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ACÓRDÃO N.º 646/2020

PROCESSO N.º 808-D/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 I. RELATÓRIO 

Edith Blandine Bouiti, melhor identificada nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 16 de Abril de 2020, da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 467/20, que negou provimento à providência de habeas corpus requerida pela então Requerente e ora Recorrente.

Na sequência da queixa-crime pela prática de crime de burla por defraudação previsto e punível pelo artigo 451.º do Código Penal (CP), movida contra a Recorrente foi-lhe aplicada aos 4 de Setembro de 2018, a medida de coacção pessoal de prestação de termo de identidade e residência e apresentação diária, bem como a interdição de saída do País ou da província.

Notificada para apresentar alegações de recurso nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional – LPC, a Recorrente fê-lo, aludindo, no essencial que:

  1. Está eivado de inconstitucionalidade o Acórdão da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do processo n.º 467/20, por indeferir o pedido de habeas corpus argumentando que os fundamentos para o pedido de habeas corpus estão enumerados nas alíneas a), b) e c) do parágrafo único do artigo 315.º do Código de Processo Penal, CPP;
  2. O acórdão recorrido atenta contra a garantia constitucional da motivação ou fundamentação das decisões judiciais, na medida em que não basta a evocação da norma que serve de base à aplicação do direito pelo juiz, nos termos do artigo 158.º do Código de Processo Civil, CPC e do artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro;
  3. A falta de fundamentação de uma decisão judicial que limita e impede o gozo ou o exercício de direitos, liberdades e garantias constitui violação aos princípios, liberdades e garantias salvaguardadas pela Constituição tais como, a segurança jurídica, a protecção da confiança, o direito à tutela jurisdicional efectiva ou à plenitude da jurisdição, nos termos dos artigos 2.º, 6.º, 29.º, 56.º, 58.º, 64.ºe 68.º, todos da Constituição da República de Angola, CRA;
  4. É a fundamentação das decisões que possibilita a verificação da legalidade, a transparência, a necessidade, a adequação, a proporcionalidade e a subsidiariedade da decisão aplicada;
  5. O Acórdão recorrido é inconstitucional por considerar que o provimento do habeas corpus, nos termos do artigo 315.º do CPP, não é extensivo a outras situações de privação da liberdade, violando assim o espírito e a letra do artigo 26.º da CRA;
  6. A Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, veio estender os limites dos prazos para a prisão preventiva a outras medidas cautelares, bem como alargar as garantias de controlo do poder dos magistrados e a defesa contra eventuais abusos e violações ao direito a liberdade, no n.º 4 do artigo 26.º, n.º 2 do artigo 27.º, n.º 3 do artigo 32.º, n.º 1 do artigo 34.º e n.º 1 do artigo 40.º;
  7. Com a decisão de indeferimento do habeas corpus, o Acórdão recorrido violou os princípios da juridicidade e constitucionalidade dos actos dos poderes públicos, da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da plenitude de jurisdição, da equidade e celeridade do processo penal e outros estabelecidos nos artigos 1.º, 2.º, 26.º, 29.º, 57.º, 58.º, 64.º e 68.º, todos da CRA, ao possibilitar aos magistrados o uso abusivo e ilimitado do poder de restringir a liberdade do cidadão, sem respeito aos limites temporais estabelecidos por lei.

A Recorrente termina, rogando que seja dado provimento ao presente recurso, declarando-se, consequentemente, a extinção das medidas privativas da liberdade aplicadas.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional – LPC, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

Ademais, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estabelecido no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE

A Recorrente tendo interposto no Tribunal Supremo uma providência de habeas corpus, nos termos do artigo 36.º, da alínea h) do artigo 64.º, dos n.ºs 3 e 4 do artigo 65.º e do artigo 68.º, todos da CRA, viu o seu pedido ser indeferido.

Assim, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, conforme prevê a alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao estabelecer a legitimidade de recorrer extraordinariamente para “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.  

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar a constitucionalidade do Acórdão de 16 de Abril de 2020, da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 467/20, que negou provimento ao pedido de habeas corpus formulado pela Recorrente.

V. APRECIANDO

É submetido à apreciação do Tribunal Constitucional o Acórdão datado de 16 de Abril de 2020, da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 467/20, que negou provimento ao pedido de habeas corpus formulado pela Recorrente, escudando-se na letra do disposto no artigo 68.º da CRA, e defendendo que o instituto do habeas corpus está circunscrito às situações de prisão ou detenção ilegal, logo, atendendo ao facto de não ter sido aplicado à aqui Recorrente a medida de coacção de prisão preventiva, não poderia a mesma ver a sua pretensão atendida.

Efectivamente, tratando-se o habeas corpus de uma providência extraordinária destinada a assegurar, de forma especial, o direito à liberdade, nos termos do disposto no artigo 68.º da CRA, tem sido entendimento do Tribunal Constitucional, em harmonia com as convenções internacionais ratificadas por Angola, particularmente o artigo 6.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos povos que, de igual modo, integram o âmbito da providência de habeas corpus quaisquer outras restrições abusivas do direito à liberdade individual.

Aliás, como expendido no Acórdão n.º 384/2016 deste Tribunal, uma interpretação literal do artigo 68.º da CRA não se compagina com a moderna hermenêutica do regime dos direitos fundamentais consagrados na Constituição da República de Angola, que orienta a uma interpretação que garanta a máxima eficácia e abrangência das normas, sendo, deste modo, esse o entendimento que resulta da conjugação dos artigos 29.º, 46.º, 57.º e 66.º, todos da CRA.

Dito isto, de referir que o provimento do pedido de habeas corpus depende ainda (igualmente), da verificação de um dos pressupostos do artigo 315.º do Código de Processo Penal - CPP, nomeadamente:

  1.  Ter sido efectuada ou ordenada por quem para tanto não tenha competência legal;
  2.  Ser motivada por facto pelo qual a lei não autoriza a prisão;
  3.  Manter-se além dos prazos legais para a apresentação em juízo e para a formação de culpa;
  4.  Prolongar-se além do tempo fixado por decisão judicial para a duração da pena ou medida de segurança ou da sua prorrogação.

Para o caso sub judice, em que à Recorrente foram aplicadas as medidas de coacção de prestação de termo de identidade e residência e obrigação de apresentação periódica, previstas nos artigos 25.º e 26.º da LMCPP, com a consequente interdição de saída do País ou da província preceituada no artigo 32.º da mesma lei.

O Tribunal Constitucional entende que as referidas medidas de coacção, como medidas restritivas da liberdade cabem, igualmente, no âmbito da norma, nos termos da alínea c) do artigo 315.º do CPP, quando a referida medida se mantenha além dos prazos legais para a apresentação em juízo e para a formação da culpa.

Assim, resulta do artigo 315.º do CPP estarem laceradas de ilegalidade as medidas de coacção de prestação de termo de identidade e residência e obrigação de apresentação periódica, aplicadas à Recorrente, enquanto medidas de coacção privativas da liberdade,

Ora, para se aferir do cumprimento ou não dos prazos legais, nos termos da alínea c) do artigo 315.º do CPP, é necessário fazer-se o devido enquadramento com a Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal.

A Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, fixa os seguintes prazos de prisão preventiva, no n.º 1 do seu artigo 40.º:

  1. Quatro meses sem acusação do arguido;
  2. Seis meses sem pronúncia do arguido;
  3. Doze meses sem condenação em primeira instância;

 A Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal é clara ao dispor que, “ findo o prazo de prisão preventiva o arguido é imediatamente restituído à liberdade…”, nos termos do n.º 1 do artigo 42.º, essa decisão caberá ao Ministério Público caso o processo se encontre ainda em fase de Instrução Preparatória ou ao Juiz nas fases subsequentes, nos termos do n.º 3 do artigo 42.º, ambos da supramencionada lei.

No presente processo, foram aplicadas à Recorrente, aos 4 de Setembro de 2019, as medidas de coacção de prestação de termo de identidade e residência e obrigação de apresentação periódica, previstas nos artigos 25.º e 26.º da LMCPP, com a consequente interdição de saída do País ou da província, sendo que à data da interposição da presente providência cautelar, encontrava-se a Recorrente há mais de 4 meses sujeita às medidas de coacção acima elencadas, sem que tivesse sido notificada da acusação.

De acordo com a Constituição da República de Angola não pode haver medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, nos termos do n.º 1 do artigo 66.º da CRA. Ademais, o n.º 4 do artigo 26.º e o n.º 3 do artigo 32.º, ambos da LMCPP, remetem para o artigo 40.º da mesma lei, o prazo de prescrição das medidas de coacção aí previstas.

Concluindo, o Tribunal Constitucional considera que, face ao quadro constitucional e legal acima aludido, as medidas de coacção de prestação de termo de identidade e residência e obrigação de apresentação periódica, previstas nos artigos 25.º e 26.º da LMCPP, com a consequente interdição de saída do País ou da província aplicadas à Recorrente configuram, na presente data, uma situação de excesso do prazo de aplicação das referidas medidas, pelo que devem ser retiradas todas as medidas aplicadas à Recorrente, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 42.º da LMCPP.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, Acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em: 

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 9 de Novembro de 2020

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente e Relatora) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dr. Simão de Sousa Victor

  Dra. Victória Manuel da Silva Izata