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ACÓRDÃO N.º 642 /2020

PROCESSO N.º 793-A/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

T&M-Prestação de Serviços Lda., João Carlos Chaves Tavares e Luís Matias, melhor identificados nos autos, vieram interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade da decisão do Tribunal Supremo, vertida no Acórdão prolactado no âmbito do Processo n.º 2348/16, que confirmou a decisão da 1.ª instância, que revoga o contrato celebrado entre as partes e condena a Requerida no pagamento ao autor do valor equivalente em AKZ à USD 500 000,00 (Quinhentos Mil Dólares Americanos), conforme fls. 104 dos autos.

Os Recorrentes, nas suas alegações, apresentaram, em síntese, o seguinte:

  1. Foi o presente recurso interposto da douta decisão proferida pelo Tribunal Supremo que confirmou a decisão do Tribunal de 1.ª Instância, condenando os Recorrentes nos pedidos do Autor, ora Recorrido.
  2. Quiçá por lapso, houve uma deficiente identificação do objecto do recurso, que se circunscreve a 4 (quatro) e não somente a 3 (três) pontos, como ficou exposto no Acórdão recorrido, pelo que encerrava o objecto do recurso: “Emerge como questão central, a de saber se a decisão ora recorrida padece do vício que lhe é imputado, designadamente, o de nulidade nos termos previstos nas alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código do Processo Civil”.
  3. Assim, sai desde logo prejudicada quer a Sentença, quer o Acórdão, que ignoraram a análise e decisão de questões cruciais do processo, como a ilegitimidade dos réus, a má-fé do autor, bem como a condenação em procuradoria exorbitante.
  4. Não houve, de todo, fundamentação para a condenação dos réus no pedido de USD 500 000,00 (quinhentos mil dólares americanos), ou seja, não se tratou apenas de um caso de fraca ou insignificante fundamentação, mas de falta autêntica de fundamentação para tal condenação; não foi demonstrado o caminho, a fórmula matemática que permitiu chegar àquele valor.
  5. O douto Acórdão mostrou-se conflituoso ao não fazer coadunar o “curso do rio” com a “foz”, ou seja, relativamente ao facto de não assistir razão ao Tribunal a quo para a condenação dos recorrentes, mas concluir pela ratificação da sentença recorrida.
  6. A falta de assinatura do Juiz da causa na sentença notificada às partes, constitui omissão de formalidades exigidas por lei.
  7. É de proclamar a defesa do princípio constitucionalmente consagrado, do julgamento justo e conforme, que se materializa também no princípio do due process of law, pautado em garantias processuais que devem ser concretizadas, como forma de evitar lesões aos cidadãos, durante a prestação jurisdicional, que se consubstancia numa actividade-dever do Estado, sendo em contrapartida direito fundamental do cidadão que deve obtê-lo no tempo e modo devido, sendo, assim, garantia do devido processo, constitucionalmente garantido.
  8. Assim, a constituição e o desenvolvimento de um processo devem pautar-se, pelo estrito cumprimento da lei, permitindo, assim, o controlo da constitucionalidade dos actos. Esta garantia fundamental do processo é, em verdade, um princípio constitucional e a expressão pura do Estado democrático de direito, levando assim a imposição da compatibilização do processo às garantias constitucionais.
  9. Tendo em atenção os princípios da proibição de denegação de justiça, da legalidade, do julgamento justo, conforme e equitativo e da certeza e segurança jurídica, consagrados nos termos dos artigos 29.º, 174.º, 175.º e 177.º da CRA, os Recorrentes requerem que seja concedido provimento ao presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade e, consequentemente, seja o Tribunal Supremo convidado a reformar o acórdão recorrido, em consonância com o respeito aos princípios violados e aqui descritos, com os devidos efeitos legais.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do n.º 4 do artigo 16.º e do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE

 Os Recorrentes foram parte vencida no Processo n.º 2348/16, que correu trâmites na Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, pelo que têm direito de contradizer nos termos do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ao caso por força do artigo 2.º da LPC e, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor o presente recurso.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto analisar se o Acórdão proferido pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, violou ou não algum direito, liberdade e garantia fundamental ou princípios constitucionais previstos na CRA.

 V. APRECIANDO 

Afirmam os Recorrentes, conforme fls. 166 dos autos, que o Acórdão proferido pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo ofendeu os princípios da proibição da denegação da justiça, da tutela jurisdicional efectiva, da legalidade, do julgamento justo conforme e equitativo, e da certeza e segurança jurídica consagrados nos artigos 29.º, 174.º,175.º e 177.º, todos da CRA.

Assim:

A) Sobre o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva

Não obstante a afirmação dos Recorrentes em relação a ofensa do princípio da denegação da justiça e tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 29.º da CRA.

 Constata este Tribunal que os Recorrentes em sede de alegações não cuidaram de fundamentar a ofensa que suscitam sobre os princípios supra referenciados.

Ainda assim importa apreciar em termos genéricos a concretização constitucional dos princípios suscitados.

De acordo com J.J. Gomes Canotilho, O direito de acesso aos tribunais reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar um prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor do resultado de causas e outras. (In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, 2003, pág. 433).

A tutela jurisdicional efectiva tem igualmente consagração em instrumentos internacionais, como o artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e o artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, aplicados em Angola ex vi dos artigos 13.º e 26.º n.º 2 da CRA. Estes preceitos obrigam a que a estruturação legal do processo sobre o qual incidem deve ser adequado à tutela dos direitos, cuja eficácia integral é preciso assegurar, em respeito à própria dignidade humana.  

É deste princípio que resulta o direito de recorrer aos tribunais para a efectiva defesa material dos seus interesses e, consequentemente, fica vedada a denegação da justiça aos cidadãos. Além de ser um direito, é também uma garantia constitucional de acesso aos tribunais (n.º 1 do artigo 29º da CRA) que visa “... principalmente possibilitar aos cidadãos a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos através de um acto de jurisdictio” (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, 2003, pág. 433).

Tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que o “Estado de direito não se satisfaz com meras aparências, exige realidade, materialidade e efectivação. A tutela jurisdicional efectiva deve ser assegurada a todos os cidadãos, em condições de plena igualdade, como um direito fundamental” (cfr. o Acórdão n.º 572/2019, Tribunal Constitucional, proferido no âmbito do Processo n.º 704-D/2019).

O princípio do devido processo legal assegura que todo o julgamento seja realizado com observância das regras procedimentais previamente estabelecidas. Representa, além disso, uma exigência de fair trial, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída de boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais. Acresce-se, ainda, que inserido no contexto da garantia do devido processo legal, a necessidade do contraditório torna fundamental que às partes não sejam restringidas as garantias de defesa.

Por isso, os Recorrentes, através dos seus mandatários legais, assumiram o papel multifacetário no processo, contestaram, produzindo provas (fls. 30, 33, 34, 40 e 185 dos autos), juntando documentos, pronunciando-se sobre os quesitos e outros aspectos, estiveram presentes em todos os actos processuais orais, com realce para a audiência preparatória (fls. 59 e 63 a 66 dos autos).  

A prática dos actos acima referidos e demais próprios do processo, permitiu aos Recorrentes influir na decisão final da lide, quer junto do Tribunal a quo, quer no Tribunal ad quem, e interpor recurso à este Tribunal Constitucional, proporcionando, assim, o exercício do direito à reapreciação da decisão judicial, isto é, o direito a ter, pelo menos, um duplo grau de jurisdição (fls. 108, 109 e 110 dos autos).

Os actos processuais foram praticados pelos seus mandatários legais, junto do tribunal que os apreciou de forma independente e imparcial, nos termos dos artigos 175.º e ss. da CRA e, com competências pré-definidas legalmente, prolactou a decisão recorrida, baseada na lei.

Destarte, nada indica haver ofensa do princípio consagrado nos artigos 29.º e 175.º da CRA, porquanto se constata nos autos que os Recorrentes praticaram todos os actos processuais quer junto do Tribunal ad quem, quer perante o Tribunal a quo, deduziram as suas razões de facto e de direito e produziram os respectivos argumentos de prova e outros em defesa dos seus direitos, sobre os quais, após apreciação, conheceu-se uma solução jurídica proferida pelo Tribunal Supremo e dela interpuseram recurso a este Tribunal.

 B) Sobre o princípio da legalidade

Os Recorrentes alegam que a sentença do Tribunal a quo, da qual foram devidamente notificados, não foi assinada pelo Juiz da causa, razão pela qual se ofende o princípio da legalidade, constitucionalmente consagrado.

O princípio da legalidade é um dos princípios fundamentais, consagrado nos artigos 2.º, 6.º e 175.º da CRA, está na base do ordenamento jurídico angolano e na limitação da actuação do Estado e também dos cidadãos, pois obriga-lhes a agirem dentro da lei para que os seus actos sejam juridicamente válidos. O n.º 1 do artigo 2.º da CRA refere que a República de Angola tem como fundamento o primado da Constituição e da lei e o nº 2 do artigo 6º estabelece uma hierarquia, pois determina que a Constituição é a lei suprema.

A omissão da assinatura do juiz na sentença constitui, nos termos do artigo 668.º do CPC, uma das causas de nulidade da sentença, salvo se, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, for suprida oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença.

Nestes termos, não se vislumbra aqui qualquer violação ao princípio da legalidade.

 C) Sobre o julgamento justo e conforme

Os Recorrentes sustentam, também, que o Acórdão recorrido não conheceu todos os pontos suscitados para identificar o objecto do recurso, ignorando, assim, a apreciação e decisão de questões cruciais do processo. Nestes termos, não foi apreciada a ilegitimidade dos Recorrentes João Carlos Chaves Tavares e Luís Fernando Pinhão Matias, que apenas intervieram em nome e no interesse da sociedade (fls. 4 dos autos), bem como a má-fé do autor e a condenação em procuradoria exorbitante. Também, como referem os Recorrentes não se fundamentou a condenação dos réus no pedido de USD 500 000,00 (quinhentos mil dólares americanos), sendo, portanto, de aventar que esta decisão padece do vício de nulidade.

Porém, verifica-se, desde logo, que o Acórdão do Tribunal ad quem teve como objecto a parte da decisão desfavorável aos Recorrentes apresentada por estes nas suas alegações, com realce nas conclusões aí constantes (fls. 136-145 dos autos), nos termos do artigo 682.º, do  n.º 3 do artigo 684.º e do n.º 1 do artigo 690.º, todos do Código Processo Civil (CPC), abarcando, desta forma, todas as questões que lhe foram requeridas.

As conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e, consequentemente, a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração690.º, n.º 2 do artigo 660.º, in fine e n.º 2 do artigo 713.º, todos do CPC. 

Assim, em relação à ilegitimidade arguida pelos ora Recorrentes, é de considerar que constitui excepção dilatória e é do conhecimento oficioso do tribunal, apreciada no despacho saneador, conduzindo, caso seja julgada procedente, à absolvição dos réus da instância, ex vi da alínea b) do n.º 1 do artigo 494.º, do artigo 495.º, da alínea d) do n.º 1 do artigo 288.º e da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 510.º, todos do CPC (Cf. fls. 98 dos autos).

A fls. 99 dos autos, o Tribunal a quo realça que “Ora, o R., independentemente de ter invocado a excepção dilatória da ilegitimidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 494.º do citado diploma (CPC), actuou demonstrando o seu interesse em contradizer, logo, é despiciendo enveredar para esta contenda doutrinária (…), pois partiu do próprio reconhecimento do contrato que celebrou com o então A., validando assim a sua posição de parte na relação material controvertida”. Portanto, a ilegitimidade invocada foi conhecida e decidida tanto pelo Tribunal a quo, como pelo Tribunal ad quem, nos termos do n.º 2 in fine do artigo 26.º do CPC.

É verdade (fls. 96, 156 e 157 dos autos) que o ora Autor propôs, também, a acção contra os sócios gerentes da T& M – Prestação de Serviços, Lda., os Senhores João Carlos Tavares e Luís Fernando Pinhão Matias, ambos em litisconsórcio voluntário. Todavia, nesta qualidade, estes não têm necessariamente de intervir na acção, pois, só intervêm se assim o desejarem, o que veio a acontecer, conforme fls. 97, ao contrário do litisconsórcio necessário em que todos os interessados devem intervir no processo, sendo que a falta de qualquer dos interessados é, portanto, fundamento de ilegitimidade dos que intervieram na respectiva acção (cfr. artigos 27.º e 28.º do CPC).

Sobre a má-fé alegada pelos Recorrentes, a fls. 157v dos autos (Acórdão recorrido), o Tribunal ad quem destacou o pronunciamento fundamentado do Digno representante do Ministério Público, em relação a inexistência de má-fé do Apelado, ao promover o seguinte parecer: “Vi os autos nos termos do n.º 1 do art.º 707.º do CPC e não constatei sobre má-fé das partes que se julgue relevante ou ilegitimidade no processo (...) não tendo a Apelante justificado ou fundamentado os motivos do seu incumprimento voluntariamente assumido, promovo a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida”.  

E mesmo que se considerasse como deficiente a argumentação quanto ao valor, sempre vale a fundamentação constante do Acórdão recorrido, a fls. 159 dos autos, citando Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 1985, pág. 687, quando afirma que “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. No mesmo sentido, Lebre de Freitas, Montalvão Machado Machado, Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado. vol. 2º, 2001, pág. 669, onde concluem que, “Por isso, a motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença…”.

Nestes termos, tendo em atenção a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 10.º) e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 8.º), aplicadas na República de Angola por força dos artigos 13.º e 29.º da CRA, não se violou o direito a julgamento justo que inclui, essencialmente, o direito de estar presente em tribunal, de ter um julgamento público e célere perante um tribunal independente e imparcial e o direito de ter um advogado de escolha.

Da análise do acima exposto, o Tribunal Constitucional conclui que o Acórdão recorrido não violou direitos nem ofendeu princípios fundamentais previstos na CRA.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

 Custas pelos Recorrentes, nos termos do artigo 15.º da Lei nº 3/08, de 17 de Junho, LPC, conjugado com o n.º 1 do artigo 447.º CPC.

Notifique:

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 21 de Outubro de 2020

 

O JUIZES CONSELHEIROS

Dra. Guilherma Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator) 

Dr. Carlos Magalhães 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira     

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Maria Fátima de Lima d` Almeida B. da Silva 

Dr. Simão de Sousa Victor 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata