ACÓRDÃO N.º 641/2020
PROCESSO N.º 757-A/2019
Recurso para o Plenário (Processo relativo ao Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Bernardo Abel de Magalhães, Tuzi Tomás Lourenço, Valdimir Carlos Mavoka e Venâncio João Evaristo, melhor identificados nos autos, vêm ao Plenário do Tribunal Constitucional interpor recurso sobre o Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, proferido em 16 de Agosto de 2019, que indefere a Reclamação interposta ao Despacho exarado pela 1ª. Secção da Sala Criminal do Tribunal de Comarca de Benguela (fls. 2 a 7 dos autos).
O Despacho de indeferimento sobre a reclamação, a fls. 2 e 24, tem como fundamento o facto do recurso ordinário de inconstitucionalidade basear-se em argumentos de natureza procedimental que não se enquadram no âmbito de um recurso ordinário de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 36º da Lei nº 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC) e, também, no facto de os recursos ordinários de inconstitucionalidade só poderem ser interpostos de sentença proferida pelo Tribunal da causa.
Os ora Recorrentes, tendo sido notificados do Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional que indeferiu a Reclamação relativa ao Despacho exarado pela 1ª Secção da Sala Criminal do Tribunal da Comarca de Benguela, conforme consta da certidão e do Despacho a fls. 9 dos autos, vêm, ao abrigo do artigo 4º e do nº 3 do artigo 5º da LPC, por ofensa aos princípios da legalidade, do contraditório e do julgamento justo, previstos na Constituição da República de Angola (CRA), recorrer junto do Plenário do Tribunal Constitucional.
Os Recorrentes apresentam, em síntese, as seguintes alegações:
O processo foi à vista do Ministério Público, tendo dado o seguinte parecer: Apreciadas as alegacões de recurso actualizadas constata-se que os Recorrentes não observaram o disposto no artigo 49.º da Lei do Processo Constitucional, conjugado com o artigo 13º da Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro.- Lei de alteração a LPC. Entende-se da interpretação dessa norma que tendo sido os Recorrentes julgados pelo Tribunal de 1.ª instância a decisão desse Tribunal caberia recurso ordinário para o Tribunal de 2.ª instância, no caso, para o Tribunal Supremo, que é a última instância da cadeia de recursos ordinários. É da decisão deste Tribunal que caberia recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional. Nestes termos, [sugere] (...) o não provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Plenário do Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos das disposições conjugadas do n.º 3 do artigo 5.º e do n.º 2 do artigo 8.º, ambas da LPC.
III. LEGITIMIDADE
Os Recorrentes têm legitimidade para recorrer, nos termos do artigo 37.º, alínea b), da LPC, ao abrigo do qual podem interpor recurso ordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário, desde que tenham suscitado a inconstitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida e em termos deste estar obrigado a dela conhecer”.
IV. OBJECTO
Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade do Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional que indefere a reclamação interposta relativamente ao Despacho exarado pela lª Secção da Sala Criminal do Tribunal de Comarca de Benguela (fls. 2 a 7).
V. APRECIANDO
Os Recorrentes reclamaram ao Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, da decisão do Tribunal a quo que indeferiu o Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade por eles interposto, por considerar que as alegações foram apresentadas fora do prazo (fls. 172, 173 e 191), com fundamento no n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 4/94, de 28 de Janeiro – Lei dos Crimes Militares LCM e no artigo 36.º da LPC.
Inconformados ainda, com novo despacho de indeferimento proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional sobre a reclamação, vêm impugnar ao Plenário do Tribunal Constitucional, por entenderem que o referido despacho ofende os princípios da legalidade, do contraditório e da certeza jurídica consagrados na CRA.
A. Sobre a violação do princípio da legalidade
Segundo os Recorrentes, o Despacho de indeferimento proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional não observa o princípio da legalidade, uma vez que após interposição do recurso ordinário de inconstitucionalidade da douta sentença, a lei manda endereçar a reclamação, em caso de retenção do processo, ao Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional (cfr. art.º 42.º n.º 5 da LPC).
Ademais, ressaltam que o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, ao decidir indeferir a reclamação, não teve em vista que o recurso já tinha sido admitido, que em tempo foram apresentadas as alegações, que não compete ao Tribunal a quo pronunciar-se sobre as alegações por estas serem de apresentação facultativa no Tribunal recorrido, e que, portanto, tinha somente o dever de aperfeiçoar o requerimento. Assim, o recurso é admissível, está em tempo, tem legitimidade, e deveria ter sido admitido com efeito suspensivo e com subida nos próprios autos (fls. 5, 6 e 14).
Ora, o princípio da legalidade suscitado é um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico angolano, que “... decorre da natureza do processo e dos interesses tutelados pelo direito penal (interesses fundamentais e disponíveis do Estado) que através dele se realizam. Por isso, não se compadece com juízos discricionários de utilidade prática ou de casuística conjuntural. É um pressuposto do Estado de direito e a melhor garantia contra o arbítrio do poder, as desigualdades de tratamento processual penal e contra as injustiças”, Grandão Ramos, Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, 2015, pág. 66.
Os artigos 36.º, 41.º e 44.º da LPC estabelecem as condições em que, no âmbito de fiscalização concreta, pode haver Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional e delimitam como sendo objecto deste recurso “…as sentenças dos demais tribunais…”. Por outro lado, estabelece, também, o artigo 45.º da LPC, seguindo o regime disposto no Código de Processo Civil, que as alegações do recurso devem ser apresentadas no Tribunal Constitucional.
Portanto, só teria respaldo legal o que defendem os Recorrentes, (que a reclamação deve ser interposta junto do Tribunal Constitucional, como estabelece o n.º 5 do artigo 42.º da LPC), se o recurso ordinário de inconstitucionalidade por eles interposto tivesse como objecto uma norma cuja constitucionalidade tivesse sido suscitada durante o processo.
Por outro lado, o facto do recurso interposto ter já sido admitido pelo Tribunal a quo, como alegam os Recorrentes, “não vincula” o Tribunal Constitucional, porquanto o n.º 4 do mesmo preceito legal estabelece que “A decisão que admita o recurso ou lhe determine o efeito não vincula o Tribunal Constitucional e as partes só podem impugná-la nas suas alegações”. Logo, a admissão do recurso pelo Tribunal a quo não obriga este Tribunal.
O procedimento adoptado pelos Recorrentes ao reclamarem do indeferimento ou retenção do Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade, cujo objecto não é uma sentença, não observa a tramitação legalmente estabelecida e deveriam os mesmos ter recorrido junto do Tribunal Supremo. Até porque o controlo concreto da constitucionalidade impõe a subordinação de todos os tribunais à Constituição, o que importa dizer que todos os tribunais se obrigam a não aplicar a norma tida como inconstitucional para um determinado caso concreto a ser julgado (artigo 652.º do CPP e artigos 688.º e 690.º do CPC).
Nestes termos, o princípio da legalidade, acima alegado, assegura a promoção e a prossecução do processo penal em estrito cumprimento à lei e não segundo considerações de oportunidade de qualquer ordem, ou seja, a marcha e termos do processo são os determinados na lei e não decididos pelo juiz em função das conveniências do caso concreto, visando afastar qualquer tentação de parcialidade ou arbítrio.
De acordo com o artigo 175.º da CRA, no exercício da função jurisdicional, os Tribunais são independentes e imparciais, estando apenas sujeitos à Constituição e à lei. No caso sub judice, a rejeição teve lugar com fundamento na inobservância dos artigos 36.º, 37.º, 41.º e 44.º da LPC.
Isto posto, esteve bem o Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, pois os recursos ordinários de inconstitucionalidade têm natureza incidental e são restritos à questão da inconstitucionalidade suscitada, só podendo ser interpostos de sentença proferida pelos demais tribunais, nos termos dos nºs 1, 2 e 3 do artigo 36.º da LPC.
B. Sobre a violação dos princípios do contraditório e da certeza jurídica
Os Recorrentes argumentam que foram violados os princípios do contraditório e da certeza jurídica, porquanto após terem interposto recurso ordinário de inconstitucionalidade da douta sentença, nos termos do n.º 1 do artigo 41.º da LPC e este ter sido admitido em audiência, não competia já ao Juiz da causa pronunciar-se acerca da admissibilidade ou não das alegacões. Entretanto, estas foram consideradas como apresentadas fora de prazo e, consequentemente, o recurso julgado deserto, nos termos do n.º 5 do artigo 41.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Julho, com base na exposição do Representante do Ministério Público, que não foi de conhecimento dos ora Recorrentes (cfr. fls. 23).
Invocam, ainda, que o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional indeferiu a presente reclamação, sem avocar para si os autos, com o fundamento de que os ora Recorrentes apresentaram argumentos de natureza procedimental e não considerou que o recurso já tinha sido admitido e, tempestivamente, apresentadas as alegações.
Ora, o princípio do contraditório aqui invocado é “... uma garantia, de cada uma das partes no processo, de efectiva participação em todos os seus actos, de forma a que a parte possa ser ouvida, possa impugnar quer a admissão dos meios de prova, quer a força probatória dos mesmos, numa palavra, que possa ter oportunidade de influenciar a decisão judicial que vai ser tomada.” É também através deste princípio que se garante que “... – através de meios processualmente válidos -, [a parte] recorra das decisões que a afectem, para lhe permitir construir a sua defesa e lutar pelos seus interesses, na mira da obtenção da verdade material”. (Ana Prata, Catarina Veiga e José Manuel Vilalonga, Dicionário Jurídico, Direito Penal e Direito Processual Penal, 2009, pág. 394).
São meios processualmente válidos, aqueles que integram “... o sistema de normas jurídicas que regulam o processo penal, considerando este como o conjunto de actos e actividades que têm por fim aplicar, pela individualização de uma medida penal, o direito penal substantivo”. “Sem o direito processual penal, o direito penal não poderia realizar-se e aplicar-se aos factos concretos da vida de relação em função da qual ou para a disciplina da qual ele existe.” (Grandão Ramos, Direito Processual Penal. Noções Fundamentais. 2015, págs. 10 e 12). Portanto, o processo penal é importante para o direito, porque ele compõe a lide, estabelecendo como será a investigação, a acusação, o processo, como o juiz sentenciará e como as partes devem se comportar, entre outros actos processuais.
De acordo com o n.º2 do artigo 174.º, da CRA, no exercício da função jurisdicional, os tribunais asseguram a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os princípios do acusatório e do contraditório e reprimem as violações da legalidade democrática.
“Ninguém pode ser detido, preso ou submetido a julgamento senão nos termos da lei, sendo garantido a todos os arguidos ou presos o direito de defesa, de recurso e de patrocínio judiciário”, nos termos do nº 1 do artigo 67.º da CRA. Portanto, no processo penal, a condenação com base apenas em prova produzida pela acusação é nula, pois é direito da parte utilizar os meios a seu dispor para alcançar o seu direito, seja através de provas ou de recursos, de modo a efectuar a mais ampla defesa quanto à imputação que lhe foi realizada (cf. artigos 3.º e 517.º do CPC).
Ora, os Recorrentes foram julgados e condenados pela 1.ª Secção da Sala Criminal do Tribunal de Comarca de Benguela. Em Acta, os Recorrentes interpuseram o Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade, nos termos do n.º 1 do artigo 41.º da LPC, tendo sido admitido nos referidos autos. Porém, por não apresentarem as alegações tempestivamente, foi considerado deserto e consequentemente “indeferido” o supradito recurso (fls. 23).
Por esta razão apresentaram reclamação ao Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional que proferiu o despacho de indeferimento com fundamento no facto de os ora Recorrentes apresentarem argumentos assentes nas questões de natureza procedimental, não preenchendo, deste modo, os requisitos estabelecidos nos artigos 36.º e 42.º da LPC.
Na verdade, o recurso ordinário de inconstitucionalidade interposto tem como fundamento argumentos de natureza procedimental, conforme fls. 60 e 67 dos autos, assentes sobretudo nos seguintes factos:
Aliás, são os próprios Recorrentes que alegam estar certos que “o objecto do recurso não é a inconstitucionalidade da norma em causa, mas a interpretação que dela foi feita, porém, é pacífico e sabido que o efeito que [se] pretende não é a aplicação ou afastamento das normas e Princípios incidentalizadas e sindicadas, mas sim, o que está em causa, no fundo desse incidente, é a aplicação das normas e princípios ...” (fls. 67).
O Plenário do Tribunal Constitucional entende, da interpretação do disposto no artigo 49.º da LPC, que, tendo sido os Recorrentes julgados pela 1ª Secção da Sala Criminal do Tribunal de Comarca de Benguela, como Tribunal de 1ª instância, da decisão deste Tribunal caberia recurso ordinário para o Tribunal Supremo, que é a última instância da cadeia recursiva dos recursos ordinários. Da decisão deste tribunal (Tribunal Supremo) é que poderia caber recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional.
Nestes termos, e tendo em atenção o acima exposto, o Plenário do Tribunal Constitucional considera que esteve bem o Venerando Juiz Presidente Conselheiro do Tribunal Constitucional ao indeferir a reclamação interposta, uma vez que a mesma não assenta sobre os pressupostos de um Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade cujo objecto seja uma norma suscitada durante o processo, mas, sim, sobre actos de mera natureza procedimental decorrentes de distintas etapas judiciais.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Custas pelos Recorrentes (artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, LPC).
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 20 de Outubro de 2020.
O JUIZES CONSELHEIROS
Dra. Guilherma Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima d´Almeida B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata