ACÓRDÃO N.º 640/2020
PROCESSO N.º 716-D/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
MATRA – Casa Construção Lda., melhor identificada nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, prolatado no âmbito do Processo n.º 2043/13, em que foi condenada a pagar uma indemnização à empresa Cruzada J. M. Limitada, no montante equivalente em Kwanzas a USD 100 000,00 (cem mil dólares norte-americanos), o que revoga parcialmente a decisão da primeira instância.
O Aresto ora impugnado tem na sua origem uma acção de indemnização por acidente de viação, com processo ordinário, intentada junto da Sala do Cível do Tribunal Provincial do Bengo pela Cruzada J.M.Lda., contra a Matra - Casa Construção Lda., Adelino Samuel, motorista, e a Aliança Global Seguros, nos termos da qual a aqui Recorrente foi condenada, em saneador- sentença, a pagar solidariamente uma indemnização em Kwanzas correspondente a USD 300 000, 00 (trezentos mil dólares americanos), tal como pedido pela autora. Nesta mesma quantia foi solidariamente condenada à revelia, porque citada e não contestou, a Aliança Global Seguros.
Segundo os autos, do acidente de viação resultou a instauração do processo crime n.º 135/10, junto da Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC) do Bengo, na sequência da participação feita por um agente da Polícia Nacional, tendo o referido acidente ocorrido por choque frontal entre duas viaturas. Um autocarro da marca Blue Bird, propriedade da Cruzada J. M. Lda., que seguia no sentido Uíge – Luanda e era conduzido por Filipe Filho da Fineza e um camião da marca Dong Feng, propriedade da ora Recorrente, que tinha como condutor Adelino Manuel e que seguia no sentido oposto Luanda – Quibaxe.
A Recorrente, inconformada com a decisão do Tribunal Supremo, vem, em sede do presente recurso, arguir a inconstitucionalidade desta decisão, com base nos fundamentos que, resumidamente, a seguir se enunciam.
À luz destes argumentos, a Recorrente entende terem sido violados em primeira instância e em sede do Tribunal de recurso, com a revogação parcial do saneador-sentença, direitos e princípios fundamentais decorrentes do Estado democrático de direito e expressamente consagrados na Constituição da República de Angola (CRA) e em Tratados Internacionais, como os princípios da igualdade (artigo 23.º da CRA) e o da presunção da inocência (artigo 67.º, nº. 2, da CRA).
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é, nos termos do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente cabíveis.
A decisão proferida pelo Tribunal Supremo esgota, deste modo, a cadeia recursória em sede de jurisdição comum.
III. LEGITIMIDADE
A legitimidade para a interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade é atribuída ao Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário, conforme disposto na alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.
A Recorrente é parte parcialmente vencida no recurso impetrado junto do Tribunal Supremo e tem, consequentemente, legitimidade para recorrer, ex vi do artigo 680.º, n.º 1 do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional, nos termos do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
Constitui objecto deste recurso o Acórdão do Tribunal Supremo que, alegadamente, viola princípios e direitos consagrados na Constituição da República de Angola, CRA.
V. APRECIANDO
Como decorre da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho e no que ao caso vertente interessa, com a interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade está em causa sindicar a inconstitucionalidade das sentenças (além das decisões) que contenham fundamentos de direito (sublinhando nosso) que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, após o prévio esgotamento dos recursos legalmente previstos.
Nesta Instância Constitucional, a Recorrente vem impugnar o Acórdão recorrido sustentada em razões de facto e de direito idênticas às suscitadas em sede do Tribunal Supremo que, sucintamente, têm que ver com a propositura da acção cível autónoma de indemnização decorrente de facto punível, nos termos do artigo 30.º do Código do Processo Penal, com as formalidades legais da citação e com o valor arbitrado para a indemnização por acidente de viação, que considera ilegal e arbitrário.
Para a Recorrente e segundo o alegado, o juízo de decisão do Tribunal ad quem relativamente às questões acima elencadas põe em causa os princípios da igualdade e da presunção de inocência, vertidos nos artigos 23.º e 67.º, n.º 2 da CRA.
Ainda que não expressamente formulado, retira-se das alegações que a decisão ora posta em crise atentará, igualmente, contra o princípio da legalidade. Na perspectiva da Recorrente, o Aresto recorrido foi prolatado sem atender ao estipulado nos artigos do CPC a seguir indicados: 247.º, 248.º e 249.º, referentes às formalidades da citação, 515º, que versa sobre matéria relativa à produção de prova e 661.º, que incide sobre os limites da condenação e cuja inobservância tem como consequência jurídica a nulidade da sentença, nos termos da alínea e) do n.º1 do artigo 668º do CPC.
