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ACÓRDÃO N.º 643/2020

PROCESSO N.º 702-B/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Aníbal Kanguilo Neves Manuel, melhor identificado nos autos, interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado sob o Processo n.º 805/17, pela 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que manteve o despacho de pronúncia contra o ora Recorrente, proferido pelo Tribunal Provincial do Uíge, como Tribunal a quo, no crime de violação cometido contra a ofendida, de 18 anos de idade, Arminda Antónia Canduanga, à data dos factos ocorridos, sua aluna, conforme fls. 805 e ss dos autos e 172 do processo.

Notificado para apresentar alegações de recurso, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), o Recorrente referiu, no essencial, que:

  1. O acórdão do Tribunal Supremo não se pronunciou sobre as violações graves ao dever de protecção do exercício do direito a defesa do Recorrente, ao julgamento justo e conforme à lei, ao direito de ser assistido por defensor oficioso em todos os actos processuais, violando assim os princípios constitucionais da legalidade, do contraditório, da imparcialidade e demais garantias gerais do Estado e da igualdade processual penal, conforme os artigos 29.º, 56.º, 67 º, 72.º, 174.º, º, 177.º,  189.º e 226.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA).
  2. Todas estas inconstitucionalidades vêm sendo arguidas desde a fase de instrução preparatória e consubstanciam-se nos seguintes factos:
  3. o Magistrado do Ministério Público instrutor do processo sonegou provas documentais juntas ao processo pela defesa, nomeadamente, um conjunto de 104 folhas A4 correspondentes a mensagens trocadas via facebook entre o arguido e a vítima, um CDROM com o áudio de uma declarante contradizendo as declarações prestadas nos autos, e
  4. o facto de o então arguido, aquando do seu interrogatório, não ter sido assistido por um defensor oficioso (presente e não fictício).
  5. O Tribunal Supremo, à semelhança do Magistrado do Ministério Público, desconsiderou as referidas provas sonegadas na fase de instrução do processo, por entender que elas não eram suficientes para afastar a culpabilidade do Réu, limitando-se a referir que tal comportamento por parte do referido Magistrado do Ministério Público seria reportado ao Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público, para ser tratado a nível disciplinar.
  6. O Tribunal Supremo não se pronunciou sobre as questões alegadas pelo aqui Recorrente, sendo que tais questões constituíam a espinha dorsal das suas alegações, limitando-se a concluir no acórdão recorrido que as mensagens juntas pela defesa do Recorrente, supostamente enviadas pela ofendida ao aí Réu, não eram suficientes para fazer a análise da culpabilidade do Réu, pois deviam ser juntas aos autos as mensagens trocadas entre ambos, porém, não obstante tal conclusão, decidiu por manter o despacho de pronúncia.
  7. Pelas provas sonegadas era possível perceber que existia uma relação natural entre o ora Recorrente e a ofendida, que já durava há vários meses, pelo que o facto de as mesmas terem sido omitidas no processo, enfraquece a defesa do Recorrente, deixando-o numa posição desprotegida em comparação com a acusação.

O Recorrente termina referindo que, com esta decisão, o Tribunal Supremo cometeu graves violações aos princípios constitucionais da legalidade, do contraditório, da imparcialidade e, ainda, violou os direitos fundamentais da ampla defesa, do julgamento justo e conforme e da garantia da igualdade processual penal.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar, para decidir.

II.COMPETÊNCIA

O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea  a) do artigo 49.º da Lei 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC).

Foi igualmente observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns e demais tribunais, nos termos do § único do artigo 49.º da LPC.

Consequentemente, este Tribunal é competente para apreciar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

III. LEGITIMIDADE

Têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional,  “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC.

O Recorrente foi arguido num processo de querela que correu termos na 1ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial do Uíge, sob o Processo n.º 15.495/016-A, pelo que tem legitimidade para interpor o presente recurso.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto apreciar a constitucionalidade do Acórdão da 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que negou provimento ao recurso interposto pelo Recorrente contra o despacho de pronúncia que recebeu a querela deduzida pelo Ministério Público, acusando o Recorrente pelo cometimento do crime de violação.

V. APRECIANDO

É submetida à apreciação do Tribunal Constitucional o Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que negou provimento ao recurso formulado pelo Recorrente contra o despacho de pronúncia.

O Recorrente foi pronunciado pelo crime de violação, previsto e punível pelos artigos 393.º e 398.º, ambos do Código Penal (CP).

Neste despacho, o Juiz do Tribunal “a quo” apreciou a questão da nulidade do primeiro interrogatório suscitada pelo então arguido. Entendeu o referido Magistrado que, o facto de no primeiro interrogatório estar desacompanhado de advogado ou defensor oficioso, não constitui causa de nulidade do acto. O Tribunal Provincial do Uíge considerou que a referida nulidade seria apenas aplicável nos casos de arguidos detidos, que não era o caso do aqui Recorrente.

Ao Recorrente aplicava-se o regime constante do artigo 265.º do Código de Processo Penal (CPP), pela sua qualidade de arguido solto.

Ademais, considerou sanada a nulidade, posto que o então arguido apenas veio impugnar decorridos 10 (dez) dias após juntar procuração, quando o devia ter feito no prazo de 5 (cinco) dias, nos termos do § 5.º do artigo 98.º e do §1.º do artigo 352.º, ambos do CPP, tendo o Tribunal Supremo acolhido esse entendimento.

Ora, ao Tribunal Constitucional importa apreciar se o primeiro interrogatório de arguido, realizado sem a assistência de um advogado constituído ou de defensor oficioso nomeado, bem como a sonegação das provas apresentadas pela defesa, configuram  ou não a violação de algum direito fundamental.

Estabelece o n.º 3 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola (CRA),  que O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória”.

Efectivamente, o legislador constituinte não estabelece regime diferenciado para arguido solto versus arguido preso. Basta que seja arguido para beneficiar de assistência jurídica. Assim, é inconstitucional qualquer norma infraconstitucional que seja interpretada no sentido de coarctar este direito à defesa do arguido.

Na verdade, a prática tem demonstrado que a indicação de defensor oficioso no primeiro interrogatório tem sido fictícia, pois, na maior parte dos casos, os arguidos são ouvidos sem a assistência de um advogado ou defensor oficioso e, no final do interrogatório, um funcionário do Serviço de Investigação Criminal ou mesmo do Ministério Público limita-se a assinar no lugar de defensor, mesmo sem ter assistido o interrogatório, devendo esta prática ser veementemente afastada.

Refere ainda o Recorrente que tinha o direito de ser informado,   aquando do seu interrogatório como arguido. Além de ter o  direito de escolher um defensor/advogado e, só no caso de  não querer ou não tiver possibilidades de o fazer, o magistrado deveria ter indicado pessoa idónea, de preferência advogado, advogado estagiário ou licenciado em direito, para desempenhar este papel.

Ora, o  Recorrente enquanto arguido tinha de ser informado que não era obrigado a prestar depoimentos sem a presença de defensor/advogado. É o que resulta das alíneas c), d) e e) do artigo 63.º da CRA e ainda do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 25/15, de 25 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP).

Urge salientar que esses direitos, devido à sua natureza de direitos fundamentais,  são irrenunciáveis, o que origina que  todo o depoimento de arguido (detido ou solto) prestado sem a presença de defensor, esteja eivado do vício de inconstitucionalidade.

É mister referenciar que é dever do Estado assegurar os mecanismos de defesa pública com vista à assistência jurídica e ao patrocínio forense oficioso, a todos os níveis, conforme dispõe o artigo 196.º da CRA, que consagra a institucionalização do instituto da Defesa Pública para atender às pessoas com insuficiência de meios financeiros e garantir assim, o cumprimento do direito  fundamental do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, estabelecido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 29.º da CRA.

Enfatize-se que todos os artigos da CRA acima elencados  são de implementação/concretização imediata, pois “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam todas as entidades públicas e privadas”, conforme estabelecido no nº 1 do artigo 28.º da CRA.

Interessa, também, que este Tribunal se debruce sobre a sonegação de provas  por parte do Digno Representante do Ministério Público, alegada pelo Recorrente.

O artigo 335.º do CPP dispõe que “ Se antes de ordenada a instrução contraditória tiver sido deduzida acusação, finda ela ou decorrido o prazo para se realizar, será notificado o arguido para, no prazo de dois dias, dizer o que se lhe oferecer e, em seguida, será continuado o processo com vista ao Ministério Público e notificado o assistente para, em igual prazo, manterem ou não a acusação, depois do que o juiz, apreciando todas as provas produzidas, proferirá despacho de pronúncia”.

Segundo a doutrina “A pronúncia é o despacho proferido pelo juiz de instrução, de pronúncia do arguido pelo crime de que vem acusado, encerrado que esteja o debate instrutório e que constitui o culminar da fase facultativa que é a instrução”. (Prata, Ana; Veiga, Catarina e de Almeida, Carlota Pizarro, In Dicionário Jurídico, Direito Processual Penal, Vol. II, 3ª ed, pág. 415).

Continua referindo que “ O despacho de pronúncia implica a sujeição do arguido a julgamento, por se verificarem indícios suficientes dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança – é a confirmação da acusação”. Idem

Neste casu concretum, além de ter sido alegado pelo ora Recorrente, é o próprio Tribunal ad quem, de igual modo, a reconhecer a insuficiência das provas produzidas na fase de instrução, ao referir a fls. 173 verso e 174 do aresto recorrido que “Ora, é bem verdade que as situações reportadas pelas declarantes indicadas a serem verdadeiras não bastam por si só para fundamentar a condenação do réu. Contudo, atendendo à qualidade deste (professor) e das pessoas visadas (alunas), é certo que indiciam no R. um comportamento propenso e tendencialmente desviante, ao que aliado às declarações da ofendida, levam-nos a aferir a probabilidade de o mesmo ter praticado os factos de que vem acusado.

Relativamente aos documentos constantes nos autos juntos pela defesa, por conterem apenas mensagens supostamente enviadas pela ofendida ao R, e não as trocadas entre ambos, a nosso ver carecem de melhor indagação dado, por um lado, pela vulnerabilidade dos próprios documentos e, por outro, pelo conteúdo que revelam.”

Ora, se o despacho de pronúncia marca o fim da fase instrutória e pressupõe terem sido apreciadas todas as provas existentes e dessa apreciação resultam fortes indícios da culpabilidade do arguido, é inadmissível que seja proferido um despacho de pronúncia em que o juízo de culpabilidade do arguido seja insuficiente ou deficiente por não terem sido analisados todos os elementos probatórios disponibilizados pelas partes.

Atente-se que por indícios suficientes entende-se os que levem a uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, e que haverá indícios suficientes quando existirem elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe sejam  imputados, sejam eles, vestígios, suspeitas, presunções, sinais, enfim, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é o arguido o responsável pelo mesmo.

Assim, se da fase de instrução não resultam indícios da prática da infração criminal pelo arguido, deve ser proferido despacho de não pronúncia.

Destarte, o Tribunal Constitucional considera que o Tribunal a quo, ao pronunciar o ora Recorrente, tendo o Tribunal ad quem corroborado com tal entendimento, sem que se verificassem efectivamente os fortes indícios de que àquele pudesse ser aplicada uma pena em julgamento pelo crime de violação, violou os direitos constitucionais do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, bem como os direitos à ampla defesa e a julgamento justo e conforme, nos termos dos artigos 29.º, 63º, 67.º e 72.º todos da Constituição da República de Angola.

Pelo exposto, tendo em conta a nulidade do primeiro interrogatório de arguido que inquina o processado posterior, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade do primeiro interrogatório, por violação do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e dos direitos à ampla defesa e a julgamento justo e conforme, com a consequente anulação de todos os actos processuais praticados após o referido interrogatório, devendo realizar-se novo interrogatório e seguir-se os demais trâmites processuais.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: dar provimento ao presente recurso, por violação dos direitos constitucionais do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, à ampla defesa e ao julgamento justo e conforme.

Custas pelo Recorrente, nos termos da segunda parte do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC).

Notifique.

 

Plenário do Tribunal Constitucional, em Luanda, aos ­­27 de Outubro de 2020. 

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) (Relatora)  

Dr. Carlos Alberto da Silva B. Burity da Silva 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dr. Maria da Conceição Almeida Sango

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva  Izata