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ACÓRDÃO N.º 650/2020

Processo n.º 809-A/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade 

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

SINFIC – Sistemas de Informação Industrial, S.A., com os demais sinais de identificação nos autos, intentou uma acção de condenação para restituição definitiva da posse, sob a forma de processo especial, na Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial da Huíla, a qual foi julgada improcedente e, em consequência, foi o réu absolvido do pedido.

Desta decisão, interpôs recurso para o Tribunal Supremo, tendo este Egrégio Tribunal decidido negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Vem, então, a Apelante, ora Recorrente, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), inconformado com o douto acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da fundamentação de facto e de direito da decisão tida em primeira instância e confirmada pelo Tribunal Supremo.

A Recorrente apresentou alegações, culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:

“1. O douto acórdão do Tribunal Supremo, datado de 08 de Novembro de 2018, negou provimento ao recurso de apelação interposto do douto saneador-sentença, datado de 15 de Abril de 2014, que absolveu o Réu do pedido e condenou a autora (ora Recorrente) no pedido reconvencional de declaração de nulidade do registo de aquisição (inscrição predial);

  1. O douto saneador-sentença recorrido foi proferido pelo Tribunal Provincial da Huíla, nos autos de acção especial de restituição de posse, com ocorrência de ilegalidades de Direito Civil, Fundiário, Registal, Processual Civil, bem como de inconstitucionalidades;
  2. A sentença de primeira instância não indicou nem o fundamento factual, nem o fundamento legal que serviram de suporte justificativo para a anulação reconvencionalmente pedida do registo predial;
  3. O Tribunal de primeira instância não se pronunciou sobre a questão suscitada pela Reconvinda, ora Recorrente, relativamente à inadmissibilidade legal da procedência da reconvenção de anulação do registo de inscrição predial, no âmbito de um processo especial de restituição de posse em que o Réu-Reconvinte se tenha abstido de formular um pedido de declaração de inexistência ou invalidade do direito de superfície da ora Recorrente;
  4. As referidas ilegalidades comprometem seriamente a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e a garantia da tutela jurisdicional efectiva. Além disso, configuram ofensas ao princípio da propriedade privada e ao princípio da livre iniciativa económica, que podem ser vistos como afloramentos da dita garantia;
  5. Nesta óptica, deve ter-se como ilegal, no campo do Direito Civil e, também, como formal e materialmente inconstitucional a interpretação operada pelo acórdão recorrido do n.º 2 do artigo 1278.º do Código Civil, no sentido de que um arrendatário, por natureza mero detentor em nome alheio pode opor como prevalecente a sua detenção simples, quando exercida por mais de um ano sobre o imóvel que é objecto de direito de superfície, ainda que registado”.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é parte vencida no processo n.º 2124/14, que correu os seus trâmites na 1.ª Secção da Câmara do Cível e Administrativo do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, subsidiariamente, ao caso em apreço, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.

Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC. 

IV. OBJECTO

O presente recurso incide sobre o acórdão da 1.ª Secção da Câmara do Cível e Administrativo do Tribunal Supremo. Ao Tribunal Constitucional caberá analisar se a referida decisão viola algum dispositivo constitucional.

V. APRECIANDO

Apreciadas as alegações e conclusões de recurso apresentadas pelo Recorrente, a questão decidenda é saber se houve violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º), do direito à propriedade privada (artigo 37.º) e do direito à livre iniciativa económica (artigo 38.º), todos da CRA, na aplicação da norma contida no n.º 2 do artigo 1278.º do Código Civil, operada pelo Tribunal a quo, no sentido de que um arrendatário, por natureza mero detentor em nome alheio, pode opor como prevalecente a sua detenção simples, quando exercida por mais de um ano sobre o imóvel que é objecto de direito de superfície, mesmo que tenha sido registado.

O artigo do Código Civil que contém a norma questionada tem o seguinte teor:

Artigo 1278.º

(Manutenção e restituição da posse)

  1. No caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito.
  2. Se a posse não tiver mais de um ano, o possuidor só pode ser mantido ou restituído contra quem não tiver melhor posse.
  3. É melhor posse a que for titulada; na falta de título, a mais antiga; e, se tiverem igual antiguidade, a posse actual.

Para impugnar a constitucionalidade da interpretação da norma acima indicada, o Recorrente invoca a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 29.º), do direito à propriedade privada (art. 37.º) e do direito à livre iniciativa económica (38.º), todos da CRA.

A posse é, na sua essência, uma espécie de senhorio ou domínio de facto sobre uma coisa. Para fixar o respectivo conceito e efeitos é geralmente irrelevante que o possuidor seja simultaneamente titular do direito de fundo (propriedade, usufruto, direito de superfície, etc.) susceptível de a justificar.

A concepção subjectivista da posse, plasmada no ordenamento jurídico nacional, está integrada por dois elementos estruturais – o «corpus» e o «animus possidendi» -, objectivando-se aquele como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto que o último consiste na intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados.

Porém, considerando a dificuldade de demonstrar o «animus» e a consequente posse, em nome próprio, ressalvada a situação em que haja coincidência com a prova do direito aparente, consagrou-se uma presunção de posse, em nome próprio, por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus), razão pela qual, quando seja necessário o corpus e o animus, em caso de dúvida, o exercício daquele faz presumir a existência deste, com base no disposto pelo artigo 1252º, nº 2, do CC.

A posse tem o seu regime previsto nos artigos 1251.º a 1300.º do CC e somente produz em bloco os efeitos que lhe são atribuídos pelos artigos 1268.º a 1300.º se tiver por referência um direito real.

Por sua vez, o direito de superfície é, essencialmente, o direito de manter obra ou plantação própria em terreno alheio, seja à superfície propriamente dita, seja no subsolo, perpétua ou temporariamente (art. 1524.º do CC).

Por obra entende-se qualquer género de construção incorporada no chão (quer configure um edifício, quer não); e plantação vale, para este efeito, como sinónimo de espécie vegetal implantada no solo de forma não esporádica, nem passageira.

Como já se disse, a posse caracteriza-se pelo poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, no caso, o direito de superfície, atento o estipulado pelo artigo 1251º, adquirindo-se, nomeadamente, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior proprietário e por inversão do título de posse, como resulta do preceituado pelas alíneas a), b) e d) do artigo 1263º, ambos do CC.

O direito de superfície desdobra-se numa dupla face, o direito do superficiário, que incide sobre a obra e o do fundeiro sobre o solo. E, é apenas relativamente à obra ou plantação que existirá a propriedade superficiária, podendo estar sujeita ao crivo de inconstitucionalidade por lesão do direito de propriedade.

Entre os artigos 1278.º a 1284.º, o Código Civil acabou por tratar conjuntamente a acção de manutenção e a acção de restituição da posse.

O n.º 1 do artigo 1278.º prevê a tutela provisória da posse. A protecção conferida ao possuidor traduz-se numa tutela precária ou transitória, destinada, unicamente, a manter determinada situação de facto, enquanto não se provar quem é o verdadeiro titular do direito real correspondente, razão pela qual a restituição da posse cessa, como decorre deste normativo, se o possuidor for convencido na questão da titularidade do direito, deixando, então, a tutela possessória de revestir qualquer justificação.

Por seu turno, a norma contida no n.º 2 do artigo 1278.º determina que à pessoa que retém ou frui uma coisa, basta provar a posse, a qual, se for uma posse de ano e dia, ou seja, uma posse superior a um ano, nada mais se impõe que seja averiguado, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 1278º, do CC, não sendo, consequentemente, a contraparte admitida sequer a provar que tem melhor posse.

Foi este, essencialmente, o entendimento tido pelo aresto impugnado. Cumpre frisar que em nenhuma parte da fundamentação do acórdão, retira-se a interpretação tida por inconstitucional que o Recorrente aqui nos apresenta.

Entendeu o Tribunal “a quo” que a reconvenção deduzida pelo demandado é procedente, “por existir nos autos provas de registo de propriedade do Réu, anterior ao contrato de concessão de direito de superfície da Autora”, sendo, no caso, a posse do Réu mais antiga, documentada desde o ano de 1998 (conforme se depreende, em específico, a fls. 242 a 245 dos autos).

Ficou provado também que, apesar da existência do contrato de concessão para a constituição do direito de superfície, passado pela Administração Municipal do Lubango, aos 13 de Abril de 2009 (anulado e declarado sem efeito o trespasse à sociedade comercial SINFIC, pela Direcção Provincial da Agricultura e do Desenvolvimento Rural e das Pescas, aos 7 de Abril de 2011 – fls. 44 dos autos), a Recorrente nunca teve posse efectiva do referido terreno agrícola, não tendo sido verificado o “corpus” (fls. 245 dos autos).

Nos autos de restituição provisória da posse, o Tribunal a quo, decidiu, seguindo o disposto no n.º 1 do artigo 1278.º, atribuir a posse ao titular do direito mais antigo, referenciando a regra “prior in tempore potior in iure” que, por sinal, exerce efectivamente a posse por meio de título de aquisição válido.

Isto porque, a tutela da aparência de titularidade não se confunde, assim, nem se pode confundir, com a protecção da realidade. Protege-se a posse enquanto o litígio não se centrar e, portanto, enquanto prova não for feita sobre a pertença do direito de fundo.

No entanto, o disposto no artigo 1278.º do CC e a sua consequente aplicação no caso concreto em nada viola o princípio da tutela jurisdicional efectiva, o direito à propriedade privada e o direito à livre iniciativa económica.

Analisando:

A) Sobre a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva

 O Recorrente alega a inadmissibilidade processual do pedido do Réu-reconvinte de reconhecimento da titularidade do direito no âmbito de uma acção de restituição da posse. Por isso, pronunciando-se positivamente sobre o pedido reconvencional do réu, o Tribunal a quo colocou em causa o princípio da tutela jurisdicional efectiva e, em consequência violou o direito à propriedade privada e o direito à livre iniciativa económica.

O Princípio da tutela jurisdicional efectiva garante a todos o acesso aos tribunais e às formas alternativas de resolução de litígios, e tem como um dos seus desígnios o direito a um processo equitativo.

O nº 4 do artigo 29º, da Constituição da República de Angola, estabelece como direito fundamental que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão (…) mediante processo equitativo”.

O conceito de processo equitativo é um conceito amplo, susceptível de diversificada concretização, cuja densificação decorre, sobretudo, da jurisprudência sobre a matéria.

É um princípio fundamental de qualquer sociedade democrática, profundamente imbricado com o Estado de Direito (rule of law), não havendo fundamento para qualquer interpretação restritiva e que visa, acima de tudo, defendendo os interesses das partes e os próprios da administração da justiça, que os litigantes possam apresentar o seu caso ao tribunal de uma forma efectiva; tem como significado básico que as partes na causa têm o direito de apresentar todas as observações que entendam relevantes para a apreciação do pleito, as quais devem ser adequadamente analisadas pelo tribunal, que tem o dever de efectuar um exame criterioso e diligente das pretensões, argumentos e provas apresentados pelas partes e que a justeza (fairness) da administração da justiça, além de substantiva, se mostre aparente (justice must not only be done, it must also be seen to be done).

Entre as várias concretizações do processo equitativo resulta, desde logo, pela própria designação (aqui na sua expressão em língua inglesa: fair hearing), que a resolução do pleito só possa ser levada a cabo com estrito cumprimento dos pressupostos substantivos e adjectivos de cada expediente processual.

Na legislação estrangeira fundada na tradição romana, a prova, nas acções possessórias, circunscreve-se à demonstração da existência de posse (na lei italiana basta a notorietà del fatto) e o contraditório limita-se também a esse aspecto (na lei francesa nem sequer se admite o demandado a agir au fond qu´après avoir mis fin au trouble).

Entre nós não é uso excluir totalmente o petitório do âmbito possessório, pois ambas as questões se podem colocar, em simultâneo, no âmbito da tutela possessória. Solução que é inculcada pelo disposto na parte final do n.º 1 do artigo 1278.º do CC.

O interdito possessório é “inter dictum”, é o dito entretanto, pelo que tem um carácter precário ou transitório (o que, de resto, levou muitos a qualificar a posse que através dele se protege como um direito real provisório); a questão de fundo – a titularidade do direito subjacente à posse-, em princípio, não se põe em discussão. A acção permanecerá inteiramente no âmbito possessório se o réu não reclamar a titularidade do direito de fundo sobre a coisa objecto de litígio e o seu consequente reconhecimento.

Além do mais, é admissível o pedido reconvencional quando o mesmo tenha como fundamento os factos em que o Autor fundamenta, igualmente, o seu pedido. Tendo o Autor fundamentado o seu pedido no contrato de concessão de direito de superfície, ao Réu é, assim, legítimo pedir ao Tribunal a declaração de nulidade do referido contrato (al. a) do n.º 2 do artigo 274.º do CPC).

Por este motivo, a admissão da reconvenção pelo Tribunal “a quo” não viola o princípio do processo equitativo, enquanto corolário do princípio da tutela jurisdicional efectiva.

B) Sobre a violação do direito à propriedade privada

Consequentemente, a decisão de um tribunal, devidamente fundamentada, sobre a titularidade de uma coisa, tendo em causa a situação material controvertida, em nada ofende o direito de propriedade privada.

A Constituição consagra a garantia da propriedade privada no n.º 1 do artigo 37.º, ao estabelecer que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei”.

A norma estabelece uma dupla garantia da propriedade privada: uma garantia institucional, que se traduz na protecção da propriedade como instituto jurídico; e uma garantia individual que protege, como direito fundamental, posições jurídicas, sobre bens de valor patrimonial.

A protecção da propriedade, enquanto direito fundamental, pressupõe que a existência destes bens e direitos em face do poder do Estado, tenham sido adquiridos em conformidade com as normas vigentes no momento relevante.

Havendo título de propriedade anterior ao título apresentado pelo Recorrente, não podia, pois, o Tribunal “a quo” decidir pela procedência do pedido apresentado pelo ora Recorrente.

C) Sobre a violação do direito à livre iniciativa económica

Assim, o reconhecimento da titularidade do direito de fundo em questão à contraparte, com base em decisão devidamente fundamentada, não lesa o direito de propriedade do Recorrente, pois, nunca dispôs de título de aquisição válido e, pelos mesmos fundamentos, também não será de acolher a violação do direito à livre iniciativa económica.

A liberdade económica privada, presente no n.º 1 do artigo 38.º da CRA, implica o direito de produzir, comercializar, prover e fornecer, de forma onerosa, bens e serviços, sem interferências externas, incluindo a do Estado.

Esta liberdade não foi colocada em causa no aresto que aqui se impugna, pelo contrário, foi reposta a legalidade, declarando-se nulo o contrato celebrado pela Autora.

Diante do enunciado e, por não se encontrar no acórdão impugnado as inconstitucionalidades imputadas pelo Recorrente, deve o presente recurso ser julgado improcedente. 

DECIDINDO                    

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

Tribunal Constitucional, em Luanda, 24 de Novembro de 2020 

 OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Simão de Sousa Victor (Presidente da Sessão) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Victória Manuel Izata