tribunal dê provimento ao presente recurso e declare inconstitucional o Acórdão do Tribunal Supremo.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
Os Recorrentes têm interesse directo em demandar, pelo que gozam de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por eles terem sido parte no processo objecto dos presentes autos, por força das disposições legais da conjugação da alínea a) do artigo 50.º da LPC com o n.º 1 do artigo 26.º do CPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolatado no âmbito do Processo que correu seus termos naquela instância, cabendo agora verificar se tal decisão violou ou não os princípios ou direitos constitucionais invocados.
V. APRECIANDO
Os Recorrentes Matomena António e Manuel Ferraz dos Santos alegam terem sido violados entre outros, os seguintes direitos e princípios:
i. Da violação do princípio da legalidade
Alegou o Recorrente Matomena António, que não estão preenchidos os elementos constitutivos do tipo de crime por que foi condenado, porquanto os aludidos actos de feiticismo/curandeirismo não têm relevância jurídica.
Quanto a este quesito, a doutrina dominante defende que para ser cúmplice basta dar um auxílio, um contributo à realização do facto típico praticado pelo autor do crime, sendo irrelevante a forma concreta que esse auxilio assuma, o importante é que fortaleça a materialização do crime do agente, assim os conselhos, pedidos e promessas ou actos de fortalecimento, facilitação da execução material do crime, constituem cumplicidade, sem precisarem de serem, de per si, típicos. Basta que tornem mais fácil a execução criminosa, sendo esta posição da “acessoriedade mínima” que se circunscreve no facto de o acto do autor ser típico e ilícito, para que a cumplicidade se verifique, (vide gratia, Rodrigues Orlando, in Apontamentos de Direito Penal, páginas 284 a 289, Escolar Editora, 2019).
No caso em apreço, o Tribunal Constitucional entende que, apesar de os actos do aqui Recorrente serem de intrujão (como o próprio afirma), os mesmos foram praticados de forma deliberada e consciente de que o objectivo do seu cliente era tirar a vida de alguém que, por dever legal, deve ser preservada por todos. Mesmo assim, auxiliou criando uma fidúcia aos verdadeiros agentes do crime de homicídio de que resultou a morte da inditosa, garantindo a estes que seriam ilibados da responsabilização criminal. Por isso, andou bem o Tribunal Supremo ao qualificá-lo como cúmplice, por estarem preenchidos os elementos constitutivos da comparticipação criminosa de cumplicidade, pois foi ele que garantiu segurança aos seus comparsas.
Não se vislumbra, assim, na decisão recorrida qualquer violação ao princípio da legalidade.
ii. Da violação do dever de fundamentação das decisões
O Recorrente em sede de alegações, afirmou que o acórdão recorrido está eivado de deficiente fundamentação, praticamente se limitando a narrar os factos provados, passando por uma ténue subsunção jurídica e passando imediatamente para a decisão.
E que no caso em apreço é notória a falta de fundamentação, ou pelo menos deficiente fundamentação, o que deverá necessariamente conduzir a nulidade do Acórdão.
O dever de fundamentação das decisões assume finalidades muito específicas, de tal sorte que torna-se curial o órgão decisor exteriorizar na decisão os motivos que sustentaram a sua posição.
É importante destacar que no caso das decisões judiciais, a fundamentação tem como finalidades, (i) a pacificação social, a legitimidade da decisão, do juiz e do tribunal; (ii) o autocontrolo e controlo social das decisões, nomeadamente, no que concerne ao direito ao recurso, o a compreensão da decisão pelo seus destinatários e não só, (iii) o exercício da função do Estado de forma aberta e transparente, (iv) função pedagógica e, (v) evolução jurisprudencial.
O dever de fundamentação assume uma importância fulcral no ordenamento jurídico na medida em que constitui uma das traves mestras para a edificação de um sistema judicial balizado nas regras da democracia, transparência, legalidade, duplo grau de jurisdição, controlo dos poderes públicos e pacificação social.
Conforme jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional vertida no Acórdão 122/2010, “a Constituição não prevê nenhuma disposição autónoma, à semelhança do que acontece com as outras, que obriga à fundamentação das decisões, porém, sendo Angola um Estado Democrático de Direito, a conduta de todos os agentes do Estado está subordinada ao princípio constitucionalmente consagrado da Supremacia da Constituição e no principio da Legalidade, de tal sorte que, todos os actos dos Estado devem obediência à Constituição e fundam-se no principio da legalidade, sob pena dos mesmos serem inconstitucionais ou ilegais, conforme o caso, assim estabelece o n.º 2 do artigo 6º da CRA.
A actuação do Estado está condicionada pelas normas constitucionais e principalmente, por aquelas a que respeitam os direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais pelo lugar cimeiro que ocupam na Constituição e no ordenamento jurídico angolano, impõem a subordinação a eles de todos os poderes do Estado.
Assim sendo, o poder legislativo, aquando da elaboração de textos normativos deve, por um lado, respeitar a observância dos direitos fundamentais e, por outro, criar mecanismos que garantam a sua efectivação. O poder executivo, por sua vez, na sua tarefa de administrar o bem público e executar as leis, deve pautar a sua conduta no estrito respeito pelos direitos fundamentais e, por último, mas não menos importante, o poder judicial, no desenvolvimento da sua actividade de dirimir conflitos de interesses públicos ou privados, deve promover a protecção dos direitos fundamentais, garantir a sua efectivação e restaurar os direitos fundamentais alvos de violação.
A subordinação dos poderes do Estado (legislativo, executivo e judiciário) é efectivada por intermédio de mecanismos criados pelo próprio sistema jurídico, que não raras vezes têm dignidade de normas constitucionais e que irão cuidar de garantir a limitação do poder do Estado, por um lado, e por outro, permitir o controlo dos cidadãos sobre a actuação dos agentes públicos. Um destes mecanismos, consiste essencialmente na obrigatoriedade de fundamentação dos actos praticados pelos órgãos do poder público, máxime, os tribunais.
Ainda no que concerne ao dever de fundamentação, é importante que, dada a relevância que a fundamentação das decisões tem vindo a assumir, essas são objecto de regulação tanto em termos de política legislativa interna como no âmbito de legislações internacionais.
À nível internacional, o dever de fundamentação das decisões apresenta-se como decorrência do direito a um processo equitativo e mereceu consagração nos artigos 10º da DUDH e 14º do PIDCP, aplicáveis no ordenamento jurídico angolano, ex vi dos artigos 13º e 26º, ambos da CRA.
Já no contexto nacional, o direito à fundamentação das decisões encontra o seu reduto, por um lado, no artigo 2º da CRA, pois, este dever é, principalmente, uma exigência do princípio do Estado de Direito que obriga a que se desenvolva toda uma dimensão garantística, que, para além da protecção da liberdade individual, determina que os titulares de órgãos públicos sejam sujeitos à limites no desencadeamento de actos que, de alguma forma, afectem os particulares.
Por outro lado, a exigência do dever de fundamentação das decisões mereceu respaldo constitucional no n.º 4 do artigo 29.º da CRA, enquanto decorrência do direito ao processo equitativo, segundo o qual, “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão dentro do prazo razoável e mediante processo equitativo”.
Na senda do entendimento sufragado por HELENA CABRITA (CABRITA, Helena; A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível; Coimbra Editora; p.20.), “a exigência de um processo equitativo não se confina à existência de um modelo processual, tipo processual de matriz democrática e ao asseguramento do efectivo acesso ao direito e à tutela jurisdicional, integrando ao mesmo tempo, numa das suas dimensões, o direito à motivação das decisões judiciais em ordem a garantir a proibição do arbítrio, a interdição de discriminação …”
No âmbito da legislação ordinária, o dever geral de fundamentação das decisões judiciais vem plasmado no artigo 17.º da Lei n.º 2/15 de 2 de Fevereiro, (Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum) e no artigo 158.º do CPC segundo o qual “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
Na mesma esteira, o artigo 668.º do CPC em análise, sanciona com a nulidade, as sentenças que não especifiquem os fundamentos de facto e de direito que justifique a decisão.
Ora, sobre o preceituado no n.º 1 do artigo 158.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º, ambos do CPC, é conveniente reafirmar que a necessidade de fundamentação é intrínseca a própria garantia do direito ao recurso e muito se relaciona com a legitimação da decisão judicial em si. A decisão judicial fundamentada deve apresentar uma consistência razoável, de modo a satisfazer cabalmente os objectivos constitucionais e legais, in casu; possibilitar aos particulares o exercício de modo eficaz dos meios de reacção ao seu dispor conferidos por lei, e garantir a transparências e a reflexão decisória, convencendo o destinatário e não apenas impondo sobre o mesmo o conteúdo da decisão tomada.
A decisão judicial, como nota Abílio Neto, (NETO, Abílio; Código Processo Civil Anotado; 21ª edição actualizada; Fevereiro de 2009; editora Ediforum, pág.950) “não é, nem pode ser, um acto arbitrário, mas a concretização da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional, as partes necessitam saber a razão ou as razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente previstos” .
Porém, a nulidade a que se refere a alínea b) do artigo 668.º reporta-se apenas aos casos de falta absoluta de fundamentação da decisão, que não é comunicável aos casos de fundamentação deficiente errada ou incompleta. Assim é, porque em bom rigor, apenas a absoluta falta de fundamentação afecta o valor legal da sentença, provocando com esta omissão a nulidade da decisão por falta de fundamentação.
Compulsados os autos, verifica este Tribunal, que contrariamente ao alegado pelo Recorrente, o Tribunal a quo efectuou uma análise minuciosa dos elementos de prova carreados aos autos bem como da prova produzida em sede de julgamento na primeira instância, e com base no resultado desta análise, o Tribunal a quo criou a sua convicção, culminando a mesma com a decisão final.
Em suma, o Tribunal Supremo procedeu de forma exaustiva (em mais de 12 páginas) a fundamentação de facto e de direito, destilando os motivos em que se apoiou e que o levaram a decidir em determinado sentido em detrimento de outro.
No caso em apreço, o Tribunal Supremo com base na factualidade dada como provada, decidiu revogar parcialmente a decisão recorrida (absolutória) e condenar os réus pelos crimes dos quais vinham acusados.
Em face dos argumentos esgrimidos nos autos para justificar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, entende o Tribunal Constitucional que a decisão respeitou o dever de fundamentação das decisões impostos pela Constituição, pelos instrumentos de direito internacional e pela lei ordinária.
Pelo que, não colhem os argumentos apresentados pelo Recorrente, relativamente à omissão de fundamentação da decisão recorrida.
iii. Da alegada violação da correspondência e das Comunicações.
Alega o Recorrente que a decisão recorrida está ferida de inconstitucionalidade por ratificar as diligências do Ministério Público na instrução, relativamente à solicitação de informações inerentes ao tráfego nas comunicações e números de telefone dos réus e declarantes nos autos, sem que houvesse uma autorização expressa de uma autoridade judicial.
O direito a inviolabilidade da correspondência e das comunicações está previsto no artigo 34.º da CRA e sistematicamente inserido no capítulo II, respeitantes aos Direitos Liberdades e Garantias Fundamentais. À luz do preceituado neste artigo, é inviolável o sigilo da correspondência e dos demais meios de comunicações privadas, nomeadamente, das comunicações postais, telegráficas, telefónicas e telemáticas.
Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, apenas por decisão de autoridade judicial competente proferida nos termos da lei, é permitida a ingerência das autoridades Públicas na correspondência nos demais meios de comunicação privada.
Nos termos da CRA, proíbe-se a ingerência das autoridades públicas nos meios de comunicação, excepto nos casos previstos na lei, em matéria de processo penal e munidos de uma decisão de autoridade judicial para o efeito.
À data dos factos (2011) a actual CRA já se encontrava em vigor. Nesta senda, sobre este aresto em particular, é entendimento firmado pelo Tribunal Constitucional, conforme os Acórdãos nºs 336/2014 e 466/2017, que a autoridade judicial a que se refere o n.º 2 do artigo 34.º da CRA, é necessariamente um juiz, in casu, o juiz de turno, e não como se verificou no caso, um Magistrado do Ministério Público.
Outrossim, conforme o disposto na alínea f) do artigo 186.º da CRA, compete ao Ministério Público dirigir a fase preparatória dos processos penais, sem prejuízo da fiscalização das garantias fundamentais dos cidadãos por magistrado judicial nos termos da lei.
Porém, a data a que se reportam os factos não existia ainda definida por lei, a figura do juiz de turno, instituída no âmbito da Lei n.º 25/15 de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, sendo que até a presente data as respectivas funções eram exercidas por quem tem a seu cargo a direcção da instrução preparatória, neste caso, o Ministério Público.
Nesta medida, conforme jurisprudência firmada por este Tribunal vertida nos Acórdãos nºs 466/2017 e 467/2017, por ser uma situação transitória, o Tribunal Constitucional entende estar justificada, no processo, a intervenção do Ministério Público para ordenar o acesso ao registo das comunicações privadas dos Recorrentes.
iv. Da violação dos princípios da igualdade de armas, do contraditório e da ampla defesa dos Recorrentes, por não terem sido notificados das alegações do Ministério Público
Alega o Recorrente que a decisão recorrida violou os princípios do contraditório e do acusatório, na medida em que o Recorrente não foi notificado da promoção do Ministério Público que pugnou pela sua condenação, facto que veio a ocorrer, sem que este tivesse ao menos o direito de se pronunciar a esse respeito.
É entendimento do Tribunal Constitucional que o princípio da igualdade de armas significa que o processo deve ser estruturado para que a acusação e a defesa tenham as mesmas possibilidades de intervenção. Na verdade, conforme o vertido no Acórdão n.º 122/2010, com este princípio pretende-se proteger o arguido, no sentido em que este possa dispor de todos os meios legalmente previstos para alicerçar a sua defesa, traduzindo uma igualdade de meios que se manifesta sobretudo na fase de instrução do processo.
O princípio da igualdade de armas obriga o estabelecimento de uma paridade no posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os aspectos do processo e implementação da igualdade material de armas como consequência da estrutura acusatória do processo penal.
Conforme o alegado pelo Recorrente, o Digníssimo Representante do Ministério Público juntou a sua promoção aos autos, pugnando pela condenação do Recorrente, sem que este tivesse sido notificado desta promoção para que, querendo, pudesse exercer o seu direito de defesa constitucionalmente consagrado.
Compulsados os autos, verifica este Tribunal que de facto, o Recorrente não foi notificado do conteúdo da promoção do Ministério público, o que de per se redunda numa violação do princípio do processo equitativo previsto no n.º 4 do artigo 29.º da CRA.
No caso em apreço, o Recorrente foi absolvido pelo tribunal de primeira instância, por falta de provas.
O recurso para o Tribunal Supremo foi impetrado pelo representante do Ministério Público por não conformação e pelo Assistente.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Supremo, no seu visto inicial do processo promoveu no sentido da condenação dos Recorrentes, conforme n.º 2 do § 1.º do artigo 667.º do CPP.
Sobre este aresto é importante referir que a reformatio in pejus é proibida nas situações previstas nos n.ºs 1, 2, 3 e 4 do artigo 667.º do CPP, nomeadamente, quando o recurso ordinário de uma sentença interposto (i) exclusivamente pelo réu, (ii) pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa, ou (iii) por ambos, mas no interesse da defesa. Nestas circunstâncias o tribunal de recurso não pode em prejuízo de qualquer dos arguidos, aplicar pena, que pela espécie ou pela medida, deva considerar- se mais grave do que a constante da decisão recorrida.
O sentido desta proibição é justamente o de obstar que o réu veja alterada a sentença penal em seu prejuízo, quando apenas a defesa recorreu.
Porém, no caso em análise, o recurso foi interposto pelo Representante do Ministério Público, por não conformação com a sentença e, portanto, contra os interesses da defesa, e pelo Assistente, pelo que, por via de uma interpretação a contrario sensu, não se verificam os requisitos para fazer operar no caso vertente a proibição da reformatio in pejus.
Ademais, interposto o recurso ordinário, o Representante do Ministério Público junto do Tribunal Supremo promoveu no sentido da condenação dos Recorrentes.
Ora, nestas circunstâncias, estabelece § 1.º do artigo 667.º do CPP, que a proibição estabelecida neste artigo não se verifica, ou seja, o réu poderá ver agravada a sua pena nos casos em que o representante do Ministério Público junto do Tribunal Superior se pronunciar no seu visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos no seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de 8 dias.
Ensina Grandão Ramos, “o princípio da proibição da reformatio in pejus tem como objectivo fundamental a realização da justiça material e tornar mais efectivo o direito de defesa (…), por isso, quando o Ministério Público junto do Tribunal Supremo se pronunciar pela agravação da pena (…) será então notificado o arguido para responder no prazo de oito dias” (vide, Ramos Vasco Grandão, in Direito Processual PENAL, Noções Fundamentais, pág. 338, 2ª Edição, Escolar Editora,-2015).
No mesmo diapasão MAIA GONÇALVES (Código do Processo Penal Anotado e Comentado, Livraria Almedina p.771) esclarece que “a notificação aos réus a quem a pena pode ser agravada, no caso do representante do Ministério Público junto do tribunal superior pedir agravação da pena, destina-se a salvaguardar o princípio do contraditório evitando-se agravação surpresa…”
Por outro lado, é jurisprudência firmada por este Tribunal, entre outros, o Acórdão n.º 392/2016, segundo o qual, a falta de notificação viola, sistematicamente, o direito à defesa, ao contraditório e ao julgamento justo, previstos nos artigos 67.º, n.º 1 e 174.º, n.º 2, ambos da CRA e, consequentemente, viola o princípio da igualdade de armas vertido no n.º 4 do artigo 29.º da CRA, visto que os Recorrentes não tiveram a mesma oportunidade de se defender junto da Câmara dos Crimes do Tribunal Supremo nos mesmos termos em que teve a parte acusadora.
A decisão, ora recorrida, constitui decisão surpresa, proibidas pelo sistema jurídico-penal de matriz acusatória como o nosso, ínsito no n.º 2 do artigo 174.º. Por outra, a norma contida no n.º 2 do § 1.º do artigo 667.º do CPP não é facultativa. Deve-se notificar sempre as partes contra qual o recurso é interposto, do parecer do Ministério Publico junto do Tribunal Supremo, sob pena de violação do direito à defesa e do contraditório, respectivamente consagrados nos artigos 62.º e 72.º, ambos da CRA.
Esta é, pois, a interpretação segundo a mens legislatoris, ou seja, segundo o espírito do legislador constitucional, só se pode falar em julgamento justo, equitativo, e conforme a lei, quando há uma observância estrita de todas as garantias fundamentais das partes e, no caso sub judice, tratando-se de então réus absolvidos em primeira instância, por maioria de razão deveriam ser devidamente notificados para que, querendo, apresentassem a sua defesa, o que não se verificou.
Assim sendo, entende o Tribunal Constitucional que o Acórdão recorrido violou os princípios do contraditório (n.º 2 do artigo 174.º), o direito à defesa (n.º 1 do artigo 67.º), julgamento justo e conforme (artigo 72.º), bem como os princípios do processo equitativo e da igualdade de armas (n.º 4 do artigo 29.º, todos da CRA), sendo, por isso, inconstitucional.
Por tudo quanto foi dito e analisado, este Tribunal Constitucional pugna pela procedência do presente recurso, por se vislumbrar na decisão recorrida, a violação dos princípios constitucionais nomeadamente, do processo equitativo, da igualdade de oportunidades e de armas, do julgamento justo e conforme, do direito à defesa e do princípio do contraditório, previstos nos artigos 29.º n.º 4, 67.º, 72.º e n.º 2 do artigo 174.º, todos da CRA.
DECIDINDO
Nestes termos
Tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 15 de Setembro de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata