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ACÓRDÃO N.º 648/2020

PROCESSO N.º 810-B/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Quintino Simão Teca, Francisco Mário Manuel e Silva Teca, melhor identificados nos autos, vêm ao Tribunal Constitucional impetrar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo prolactado a 20 de Fevereiro de 2020.

Admitido o Recurso e notificados para apresentar alegações em observância ao disposto do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), conforme se vê a fls. 108 a 114 dos autos, alegaram, em síntese, que:

  1. Pesam sobre os Recorrentes os crimes de associação de malfeitores, previsto e punível pelo artigo 263.º do Código Penal (CP), posse ilegal de armas, previsto e punível pelo artigo 123.º do Diploma Legislativo n.º 3778, de 22 de Novembro de 1967 e roubo qualificado, previsto e punível pelo n.º 2 do artigo 435.º do CP.
  2. Os Recorrentes encontram-se presos, desde 05 de Março de 2019, decorrente da acção do Serviço de Investigação Criminal (SIC-Luanda). Foram notificados da pronúncia, em excesso de prisão preventiva, no dia 28 de Novembro de 2019, isto é, passados mais de 8 meses e 20 dias.
  1. Por tal facto, os réus, por intermédio dos seus advogados, interpuseram a Providência de Habeas Corpus, com registo de entrada n.º 7113, de 04 de Dezembro de 2019, ao abrigo do artigo 68.º da Constituição da República de Angola (CRA), e do artigo 315.º e ss do Código de Processo Penal (CPP). Concluindo no seu pedido que, à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 40.º, n.ºs 1 e 3 do artigo 42.º da Lei 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP), devesse cessar a prisão preventiva por ter decorrido mais de seis meses sem pronúncia dos arguidos.
  1. Não obstante o disposto no n.º 2 do artigo 40.º da LMCPP, os réus e seus mandatários nunca foram notificados de qualquer despacho que tivesse prorrogado o prazo de prisão dos mesmos e, ainda que tivesse sido acrescido mais dois meses, o que perfaria oito meses de prisão. A verdade porém é que os réus foram pronunciados após mais de 8 meses e vinte dias, excedendo-se, assim, o prazo legal da prisão preventiva sem pronúncia.
  1. O Réus continuam presos até à data presente, perfazendo mais de 15 meses sem condenação em primeira instância, contrariamente ao máximo de 12 meses estabelecidos na alínea c) do n.º 1 do artigo 40.º da LMCPP e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).

Terminam, pedindo inteiro provimento ao presente recurso e, por via dele, que se  revogue o Acórdão recorrido por estar em desconformidade com a Constituição, designadamente, por violação dos seguintes princípios e direitos constitucionais:

  1. Princípio da legalidade, conforme os artigos 6.º , 67.º e n.º 1 do artigo 198.º todos da CRA;
  2. Princípio da presunção de inocência, nos termos do n.º 2 do artigo 67.º da CRA;
  3. Princípio da igualdade, segundo o qual todos são iguais perante a lei e a Constituição, previsto no artigo 23.º da CRA;
  4. Direito a julgamento justo e conforme, à luz do  artigo 72.º da CRA;
  5. Finalmente, violou o º1 do artigo 68.º da CRA, que estabelece que “Todos têm direito a providência de habeas corpus contra o abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o Tribunal Competente”.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do artigo 49.° da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, é competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos. Esta faculdade está igualmente prevista na alínea m), do artigo 16.° da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC. A decisão proferida pelo Tribunal Supremo esgota a cadeia recursória em sede da jurisdição comum.

 

III. LEGITIMIDADE   

O Recorrente tem legitimidade para interpôr o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC por ser parte vencida no processo n.º 1911/18, que correu seus trâmites na 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo. Tem direito a contradizer, segundo dispõe o n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional por força do artigo 2.º da LPC

IV. OBJECTO

O objecto do presente Recurso é saber se o Acórdão da 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no Habeas Corpus n.º 411, datado de 20 de Fevereiro de 2020, terá alegadamente incorrido em inconstitucionalidade, violando os direitos fundamentais dos Recorrentes, a saber: princípio da legalidade, princípio da presunção de inocência, princípio da igualdade e direito ao julgamento justo e conforme.

 V. APRECIANDO

O direito à liberdade de ir, vir, ficar e permanecer é  característica do Estado democrático e de direito, e é entendido como um bem jurídico de valor elevado. Por este facto, impõe a Constituição, no artigo 67.º , que a privação de liberdade deve obediência à constituição e à lei, e tal resulta da ideia de limitar o Estado no seu ius puniendi em desrespeito à Constituição e à lei.

O alargamento dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos constitui a beleza do texto constitucional de 2010. Assim, bem andou o constituinte ao expressar desta maneira o princípio da dignidade da pessoa humana, disposto no artigo 1.º da Constituição, do qual respira toda a ordem normativa constitucional.

A providência de habeas corpus é uma garantia ao direito fundamental da liberdade. O habeas corpus é compreendido como um remédio, porquanto, vem sanar ilegalidades tendentes à violação da liberdade de ir e vir por lhe reconhecer que a ninguém deve ser coarctada a liberdade senão nos termos da Constituição e da lei.

 Pontua a doutrina do Professor Guilherme de Sousa Nucci que “o habeas corpus é entendido como um remédio salutar, mais poderoso a garantir a liberdade suprimida ou cerceada; cujo fim é aliviar o paciente, com verdadeira presteza e admirável prontidão, da opressão ilegal. Distingue-se o habeas corpus de outras medidas cautelares em prol da liberdade e da defesa de direitos individuais pelo facto de constituir um procedimento célere, com pronta resposta em face da violação de liberdade de alguém, por acto inconstitucional ou ilegal”. (In Habeas Corpus, Editora Forense 2014, pág. 23).

A Constituição estabelece  nos n.º 1 e 2 do artigo 68.º que “Todos têm o direito à providência de habeas corpus contra abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o tribunal competente. A Providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer pessoa no gozo dos seus direitos políticos.

O legislador ordinário especifica no artigo 315.º do Código Processo Penal (CPP) que, há lugar a providência de habeas corpus quando  se trata de prisão ferida de ilegalidade, por qualquer um dos seguintes motivos:

  1. Ter sido efectuada ou ordenada por quem para tanto não tenha competência;
  2. Ser motivada por facto pelo qual a lei não autoriza prisão;
  3. Manter-se além dos prazos legais para apresentação em juízo e para formação de culpa;
  4. Prolongar-se além do prazo fixado por decisão judicial para a duração da pena ou medida de segurança ou da sua prorrogação.

Por sua vez, a LMCPP estabelece, no n.º 1 do artigo 40.º, os prazos mínimos e máximos de prisão preventiva, que transcrevemos:

1. A prisão preventiva deve cessar quando desde o seu início decorrem:                                                          

  1. Quatro meses sem acusação do arguido;
  2. Seis meses sem pronúncia do arguido;
  3. Doze meses sem condenação em primeira instância.

 Ainda na mesma norma,  estabelece o n.º 2 situações em que o prazo pode exceder por mais dois meses desde que o ilícito assim o exija, sendo certo que esta prorrogação deve ser fundamentada e prontamente notificada ao arguido ou ao seu mandatário legal.

 Pois bem, compulsados os autos, observamos que os arguidos foram detidos  a 05 de Março de 2019, tendo sido notificados da pronúncia em 25 de Novembro de 2019, quando já haviam decorrido mais de 8 meses e 20 dias. Ou seja, a pronúncia ocorreu fora do prazo previsto por aquela norma e não há nos autos algum documento que faça fé da prorrogação da prisão preventiva, nos termos do n.º 3 do artigo 40.º da LMCPP.

Aquando da interposição da providência de habeas corpus no Tribunal Supremo, pediram os Recorrentes a sua restituição à liberdade por ter expirado o prazo de prisão preventiva, conforme o disposto no artigo 68.º da CRA e da alínea b) do n.º 1 do artigo 40.º da LMCPP.

O Acórdão recorrido, chancela a fls. 120 dos autos que, “Ora, considerando que os crimes por que vêm pronunciados os requerentes são puníveis com pena superior a 8 anos de prisão maior e o processo se revestir de especial complexidade, atento o disposto no n.º 2 do artigo 40.º da Lei das Medidas Cautelares, não se verifica excesso de prisão preventiva, porque ainda não foi ultrapassado o prazo até o qual os requerentes deveriam ser condenados em 1ª instância que é de doze meses.

E porque se afigura legal a prisão, não procede a pretensão dos Requerentes”.

Este Tribunal não subscreve o Acórdão Recorrido, na medida em que o que está em causa na pretensão dos Recorrentes, dá conta do excesso de prisão preventiva, porquanto, foram pronunciados fora do prazo, sem o competente despacho de prorrogação conforme dita o n.º 3 do artigo 40.º da LMCPP.

O que é facto, é que os Recorrentes se encontram privados de liberdade, para além dos prazos legalmente previstos. Daniel Kessler de Oliveira sinaliza que, “…, a excepcionalidade da prisão preventiva não pode ruir, não pode deixar de ser uma exigência para a legitimidade de todo um sistema processual, pois tornar a prisão uma regra, representa o vilipêndio à garantias básicas de um Estado Constitucional de Direito e viola, além da presunção de inocência, a própria jurisdicionalidade e processo como um todo”. (https://canalcienciascriminais.com.br/a-prisao-preventiva-e-sua-necessaria-excepcionalidade/). O recurso recorrente a prisão preventiva, assente na lógica de prender para investigar, constitui um “fracasso” do Estado de direito.

Contudo, não tendo sido este o entendimento do Acórdão recorrido, o Tribunal Constitucional considera que se deve dar provimento ao pedido aludido pelos Recorrentes, nos termos da Constituição e da lei, e declarar o acórdão recorrido inconstitucional por violação da Constituição e da lei.

Nesta conformidade, devem os autos ser devolvidos ao Tribunal Supremo, nos termos do n.º2 do artigo 47.º da LPC que reza o seguinte: “Se o Tribunal Constitucional der provimento ao recurso, ainda que só parcialmente, os autos baixam ao Tribunal de onde provieram, a fim de que este reforme a decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade”.

DECIDINDO      

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em: Dar provimento ao recurso e declarar inconstitucional o acórdão recorrido, por violação ao direito à liberdade consagrado no artigo 36.º da CRA.

 Sem custas nos termos do artigo 15.º da LPC.                        

Notifique.  

                                                       

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 10 de Novembro de 2020.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel Dos Santos Teixeira

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata