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ACÓRDÃO N.º 649/2020

 PROCESSO N.º 781-A/2019 

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Victor Dárcio Seabra Pinto, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1360/18, que o condenou na pena de 10 (dez) anos de prisão maior, pela prática, em co-autoria material, do crime de burla por defraudação sob a forma continuada, previsto e punível nos termos do n.º 3 do artigo 451.º e n.º 5 do artigo 421.º, ambos do Código Penal (CP), confirmando no mais a condenação da primeira instância.

O Recorrente foi condenado pela 5.ª Secção da Sala Criminal do Tribunal Provincial do Moxico como autor, em concurso real de infracções, dos crimes de Falsificação de Títulos de Crédito, Falsidade Informática, Abuso de Confiança, Falsificação de Documentos de Natureza Mercantil, Burla por Defraudação e Furto Doméstico, na pena única de 16 (dezasseis) anos de prisão maior, bem como no pagamento solidário de Kz. 75 719 759,00 (Setenta e cinco milhões, setecentos e dezanove mil, setecentos e cinquenta e nove Kwanzas), USD 15 000,00 (Quinze mil Dólares americanos), a título de indemnização por danos materiais e Kz. 10 000 000,00 (Dez milhões de Kwanzas), por danos morais causados ao Banco, que também o condenou a pagar Kz. 100 000,00 (Cem mil Kwanzas), a título de taxa de justiça.

Inconformado dessa decisão, recorreu ao Tribunal Supremo, mas sem êxito.

Do acórdão do Tribunal Supremo recorreu para este Tribunal, onde apresentou as suas alegações, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), referindo essencialmente que:

  1. Foi convocado para prestar declarações sobre os factos que constituíam objecto do processo, tendo prestado informações sobre a sua concreta intervenção em tais factos, na firme convicção de que serviriam apenas para a descoberta da verdade, sem nunca ter sido avisado que tais informações poderiam ser usadas contra si nem que tinha o direito de se manter em silêncio;
  2. Realizada a audiência de instrução contraditória, foi constituído arguido;
  3. As informações que prestou enquanto declarante foram utilizadas e consideradas para a elaboração da decisão condenatória, violando-se assim a garantia da proibição da auto-incriminação, o que configuram uma irregularidade processual que prejudicou o julgamento da causa, gerando nulidade processual;
  4. Por outro lado, o Tribunal ad quem sustentou o seu acórdão condenatório em deduções, não se baseando em prova fundante e bastante, deixando transparecer dúvidas sobre a imputação do crime, pelo que não deveria decidir contra o Recorrente, em homenagem ao princípio in dubio pro reo;
  5. Os dois tribunais da jurisdição comum basearam as suas decisões condenatórias no facto de o Recorrente, na sua qualidade de gerente, não ter tido a diligência de controlar as operações fraudulentas que constituem objecto do processo, quando essa negligência não é qualificada como facto delituoso na ordem jurídica angolana;
  6. Para ser condenado como autor moral era indispensável que os elementos do tipo do crime de que foi acusado e condenado tivessem sido preenchidos, o que não aconteceu. Foi condenado porque, na opinião do Tribunal recorrido, era sua obrigação impedir que os clientes e o banco sofressem prejuízos;
  7. Não havendo qualquer norma penal incriminadora dos actos dos gerentes que não tenham conseguido evitar tais prejuízos, a sua condenação viola o princípio da legalidade penal;
  8. O Tribunal Supremo, absorvendo o acórdão proferido em primeira instância, apesar de ter alegado insuficiência de prova, decidiu precipitadamente, fazendo assim um julgamento injusto e não conforme ao direito;
  9. Com efeito, a interpretação equivocada feita no aresto recorrido, do documento de fls. 751 a 780, que regista os movimentos pessoais dos titulares das contas, não faz prova de que tais movimentos estivessem relacionados com a matéria indiciária;
  10. O princípio da livre apreciação da prova não significa que o juiz actue de forma arbitrária, subjectiva e voluntarista, tendo antes de formar a sua convicção de modo objectivo, motivado, coerente e não contraditório, ao contrário do que sucedeu nos presentes autos;
  11. O Tribunal a quo violou também o seu direito à tutela jurisdicional efectiva, quando decidiu realizar a audiência para a apresentação das alegações orais sem a presença do seu advogado, pelo facto deste não ter sido regularmente notificado para o efeito;
  12. Este mesmo direito foi beliscado quando o mesmo Tribunal forçou o ora Recorrente a assistir a audiência sob a ordem expressa de se manter calado, não podendo intervir em sua defesa, depois de ter negado a nomeação de um defensor oficioso por parte do Tribunal;
  13. Por outro lado, o Tribunal a quo confrontou o Recorrente e os demais arguidos com uma atitude hostil, humilhadora e intimidatória, usando todos os meios susceptíveis de prejudicar a serenidade que era indispensável para que estes exercessem plenamente a sua defesa, culminado com a sua exposição à imprensa, algemado, como se de um criminoso condenado e pessoa repugnante se tratasse;
  14. Tais acções, para além de violarem a presunção de inocência, o direito ao bom nome e à honra, foram idóneas para prejudicar o exercício efectivo à tutela jurisdicional efectiva e o direito à ampla defesa, pelo que deve ser considerado nulo o acto processual da audiência de discussão e julgamento; constituindo igualmente fundamento para a inconstitucionalidade do aresto recorrido, que absorveu e validou a decisão da primeira instância, sem acudir aos argumentos de defesa que alertaram para tais irregularidades;
  15. Foram, igualmente, várias as situações de violação do contraditório e da ampla defesa, nomeadamente aquela em que o Tribunal a quo deixou de ouvir a Senhora Margarete Ribeiro, esposa do Recorrente, cujas declarações seriam indispensáveis para justificar a razão dos depósitos e transferências recebidas pelo Recorrente;
  16. O Recorrente alertou ao Tribunal recorrido, que por sua vez não considerou, o facto de as respostas aos quesitos não conterem a respectiva fundamentação, pelo que aquele foi condenado sem saber qual foi o raciocínio de ponderação e de avaliação de provas que o juiz fez, tendo-se aberto portas ao arbítrio e desprovendo-o da mais básica das garantias processuais, a da fundamentação da decisão condenatória.

Concluiu que a decisão recorrida deve ser considerada inconstitucional por absorver e legitimar:

  1. A violação da proibição da auto-incriminação (artigo 63.º, alínea g) da CRA), considerando que o Recorrente foi interrogado e prestou informações que foram utilizadas para a elaboração da decisão de condenação, sem para tal ter sido advertido previamente da sua garantia constitucional do direito ao silêncio e à não auto-incriminação;
  2. A violação da presunção da inocência (in dubio pro reo – artigo 67.º, n.º 2 da CRA), porquanto absorveu, sem a cuidada análise, a forma e os fundamentos da decisão da primeira instância, baseada em aspectos contraditórios, insuficientes, inconclusivos e susceptíveis de criar dúvidas ao julgador, que aliás são reconhecidas na própria decisão recorrida;
  3. A violação do princípio da legalidade penal (artigo 65.º, n.ºs 2, 3 e 4 da CRA), considerando que a decisão aplicou ao Recorrente pena criminal pelo simples facto de ser gerente e não ter sido mais diligente para evitar prejuízos aos clientes, transferindo para ele a responsabilidade penal que cabia aos demais funcionários, em desrespeito do n.º 1 do artigo 65.º da CRA;
  4. A violação da garantia de um julgamento justo e conforme ao direito (artigo 72.º da CRA), atento ao facto de efectuar interpretações equivocadas da prova, fora dos marcos constitucionais e legais, incorrendo em incoerência lógica e argumentativa sobre os factos que nela descreve;
  5. A violação do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º da CRA), por suportar uma grave violação do acesso à protecção condigna em juízo, pela recusa injustificada de realização de diligências pertinentes para a descoberta da verdade, pela recusa de o Recorrente ser assistido por advogado de sua escolha em todos os actos do processo, por ter sido algemado, filmado e humilhado publicamente com a divulgação não consentida da imagem, capazes de prejudicar a serenidade que precisava para se defender condignamente;
  6. A violação dos direitos ao contraditório e à ampla defesa (artigo 174.º, n.º 2 e artigo 67.º, n.º 1 da CRA), por denegação de junção de documentos indispensáveis à defesa, pela recusa de audição da Senhora Margarete Ribeiro e pela falta de fundamentação aos quesitos que justificaram a sentença condenatória.

Terminou requerendo a este Tribunal que:

  1. Anule todo o processo e as decisões condenatórias proferidas tanto pela primeira instância como pelo Tribunal Supremo, por ofensa da garantia fundamental à não auto-incriminação;
  2. Se assim não se entender, seja declarado inconstitucional o acórdão do Tribunal Supremo, que absorveu e validou a decisão do tribunal de primeira instância, ofendeu a garantia fundamental da presunção da inocência e do in dubio pro reo, violou o princípio da legalidade, a garantia de um julgamento justo e conforme o direito, violou os direitos à tutela jurisdicional efectiva, ao contraditório e à ampla defesa, devendo anular-se e repetir-se a audiência de discussão e julgamento;
  3. Sendo anulada a decisão ou ordenada a repetição de actos processuais, seja também ordenada a soltura do recorrente, nos termos do artigo 40.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP).

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola”.

Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que, tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é Réu no Processo n.º 1360/18, que correu os seus trâmites na 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo pelo que é parte legítima, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

 IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é apreciar se o Acórdão prolactado a fls. 1316 a 1325 pela 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1360/18, violou ou não princípios e direitos constitucionalmente protegidos.

V. APRECIANDO

O pedido de declaração de inconstitucionalidade do aresto recorrido assenta sobre as conclusões que, por força do disposto no artigo 690.º do CPC, aplicável subsidiariamente ao Processo Constitucional ex vi artigo 2.º da LPC, delimitam as questões a conhecer no presente recurso.

Este Tribunal, ao tratar das constitucionalidades suscitadas, no que ao aresto recorrido diz respeito, terá que necessariamente considerar as matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal recorrido, pois foi sobre estas e, apenas, sobre estas, que este tribunal teve oportunidade de se pronunciar.

O Recorrente, para sustentar o seu pedido de inconstitucionalidade, alegou que o acórdão do Tribunal Supremo violou os princípios da proibição da auto-incriminação, da presunção da inocência (in dubio pro reo), da legalidade penal, da garantia de um julgamento justo e conforme, do direito à tutela jurisdicional efectiva, do direito ao contraditório e à ampla defesa, respectivamente, previstos pelos artigos 63.º, alínea g), 67.º n.º 2, 65.º, n.ºs 2, 3 e 4, 72.º, 29.º, 174.º n.º 2 e 67.º n.º 1, todos da CRA.

Vejamos, pois, se assiste razão ao Recorrente.

a) Violação do princípio da proibição da auto-incriminação

A proibição da auto-incriminação encontra consagração constitucional na alínea g) do artigo 63.º da Constituição da República de Angola (CRA), bem como na alínea g) do n.º 3 do artigo 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), que estabelecem o direito de não fazer confissões ou declarações contra si própria.

O Recorrente afirma, nas suas alegações do presente recurso, que esta garantia não foi respeitada durante a fase de instrução preparatória, uma vez que foi convocado enquanto declarante, por força da sua função de gerente, tendo nessa condição prestado informações sobre a sua intervenção nos actos que constituem objecto dos autos, na firme convicção de que serviriam apenas para o esclarecimento da verdade, mas que foram mais tarde utilizados para justificar a sua condenação.

Compulsadas as alegações do ora Recorrente junto do Tribunal Supremo (fls. 1243 e seguintes), verifica-se que, apesar de descrever o facto de em dado momento ter sido ouvido como declarante, e, depois de realizada a audiência de instrução contraditória, ter sido notificado da sua constituição em arguido, com a aplicação de uma medida cautelar (Termo de Identidade e Residência), em nenhum momento alegou que as declarações que prestou naquela primeira condição tinham sido utilizadas mais tarde para fundamentar a sua condenação, sem que tivesse sido previamente informado dessa possibilidade, bem como do direito de ficar calado. Ou seja, o Recorrente não suscitou, em sede de recurso ao Tribunal Supremo, a alegada violação da garantia de não-incriminação, pelo que aquele Tribunal não tinha como se pronunciar sobre este facto, não tendo sido objecto de análise, pelo que não pode agora este Tribunal pronunciar-se sobre a questão ora suscitada.

De qualquer maneira, será sempre importante dizer que, dos autos das declarações do Recorrente prestadas antes da realização da instrução contraditória, constantes de fls. 134 e ss. e 163 e ss., este Tribunal verifica que foi sempre advertido que não era obrigado a pronunciar-se relativamente aos factos que lhe eram imputados. Tal precaução deve ter resultado do facto de o assistente nos autos ter indicado o ora Recorrente como um dos autores da fraude verificada, em aditamento à participação criminal. De qualquer forma, como o próprio Recorrente reconhece nas suas alegações de recurso ao Tribunal Supremo (fls. 1231 a 1234 e 1238), e mesmo nas alegações para este tribunal (fls. 1394 e 1395), a motivação principal para a sua condenação resulta das declarações proferidas por um outro co-réu, e não das suas próprias declarações, proferidas enquanto declarante.

Não procede, pois, a alegação de violação do princípio da não-incriminação.

b) Violação do princípio da presunção da inocência (in dubio pro reo)

Defende o Recorrente que ressalta dos autos que o Tribunal recorrido não baseou a sua decisão em prova fundada e bastante, mas antes em simples deduções e dúvidas que não esconde, destacando alguns extractos do aresto para justificar a sua análise, nomeadamente:

 “Apesar do esforço notório dos Magistrados no sentido de juntarem aos autos provas consistentes que permitiriam a condenação dos Reús…, o certo é que o processo apresenta bastantes lacunas na determinação exacta de quem foi exactamente o responsável do desfalque sofrido pelo Banco.”

“Ao todo foram Kz. 75 719 750,00, atribuídos como sendo desviados por todos os Réus, sem se ter determinado com contas certas, qual é o montante real que cada um se beneficiou neste valor total.”

“Na verdade, não existe nenhum recibo de depósito assinado pelo Gusmão David para a conta do réu Victor Pinto e da sua esposa, não bastando as declarações deste réu”

“…em sede de direito penal, vigora o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade criminal, que no caso não ficou bem esclarecida”

“Não se provou ter havido um concerto entre os Réus para direccionarem os dividendos para as contas bancárias de um ou do outro, sendo a prova que consta dos autos de que os Réus Gusmão David e Valdano Canjinji depositavam dinheiro na conta da natureza dois do réu Victor Pinto e na conta bancária da sua esposa é trazida por aqueles dois réus.”

A presunção de inocência é um princípio jurídico de ordem constitucional previsto no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, nos termos seguintes “Presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.”.

A formulação do n.º 2 do artigo 67.º da CRA vai ao encontro das previsões estatuídas nos instrumentos internacionais sobre direitos fundamentais. A Declaração Universal dos Direitos  Humanos estabelece, no seu artigo 11.º, que “toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”. De igual modo, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos consagra, na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º, que toda pessoa tem o “direito de presunção de inocência, até que a sua culpabilidade seja estabelecida por um tribunal competente”. Já o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos estabelece, no n.º 2 do artigo 14.º, que “qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida”.

O princípio in dubio pro reo, que constitui uma das vertentes que o princípio da presunção de inocência contempla, vincula o julgador à tomada de uma decisão favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos relevantes para a condenação. “Com base neste princípio, compete à parte que acusa demonstrar a culpa do acusado, sem que subsistam dúvidas. Devem ser apresentados os factos que comprovem a culpa e, caso não haja a certeza, o juiz deve abster-se de acusar” (Anotação n.º 2 ao artigo 67.º da CRA, de Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, in Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, página 386). Assim, “Não permitindo a prova produzida nos autos certezas, tendo o juiz dúvidas fundadas e legítimas sobre os factos imputados ao réu, terá de absolvê-lo” (Vasco A. Grandão Ramos, Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, Edição Ler e Escrever, 1993, página 262).

Daqui se retira que a sua preterição signifique que o julgador, apesar do estado de dúvida persistente sobre factos pertinentes, tenha decidido contra o arguido/réu.

No presente recurso, verifica-se que o tribunal a quo, aquando do exercício do seu poder de livre apreciação da prova, concluiu que a prova carreada aos autos sustentava a convicção necessária para a sua condenação.

Porque a livre apreciação da prova estava sujeita ao controlo do tribunal de recurso, que neste caso é o Tribunal Supremo, competia a essa instância analisar se na elaboração do acórdão, o Tribunal a quo demonstrou ter seguido um processo lógico, racional e objectivo de apreciação de prova, que atendeu às regras da experiência comum e do conhecimento científico, para considerar ou deixar de dar por provados os factos até então imputados ao arguido/réu e, dessa forma, decidir pela condenação ou não deste, em conformidade com o princípio in dubio pro reo.

É assim que o Tribunal ad quem, escrutinando o processo decisório evidenciado pela fundamentação e motivação apresentada pelo Tribunal a quo no seu acórdão, chegou à conclusão que os factos imputados ao ora Recorrente preenchiam “…com precisão” o tipo legal do crime de burla por defraudação. No concernente à responsabilidade de cada réu, considerou que, perante os factos apurados e provados, não subsistiam dúvidas que o Recorrente se tratava do autor moral, dada a sua qualidade de gerente, para depois condená-lo como co-autor material, pelo crime de burla por defraudação, na forma continuada, previsto e punível nos termos do artigo 451.º, n.º 3, e 421.º, n.º 5, do Código Penal (CP), sendo a convolação fundamentada com o disposto no artigo 447.º do Código de Processo Penal (CPP).

Este Tribunal não tem dúvidas de que, no aresto recorrido, existe uma clara contradição insanável entre a motivação e a decisão, o que determinaria a sua nulidade, nos termos do disposto na alínea c) do artigo 668.º do CPC.

No entanto, o insanável estado de dúvida sobre a culpabilidade do ora Recorrente, reiterada e claramente demonstrada no aresto recorrido, obrigava o Tribunal Supremo a anular a condenação do então réu, em homenagem ao princípio in dubio pro reo, conformando assim a sua actuação ao disposto no artigo 67.º, n.º 2 da CRA.

Não o tendo feito, o aresto recorrido contende frontalmente com essa garantia fundamental do processo criminal, com dignidade constitucional.

c) Violação do princípio da legalidade penal 

O Recorrente alega que foi condenado pela sua qualidade de gerente, e pelo facto de as validações e os relatórios que enviou para a sede do Banco ocultarem os crimes cometidos. Acresce que, na convicção do Tribunal recorrido, era obrigação do Recorrente evitar que os clientes e o próprio Banco sofressem prejuízos.

Porque não conhece nenhuma norma penal incriminadora de actos de gerentes que não tenham conseguido impedir a produção de prejuízos aos clientes perpetrados por funcionários bancários, nem alguma norma que transfira para os gerentes tal responsabilidade penal, considera que o aresto recorrido violou a previsão dos números 2, 3 e 4 do artigo 65.º da CRA, sendo, portanto, inconstitucional por violar o princípio da legalidade penal.

O princípio-garantia da legalidade penal é de uma das mais relevantes conquistas da humanidade, e uma formulação típica de um Estado democrático de direito, nas suas várias dimensões: “nullum crimen, nulla poena sine lege penali, praevia, stricta et scripta”. Desse princípio-garantia resulta a impossibilidade de alguém ser condenado por um facto que não fosse previamente tido como crime e sem a correspondente previsibilidade da pena.

Analisado o subtítulo “Subsunção Jurídico-Penal” do aresto recorrido, este Tribunal verifica que o Tribunal Supremo considera que o Recorrente, com a sua acção, preencheu com exactidão os elementos constitutivos do tipo legal do crime de burla por defraudação, previsto no n.º 3 do artigo 451.º do CP. Não há, no aresto recorrido, a indicação da condenação do Recorrente por um crime ou a aplicação de uma pena não vigente no nosso sistema penal, ou ainda qualquer aplicação analógica de uma norma incriminadora.

É certo que, como se disse no ponto anterior, a contradição entre a fundamentação e a decisão constantes no acórdão sob sindicância é notória, mas, não cabe a este Tribunal conhecer da eventual nulidade do Acórdão do Tribunal Supremo.

A este tribunal “…compete, em geral, administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional”, pelo que também não pode reexaminar a operação de subsunção de um conjunto de factos concretos na previsão abstracta de uma certa norma legal, como se de um tribunal de recurso da jurisdição comum se tratasse. Ao Tribunal Constitucional não compete apreciar as erróneas aplicações da lei pelos outros tribunais. No geral, atribuir ao Tribunal Constitucional a função de dirimir erros de direito cometidos em alguma instância, seria o mesmo que colocá-lo no topo da jurisdição comum, o que, obviamente, não é admissível.

Perfilhamos, assim, do ensinamento de Carlos Blanco de Morais, nomeadamente, “esta não é uma instância de mérito, ou um Tribunal de super-revisão, não lhe compete a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo…” (In Justiça Constitucional, Tomo II – O Direito do Contencioso Constitucional, 2011, Pág. 619).

d) Violação da garantia de um julgamento justo e conforme ao direito.

O Recorrente, para fundamentar a sua alegação da violação do seu direito a um julgamento justo e conforme ao direito, traz à colação os erros verificados na apreciação da prova e as incongruências na fundamentação e motivação apresentada no aresto recorrido, para dessa forma concluir então pela violação dessa garantia.

Uma vez mais é preciso realçar que não sendo este Tribunal uma terceira instância de recurso, com poderes de reapreciação da prova, não cabe aqui sindicar o aresto recorrido sobre esta matéria.

 e) Violação do direito à tutela jurisdicional efectiva. 

O Recorrente alega que não pôde exercer a sua defesa em uma sessão da audiência de julgamento, marcada para apresentação de alegações orais, uma vez que o seu advogado não foi notificado para comparecer, e foi instruído a manter-se calado durante a sessão, comprometendo, assim, o seu direito à ampla defesa e à tutela jurisdicional efectiva.

Do que é possível observar nos autos do recurso que correu termos na mais alta instância da jurisdição comum, este Tribunal verifica que o Recorrente alegou que o juiz de direito do Tribunal a quo não foi imparcial, ao indeferir o pedido de adiamento da sessão, dada a ausência dos seus advogados, permitindo assim que a outra parte apresentasse as suas alegações orais, e o arguido, ora Recorrente, fosse obrigado a aceitar um defensor oficioso contra a sua vontade. Da acta da audiência de julgamento de fls. 1201 verifica-se que o mandatário do Recorrente apresentou reclamação do facto de não terem sido notificados da sessão da audiência de julgamento, que foi indeferida pelo Tribunal a quo com o fundamento de os advogados terem sido notificados para comparecer na audiência em causa no dia 5 de Dezembro de 2017. Efectivamente, consta da informação de fls. 1132, que terá sido o próprio escrivão de direito do Tribunal a quo quem contactou directamente os mandatários do ora Recorrente, por via telefónica, nesse dia 5 de Dezembro de 2017, pelo facto destes não terem indicado endereço na localidade onde funciona o tribunal, informando-os da marcação da sessão da audiência de julgamento para o dia 13 do mesmo mês. Dos autos consta também que o Recorrente foi pessoalmente notificado para os mesmos efeitos no dia 8 do mesmo mês e ano.

Compulsada a procuração forense conferida pelo Recorrente, constante de fls.794, verifica-se que não há sequer a indicação do endereço profissional dos mandatários forenses, sendo certo que das folhas de papel timbrado utilizado nos autos por estes apenas é possível encontrar a indicação de endereços em Luanda, M’Banza Congo, Uíge e Namibe.

A notificação às partes é feita na pessoa dos seus mandatários forenses se estes tiverem escritório na localidade onde funciona o tribunal ou quando nela tenham escolhido domicílio para as receber, segundo o que dispõe o n.º 1 do artigo 253.º do Código de Processo Civil (CPC). Não tendo, os mandatários forenses do Recorrente, escritório no Luena, ou indicado domicilio para receber notificações, era suposto que a notificação fosse feita directamente ao Recorrente, como estabelece o artigo 255.º do CPC, obrigação que foi cumprida pelo Cartório do tribunal a quo, pelo que esse tribunal andou bem ao decidir realizar a sessão da audiência de julgamento destinada a apresentação das alegações. A alegada diminuição do exercício do direito de defesa do Recorrente não resultou da actuação do tribunal, mas dos seus mandatários forenses.

Descreve, também, que o tribunal de primeira instância realizou as sessões de julgamento, impondo o uso de algemas ao Recorrente e permitindo a captação e exposição da sua imagem na imprensa, como se de um criminoso condenado ou pessoa repugnante se tratasse. Mais ainda, que o Tribunal a quo confrontou o Recorrente e os demais arguidos com uma atitude hostil, humilhadora e intimidatória, durante a realização da audiência de julgamento.

Refere que tais actos, para além de consubstanciarem uma violação da presunção da inocência, ao direito ao bom nome e à honra, foram idóneos para prejudicar o exercício efectivo do direito à tutela jurisdicional e à ampla defesa, pelo que constituem fundamento de inconstitucionalidade da decisão do Tribunal Supremo, que absorveu e validou a decisão da primeira instância, sem acudir aos argumentos de defesa que alertaram para tais inconstitucionalidades.

Para fazer prova da sua alegação, o Recorrente junta uma foto às alegações com uma legenda que tudo indica ser da sua autoria, que refere “Ao entrar na sala de audiência para a leitura da Sentença o Meritíssimo Juiz orientou os Guardas prisionais para algemarem os réus Victor Pinto e Valdano Canjinji…”

Em sede do recurso ao Tribunal Supremo, o Recorrente alegou a “violação do princípio da dignidade da pessoa humana em virtude do juiz “a quo” ter convidado a imprensa e ter permitido a captação de imagens do Réu na audiência de julgamento e os ter mantido algemados durante a leitura da sentença, violando o direito à imagem constitucionalmente consagrada”, e não indicou quaisquer outras atitudes hostis e intimidatórias. Contudo, tal alegação foi apresentada desacompanhada de quaisquer elementos de prova que permitissem identificar a data da ocorrência, o mandante/autor do acto e comprovar a exposição da imagem na imprensa.

O direito à imagem é um direito pessoal integrado no catálogo dos direitos, liberdades e garantias fundamentais e vem expressamente consagrado no artigo 32.º da CRA, do que resulta que, em princípio, nenhum cidadão pode ser fotografado, filmado e ter o seu retrato e imagem divulgados em público, salvo se para tal tiver consentido.

No entanto, com os elementos oferecidos pelo Recorrente ao Tribunal Supremo, não era possível àquele Tribunal fazer qualquer julgamento das inconstitucionalidades ora alegadas, e, por conseguinte, também não é possível para este Tribunal julgar a alegada inconstitucionalidade do aresto recorrido quanto a esta matéria, uma vez que sobre os factos alegados não há quaisquer referências ou elementos de prova, para além de uma foto que o Recorrente apresentou apenas a este Tribunal, e não ao Tribunal Supremo, de cujo aresto suscita a declaração de inconstitucionalidade.

f) Violação dos direitos ao contraditório e à ampla defesa.

O Recorrente alega que foram várias as situações de violação do contraditório e da ampla defesa, destacando o facto de o tribunal de primeira instância não ter ouvido a senhora Margarete Ribeiro, sendo que as suas declarações e a análise dos seus dados bancários seriam fundamentais para o esclarecimento dos factos. O tribunal a quo, apesar de lhe ter sido requerido pelo advogado do Recorrente, indeferiu tais diligências de prova, e o tribunal ad quem, advertido desse facto no recurso comum, não concedeu relevância, do que resulta a clara violação do direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa, nos termos do n.º 2 do artigo 174.º, e n.º 1 do artigo 67.º, ambos da CRA

Sobre a questão da apresentação de prova superveniente em audiência de julgamento, este Tribunal entende que a relevância dos elementos probatórios para a descoberta da verdade material e a consequência da recusa da sua junção aos autos seriam sindicáveis junto da instância de recurso superior a que produziu a decisão recorrida, dentro da jurisdição comum. Decidir sobre esta matéria não cabe à jurisdição constitucional, que não é uma instância superior à mais alta instância da jurisdição comum.

Por último, a questão da falta de motivação e fundamentação dos quesitos por parte do tribunal a quo, facto que, segundo o Recorrente, viola o seu direito à ampla defesa. Para alicerçar essa sua alegação, o Recorrente indica o Acórdão n.º 122/2010 deste Tribunal, que considerou inconstitucional a falta de motivação das respostas aos quesitos, e mencionou que foi condenado sem saber qual foi o raciocínio crítico que norteou a avaliação das provas, ficando por essa razão desprovido da garantia processual de fundamentação da decisão condenatória.

O Tribunal Constitucional, tal como referido na jurisprudência citada pelo Recorrente, constata que a nossa Constituição, ao contrário do que acontece com outras, não contém uma disposição autónoma, que estabeleça a obrigação genérica de fundamentação das decisões dos Tribunais, mas considera que está implícita na conjugação de várias disposições combinadas da Constituição angolana, entre as quais o n.º l do artigo 67.°, segundo a qual "ninguém pode ser detido, preso ou submetido a julgamento senão nos termos da lei, sendo garantido a todos os arguidos ou presos do direito de defesa, de recurso e de patrocínio judiciário", conjugado com o n.º l do artigo 177.°, que dispõe que “Os Tribunais garantem e asseguram a observância da Constituição, das leis e demais disposições normativas vigentes, a protecção dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos e das instituições e decidem sobre a legalidade dos actos administrativos” e do disposto no n.º 6 do artigo 65.° que consagra que "os cidadãos injustamente condenados tem direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos".

A estas disposições, a jurisprudência atrás referida acresce o artigo 14.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que consagra que “Todos são iguais perante os tribunais de justiça. Todas as pessoas têm direito a que a sua causa seja ouvida equitativa e publicamente por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido pela lei, que decidirá quer do bem fundado de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra elas, quer das contestações sobre os seus direitos e obrigações de carácter civil. As audições à porta fechada podem ser determinadas durante a totalidade ou uma parte do processo, seja no interesse dos bons costumes, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, seja quando o interesse da vida privada das partes em causa o exija, seja ainda na medida em que o tribunal o considerar absolutamente necessário, quando, por motivo das circunstâncias particulares do caso, a publicidade prejudicasse os interesses da justiça; todavia qualquer sentença pronunciada em matéria penal ou civil será publicada, salvo se o interesse de menores exigir que se proceda de outra forma ou se o processo respeita a diferendos matrimoniais ou à tutela de crianças.”

Entretanto, na mais recente e moderna legislação ordinária, encontramos o n.º 1 do artigo 17.º, da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro – Dos Princípios e Organização dos Tribunais de Jurisdição Comum, que consagra que “As decisões dos juízes sejam por via de acórdãos, sentenças ou meros despachos, são sempre fundamentados de facto e de direito.

Estas disposições legais reflectem bem a dimensão garantística do direito de defesa do arguido na CRA. A fundamentação e a motivação das decisões judiciais em geral, e em especial das sentenças penais, dado o potencial reflexo nos direitos fundamentais dos visados, são um pressuposto para a sua recorribilidade, pois constituem o objecto do recurso, sobre o qual incidirá toda a actividade de reexame e reapreciação da instância recursória.

No caso concreto, este Tribunal entende que a dispensa de fundamentação das respostas aos quesitos não violou a garantia da ampla defesa e do acesso ao recurso por parte do Recorrente, uma vez que essa fundamentação consta da decisão substantiva global, o acórdão condenatório. Como se pode verificar as alegações de recurso ao Tribunal Supremo, o Recorrente teve a oportunidade de conhecer e censurar a motivação que esteve na base da decisão condenatória proferida pelo tribunal a quo, criticando o exercício de ponderação realizado no processo de apreciação da prova junta aos autos, para dessa forma requerer o reexame da matéria de facto em instância de recurso. Por essa razão, pode-se afirmar que a garantia da ampla defesa e o exercício efectivo do direito ao recurso foram assegurados.

À guisa de conclusão, este Tribunal considera que o acórdão do Tribunal Supremo que constitui objecto do presente recurso viola o principio in dubio pro reo e, consequentemente, a garantia fundamental da presunção da inocência, devendo, por essa razão, os presentes autos ser remetidos ao Tribunal Supremo para efeitos da reforma da decisão, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 47.º da LPC.

No que diz respeito à alteração da situação carcerária do Recorrente, competirá ao tribunal competente decidir, devendo este respeitar o princípio constitucional da limitação no tempo das medidas privativas ou restritivas da liberdade, conforme o previsto no artigo 66.º da CRA. 

DECIDINDO

Nestes Termos,

Tudo visto e ponderado acordam em Plenário, os Juízes do Tribunal Constitucional em: dar provimento ao recurso interposto pelo Recorrente, por ofensa ao princípio da presunção da inocência (in dubio pro reo) e, em consequência, declarar ferido de inconstitucionalidade o acórdão recorrido. 

 Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 24 de Novembro de 2020.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Simão de Sousa Victor (Presidente da Sessão)

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Relatora)