Impõe-se, assim, verificar se lhe assistirá ou não razão.
Como tem sido reafirmado por este Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 23.º da CRA, é também um dos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito que encontra concretização em diferentes planos e dimensões da acção do direito. É, assim, entendido como integrante da categoria dos princípios constitutivos da ideia de sistema jurídico, tendo, fundamentalmente, um cariz subjectivo e relacional, podendo ser, sinteticamente, equacionado a partir da ideia segundo a qual o que é igual não deve ser tratado de modo desigual e o que é desigual de modo igual.
Uma das suas dimensões básicas diz respeito à igualdade na aplicação do direito, vertida no n.º 1 do artigo 23.º da CRA, onde se estabelece que “Todos são iguais perante a Constituição e a lei”, perspectiva em que releva, particularmente, a aplicação da lei feita pelos órgãos jurisdicionais.
Não obstante revestir-se de outras especificidades, o princípio da igualdade tem ampla repercussão no domínio do direito processual civil, onde se afirma, genericamente, através do princípio da igualdade das partes, que pressupõe uma relação de igualdade que se estabelece não apenas entre as partes processuais, mas também entre estas e o Tribunal. Levando em conta as palavras do processualista Manuel de Andrade, consistirá, assim, este princípio (igualdade das partes) em as partes serem postas no processo em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida. (Noções Elementares de Processo Civil, pág. 353).
Num plano mais concretizador, teremos como emanação directa do princípio da igualdade tanto o princípio da igualdade de armas, como o princípio do contraditório, que se consubstanciam na faculdade de qualquer das partes, em condições de rigorosa igualdade, poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de uma e de outras (Abílio Neto, CPC Anotado, pág. 63 in citação).
No que ao caso sub judice diz respeito, a Recorrente relaciona a alegada violação do princípio da igualdade, que na presente lide se desloca para o plano dos princípios da igualdade de armas e do contraditório, com o facto de o motorista a seu serviço, ou seja, o alegado autor do acidente de viação, dado como estando em parte incerta, não ter sido citado, nos termos dos artigos 247.º e 248.º do CPC, no âmbito da acção de indemnização, em que também foi demandada civilmente a Aliança Global Seguros, como já antes referido.
Ora, é entendimento que, no quadro do exercício da função jurisdicional, o Tribunal fixa os factos que devem ser considerados provados e procede à indagação, interpretação e aplicação do direito aos referidos factos, firmando, consequentemente, o juízo fundante da sua decisão.
No quadro deste exercício, o Tribunal Supremo, em face dos factos carreados ao processo, entendeu ser desnecessária a citação do motorista por virtude da situação de listisconsórcio voluntário, resultante da relação de comissão existente, à luz do disposto no artigo 500.º do Código Civil, entre o condutor e a Recorrente, nos termos da qual o comitente (a aqui Recorrente) está obrigado a indemnizar pelos danos causados pelo comissário (no caso, o motorista), por um lado. Teve, por outro lado, em conta o facto de o acidente de viação estar abrangido pelo seguro obrigatório, o que, em decorrência do disposto no artigo 22.º do Decreto n.º 35/00, de 11 de Agosto, sobre o Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, obriga a que as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil sejam deduzidas contra a seguradora e o civilmente responsável, in casu, a Recorrente.
Concluiu, assim, essa Instância recorrida que, existindo ainda entre a Recorrente e o motorista uma responsabilidade solidária, à luz do artigo 497.º do CC, aplicável ex vi do artigo 499.º do CC e não se verificando nenhuma das circunstâncias constantes do artigo 195.º do CPC (Quando se verifica a falta de citação), não procediam, nem assim poderiam, os argumentos invocados pela Matra- Casa Construção Lda.
Embora a Recorrente manifeste o seu inconformismo, este segmento da decisão do Tribunal ad quem é claramente elucidativo sobre como foi entendida a configuração subjectiva da acção de indemnização.
Entende, assim, este Tribunal que a não intervenção nesta lide do alegado autor do acidente não invalida os actos praticados no processo, não coloca em causa a relação de parte processual da Recorrente na instância que está na origem do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nem parece materializar a alegada violação ao princípio da igualdade na perspectiva acima delineada.
Como já aflorado, o princípio da igualdade das partes pressupõe que estas (partes) sejam colocadas em paridade de condições, por forma a que possam, nas diferentes fases processuais, apresentar os seus pontos de vista, influenciar todo o processo e, deste modo, obter a tutela jurisdicional pretendida. E esta garantia de igualdade, que conforma igualmente a ideia de um processo justo, tem, consequentemente, repercussões nos planos das alegações, da prova e do direito aplicado ao caso concreto.
Compulsados os autos, verifica-se, por exemplo, que a Recorrente, ainda em primeira instância, contraditou os factos arrolados pela autora da acção cível de indemnização por acidente de viação, quer apresentando contestação (fls. 65 a 69 dos autos), quer treplicando (fls. 114 a 116), o que materializa o exercício do contraditório, reflectido na parte final do n.º 1 do artigo 3.º do CPC, que refere que o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para deduzir oposição. Por outro lado, em face da decisão prolatada pelo Tribunal a quo, também interpôs recurso fazendo valer a sua compreensão com relação aos fundamentos de facto e de direito que sustentavam tal decisão.
Por conseguinte, a posição de parte processual da Recorrente, no que se refere ao exercício do contraditório, não se afigura afectada de forma lesiva ou discriminatória em face dos mecanismos processuais de que poderia lançar mão, e lançou, bem como da sua relação quer com o Tribunal, quer como parte na acção de indemnização.
Em consequência, também não se afigura atingido o princípio da legalidade no sentido da conformação deste segmento da decisão impugnada com o previsto nas normas legais colaccionadas sobre as formalidades da citação.
A Recorrente alega, por outro lado, ter sido violado o princípio da presunção da inocência que configura, como sabido, um dos institutos fundamentais de defesa da qualidade do arguido no domínio do processo penal e que incorpora a ideia de protecção da dignidade da pessoa humana. Nesta perspectiva, é de afastar, à partida, a sua aplicação às pessoas colectivas como tal, que são titulares dos direitos e obrigações que se compatibilizam com a especificidade da sua natureza jurídica. De acrescentar, por outro, que os presentes autos resultam de uma acção cível de indemnização.
Não obstante, entende este Tribunal que importará apreciar, ainda que sucintamente, o que considera estar subjacente à alegada violação do princípio da presunção de inocência, embora num contexto em que, em face do caso concreto, este não deva ser chamado à colação, como referido.
Deste modo e pelo que se depreende das alegações, esta questão (violação do princípio da presunção de inocência) é trazida à liça pelo facto de a Recorrente considerar que há contra si uma imputação de responsabilidade, num quadro em que, pela falta de julgamento da acção penal interposta na sequência do acidente de viação, não foi aferida a culpa do alegado autor do acidente, o que inviabiliza, na sua perspectiva, o exercício do direito de regresso em face da constatada relação de comissão.
Como já antes aludido, o Tribunal Supremo enquadrou a responsabilidade civil da Recorrente no âmbito da responsabilidade objectiva fundada no risco, resultante da relação comitente/comissário, de que decorre, em termos gerais, a obrigação de indemnizar, independente da culpa, por parte do comitente (a Recorrente, no caso sub judice).
Tratando-se, porém, no caso vertente, de uma acção de indemnização por acidente de viação, importará, tendo em conta a questão suscitada pela Recorrente, atentar também para o estipulado nos artigos 503.º e 506.º do CC. Ao lado do dever de indemnizar imposto ao detentor do veículo, o comitente, o artigo 503º do CC estabelece igual obrigação para o condutor por conta de outrem, o comissário, fazendo recair sobre este uma presunção excepcional de culpa. Como ensina Luís Menezes Leitão, tal permite ao comitente, caso o comissário não vier a ilidir essa presunção, exercer contra ele o direito de regresso pela indemnização que tiver pago ao lesado com fundamento na responsabilidade pelo risco”. (Direito das Obrigações, pág. 382).
O entendimento relativamente à presunção de culpa do comissário, consagrada no n.º 3 do artigo 503.º do CC, tem sido, entretanto, estendido à situação de colisão de veículos prevista no n.º 1 do artigo 506.º do CC, em que intervenha um condutor por conta de outrem, apesar deste último dispositivo legal não distinguir entre a culpa efectivamente provada e culpa presumida e não ilidida. O pensamento da jurisprudência vai no sentido de considerar estabelecida em termos gerais a referida presunção legal de culpa (a do artigo 503.º, n.º 3), sendo que as razões de justiça em que assenta a sua consagração (unidade do sistema jurídico, a uniformidade de critérios dentro de toda a ordem jurídica) também colhem para a hipótese de colisão de veículos em que intervenha um condutor por conta de outrem e por isso a culpa referida no artigo 506.º n.º 1 tanto abrange a culpa efectivamente provada como a culpa presumida (ver Assento n.º 3/94 do STJ de Portugal).
Importará, por outro lado, ter em conta que, embora uma mesma infracção possa ter repercussões nos diferentes domínios da acção do direito, a responsabilidade que daí advier é independente e não deve, por conseguinte, ser confundida quando avaliada em sede da responsabilidade civil ou da responsabilidade penal, entendimento que pode valer em matéria de aferição dos pressupostos da culpa. Assim, a culpa no domínio da acção cível não se confunde com a culpa criminal, pelo que, como se extrai da doutrina e da jurisprudência, pode haver lugar a responsabilidade civil onde não se verifique responsabilidade criminal, como no caso da responsabilidade objectiva, pelo simples risco.
Considerando que não se verifica a alegada violação aos princípios da igualdade e da presunção da inocência no que tange ao segmento da decisão que versa sobre matéria relativa à citação, impor-se-á, agora, avaliar se procede o alegado pela Recorrente quando, ao abrigo destes mesmos princípios, fundamenta a inconstitucionalidade do aresto em face do valor da indemnização. Embora reduzido em sede do recurso para o Tribunal Supremo, alega que o montante arbitrado é injusto, arbitrário e desprovido de qualquer fundamento lógico legal, além de não atender verdadeiramente ao critério da equidade.
Assim, quid iuris.
É entendimento que decidir configura um acto de prudência e que a prova é pressuposto de evocação do direito, com vista à justa composição dos interesses em causa, o que se concretiza com a prolação de decisão judicial que reflicta esse desiderato. Porém, é mister, não obstante a prerrogativa legal de o Julgador apreciar livremente a prova, que a tutela jurisdicional pretendida seja defensável ante prova produzida nos autos.
No Acórdão ora impugnado, o Tribunal ad quem reconhece ter faltado ao Juiz da primeira instância, na fixação da indemnização, o prudente arbítrio e a necessária e preponderante equidade. Reconhece, igualmente, que os autos não comportam prova bastante sobre os danos patrimoniais verificados e realça que, do ponto de vista da doutrina e da jurisprudência, a gravidade do dano deve medir-se por um padrão objectivo, embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, e não em função de factores subjectivos, donde que os vulgares incómodos, contrariedades, transtornos, indisposições, por não atingirem um grau suficientemente elevado, não conferem direito à indemnização.
Ainda assim e reconhecendo que no processo está efectivamente em causa a geometria do acidente e a prova dos danos verificados, atestados pelas fotos constantes dos autos que, por sua vez, não revelam ser assim tantos e tão devastadores, decidiu, in dúbio, (sublinhado nosso), à luz do critério de equidade previsto no n.º 3 do artigo 566.º do CC e no confronto com as situações com alguma similitude versadas em diversas decisões do Tribunal Supremo, reduzir para o equivalente a USD 100 000,00 (cem mil dólares norte-americanos) o quantum da indemnização, que em sede do Tribunal a quo havia sido fixado em USD 300 000,00 (trezentos mil dólares norte-americanos).
Nos termos do n.º 3 do artigo 566.º do CC, o julgamento por equidade tem lugar quando não for possível averiguar o valor exacto dos danos, o que significa que, na busca de solução que mais se adeqúe ao caso concreto, o Tribunal deve fazer recurso às regras de experiência, da boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida, atento quer à função essencialmente reparadora da obrigação de indemnização, quer ao nexo de causalidade entre esta e os danos efectivamente verificados (artigos 562.º, 563.º e seguintes. do CC).
A equidade configura, deste modo, um critério para a correcção do direito em face da eventual dificuldade relativamente à prova efectiva dos danos sofridos, por forma a que o valor fixado para a indemnização reflicta o ressarcimento justo e equitativo dos prejuízos verificados.
No caso sub judice, este Tribunal constata, efectivamente, que a prova carreada aos autos pela lesada Cruzada J.M. Lda., resume-se a uma descrição não quantificada dos estragos provocados no seu autocarro, a mera indicação dos prejuízos decorrentes da paralisação da viatura, que o próprio Tribunal ad quem qualifica como exagerados (pág. 13 dos autos) e a fotografias que, como assinalado no aresto recorrido, quase ou nada atestam sobre a dimensão dos danos ocasionados àquela viatura (pág. 45 dos autos).
Por outro lado, na sua decisão, o Tribunal Supremo refere que, na fixação do valor da indemnização, teve igualmente em conta situações idênticas reflectidas em algumas das suas decisões, sem, contudo, as identificar, por simples remissão que fosse, o que iria possibilitar uma melhor compreensão da sua ratio decidendi perante o caso vertente.
Acresce que o Tribunal ad quem deixa claro que decidiu in dúbio. Ora, como se extrai da lei, da doutrina e da jurisprudência, perante dúvida insanável acerca da realidade dos factos alegados pelas partes, o Juiz, na impossibilidade do non liquet, deve decidir mediante a imputação a uma das partes das consequências negativas da não produção de meios de prova idóneos que ajudem a formar a sua convicção (ver, por exemplo, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, pág. 32).
Perante tais constatações e sem colocar em causa a discricionariedade consentida ao Tribunal no julgamento por equidade e o seu prudente arbítrio, parece ser de admitir, porém, que assiste razão à Recorrente quando alega que o Tribunal Supremo não atendeu verdadeiramente ao critério da equidade ao decidir nos termos em que o fez, o que leva a indagar sobre a justeza da decisão ora impugnada.
Sufragando o entendimento de alguns sectores da doutrina e da jurisprudência, é de considerar que a decisão segundo a equidade exige sempre uma ponderação dos resultados decorrentes da aplicação do direito positivo ao caso concreto, aferindo-se se tais resultados expressam uma solução efectiva ou materialmente justa. (Paulo Otero, Equidade e Arbitragem Administrativa, in Estudos em Homenagem ao Centenário do Nascimento do Professor Paulo Cunha, pág. 849). Tal significa que a decisão encontrada em sede do juízo de equidade não deve apartar-se dos pressupostos exigidos em sede do direito positivo para não frustrar a confiança e a previsibilidade das partes.
E um dos pressupostos a ter em conta e que, à luz de um juízo de constitucionalidade, parametriza a ideia do direito ao processo equitativo e do direito ao julgamento justo e conforme (artigos 29.º, n.º4 in fine e 72.º, ambos da CRA) está relacionado com a matéria da prova, que deve igualmente ser levada em consideração no julgamento com recurso ao critério da equidade, nos termos do n.º 3 do artigo 566.º do CC.
Na verdade, da norma inserida no dispositivo legal supra mencionado resulta, claramente, que para a fixação do quantum indemnizatório, em sede do juízo de equidade, não é dispensável a prova dos factos, na medida em que “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.
Acresce, por outro lado, que neste domínio têm a doutrina e a jurisprudência defendido a necessidade de, igualmente, serem esgotados todos os meios conducentes à determinação do preciso valor da indemnização. Os autos revelam, contudo, que não houve lugar a diligências nesse sentido. O tribunal de primeira instância proferiu, mesmo, decisão sobre o mérito da causa em saneador sentença, sendo certo que, no âmbito do processo civil, também o julgador está incumbido de diligenciar no sentido de encontrar as provas necessárias e adequadas a melhor resolução do caso concreto. E isto pese embora a responsabilidade das partes em matéria do ónus da prova, pois que quem invoca o direito à indemnização está obrigado a fazer prova dos factos constitutivos desse direito (artigo 342.º do CC).
E é à luz do que acima se espelha que, entende este Tribunal Constitucional, se impõe reflectir sobre os pressupostos que deram lugar à fixação do valor arbitrado para a indemnização em sede do Tribunal Supremo, uma vez que a prova carreada ao processo é de todo insuficiente que quase nada atesta sobre a natureza e a dimensão dos danos resultantes do acidente de viação, quer considerando o dano emergente, quer o lucro cessante, tal como vertido no aresto recorrido.
Embora o Tribunal ad quem refira ter tido em conta situações idênticas reflectidas nas suas decisões, facto é que não as identifica, o que diminui o valor da previsibilidade implícito na decisão judicial, um dos pressupostos subjacentes à ideia de segurança jurídica, que decorre do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da CRA).
Tal facto dificulta, ainda, a avaliação sobre a racionalidade e a justiça da decisão prolatada, bem como impede aferir sobre a eventual violação do princípio da igualdade, como arguido pela Recorrente, ante a impossibilidade de comparar os montantes pecuniários arbitrados, para o mesmo efeito, nas referidas, mas não identificadas, decisões judiciais, sem prejuízo, obviamente, das especificidades atinentes ao caso concreto.
Ora, é entendimento doutrinário e jurisprudencial que o processo justo, conforme e equitativo, aquele em que são assegurados os direitos processuais (direito ao contraditório, ampla defesa, entre outros) serve de ponto de partida para aferir da justiça da decisão. À presente compreensão está, igualmente, associada a ideia de que a conformação do processo justo apenas à luz da observância das normas e dos pressupostos processuais não garante, contudo, a justiça da decisão.
Consequentemente, teremos que a decisão justa não resultará somente do devido processo legal na perspectiva dos pressupostos processuais, mas igualmente de uma correcta interpretação da (s) norma (s) jurídica (s) aplicável (aplicáveis) ao caso concreto e da compreensão acurada dos factos que sustentam a pretensão submetida a juízo, tal como ensina o processualista italiano Michele Taruffo (Teoria della decisione giusta, págs. 315 a 328). Nesta senda, o julgador deve encontrar a requerida compreensão a partir do melhor raciocínio, que por meio da prova, o aproxime da verdade dos factos. Um tal raciocínio deve, assim, estar reflectido, de modo elucidativo, na decisão judicial, por forma a ser possível concluir que a decisão tomada foi racionalmente correcta e adequada ao caso concreto.
Acontece, porém, que nos presentes autos os fundamentos que o aresto recorrido comporta entram mesmo em contradição com o decidido quanto ao montante da indemnização arbitrado, ainda que reduzido, que, por seu lado, se afigura desproporcional em face do necessário nexo de causalidade que, com a devida racionalidade e prudência, se impõe estabelecer entre o facto e o dano, com vista a que esse montante não exceda o valor dos danos.
Ora, a ideia de proporcionalidade, enquanto instrumento interpretativo norteador do processo de apreciação material da decisão, tendo em conta a solução de justiça do caso concreto, releva, igualmente, como critério de valoração do direito ao julgamento justo, ao devido processo legal, que é também uma emanação do princípio do Estado de Direito e, se se quiser, uma concretização do processo equitativo, que encontra consagração no n.º 4 do artigo 29.º da CRA.
Dito de outro modo e, em resumo, teremos que o direito a um julgamento justo e conforme incorporará não apenas uma dimensão formal, associada às garantias do devido processo legal (acesso à justiça, imparcialidade e independência do julgador, igualdade das partes processuais, direito ao contraditório, à ampla defesa, publicidade dos actos processuais, celeridade na decisão, entre outros), mas igualmente uma dimensão material ou substancial, directamente relacionada com a resolução do caso concreto e incidente sobre a razoabilidade e proporcionalidade da decisão judicial, que decorre do principio da proporcionalidade.
Assim, no caso sub judice e considerando o que acima se expende, é entendimento deste Tribunal Constitucional que o Acórdão objecto da presente sindicância, no que tange à fixação equitativa do montante da indemnização, não materializa, em confronto com os fundamentos que o alicerçam e os elementos probatórios constantes dos autos, uma decisão ajustada aos factos trazidos ao processo. Ou seja, uma decisão que configure a justa medida que resulta do acto lesivo, no caso, o acidente de viação, que fundamenta o direito à indemnização.
Como tal, o Acórdão posto em crise não traduz a necessária estruturação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva, na medida em que atenta contra o direito ao processo equitativo e, concomitantemente, contra o direito ao julgamento justo na dimensão acima reflectida que, entre outros, encontra amparo legal quer no artigo 2.º, n.º 1, quer no artigo 29.º, n.º 4 e no artigo 72.º, todos da Constituição da República de Angola.
Desta sorte e partindo do pressuposto que na decisão jurisdicional está em causa tanto a verificação dos factos que condicionam a aplicação da lei, quanto a aplicação da lei propriamente dita, impor-se-á admitir que o Acórdão do Tribunal Supremo, ao reflectir uma evidente contradição entre os fundamentos e o decidido, atenta também contra o princípio da legalidade, em que se funda toda a acção jurisdicional, que igualmente se subordina à Constituição.
Conclui, assim, este Tribunal, pela inconstitucionalidade do Aresto recorrido, em face dos fundamentos supra arrolados, que se distinguem dos invocados pela Recorrente.
DECIDINDO
Nestes termos
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Custas pela Recorrente (artigo 15.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 15 de Setembro de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata