ACÓRDÃO N.º 651/2020
Processo nº 707-C/2019
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Victor Morais Lemos, José Filipe e Outros, melhor identificados nos autos, interpuseram o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 47/09, que revogou a decisão do Tribunal a quo, isentando, assim, o Porto de Luanda da responsabilidade de garantir o acesso dos trabalhadores em questão ao Fundo de Pensões do Porto de Luanda.
Inconformados com o referido acórdão do Tribunal Supremo, os Recorrentes alegaram, essencialmente, que:
Os Recorrentes concluíram alegando que deve o Acórdão proferido pela 1ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo ser revogado, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e do direito a um julgamento justo.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “Sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
A legitimidade para o recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, à pessoa que de harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC.
Igualmente, tem legitimidade para recorrer aquele que, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, nos termos do n.º 1, do artigo 680.º do Código de Processo Civil (CPC), aqui aplicado ex vi do artigo 2.º da LPC, que estabelece a aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Civil aos processos de natureza jurídico-constitucionais.
No caso concreto, os aqui Recorrentes, enquanto partes no Processo n.º 47/2009, que não viram a sua pretensão atendida, têm certamente legitimidade para recorrer.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto analisar se o Acórdão da 1ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, proferido aos 23 de Novembro de 2016, no âmbito do Processo n.º 47/09, violou os princípios constitucionais da legalidade e do direito a um julgamento justo e conforme à lei, alegados pelos Recorrentes.
V. APRECIANDO
É submetida à apreciação do Tribunal Constitucional o Acórdão da 1ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo proferido no Processo n.º 47/09, que revogou a decisão do Tribunal a quo e absolveu a Requerida de todos os pedidos.
Os Recorrentes, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, reivindicam a intervenção do Tribunal Constitucional, por entenderem que o acórdão recorrido violou princípios constitucionais, bem como direitos que a Constituição da República de Angola lhes confere, pelo que a análise deste Tribunal deve incidir sobre as seguintes questões:
1- Se o Porto de Luanda é parte legítima na acção principal, podendo ser demandado a propósito de questões relacionadas com os trabalhadores que eram afectos à sua instituição;
2- Se os funcionários abrangidos pelo processo de cessão têm ou não direito ao Fundo de Pensões do Porto de Luanda.
Vejamos:
A) DA ILEGITIMIDADE DO PORTO DE LUANDA
Resulta dos autos que o Porto de Luanda foi objecto de um profundo processo de restruturação, sendo que no âmbito desse processo foram celebrados contratos de concessão, em que um desses contratos ditou a fusão dos terminais de contentores n.º 1 e de carga geral n.º 2 num único terminal denominado Terminal Polivalente.
Nesse Contrato de Concessão Portuária, assinado aos 17 de Janeiro de 2005, a Empresa Portuária de Luanda, E.P., (Porto de Luanda) cedeu o direito de exploração do Terminal Polivalente à Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas, U.E.E (Unicargas), sendo que, nos termos desse contrato de concessão, a Unicargas deveria absorver todo o pessoal activo do Porto de Luanda que exerciam funções no terminal Polivalente.
Essa mudança de empregador vem prevista na Lei Geral de Trabalho, nos artigos 71.º e 72.º, da Lei n.º 2/00, de 11 de Fevereiro, Lei Geral de Trabalho (LGT) em vigor à data dos factos.
Ora, resulta da conjugação dos artigos mencionados que, havendo transmissão da posição de empregador, o novo empregador fica sub-rogado nos direitos e obrigações do antigo empregador. O objectivo do legislador foi o de garantir que a situação jurídico-laboral dos trabalhadores não fosse afectada pela mudança de empregador, daí que o novo empregador assumiria todos os direitos e obrigações que anteriormente pertenciam ao antigo empregador.
No entanto, e, prevendo o legislador que alguns direitos e obrigações pudessem ser demasiado onerosos para o novo empregador, a Lei Geral de Trabalho, no seu artigo 73.º prevê uma co-responsabilidade entre o antigo e o novo empregador, estabelecendo no n.º 3 que o anterior empregador, mantém-se como o responsável pelos créditos não reclamados e os vencidos em momento anterior aos 12 meses que antecederam à mudança de empregador.
Posto isto, conclui-se que o Porto de Luanda, não está totalmente eximido, pelo que se mantém responsável, perante os seus ex-funcionários sobre eventuais créditos não reclamados e ou vencidos até um ano antes da concretização da mudança de empregador.
No caso concreto, os Recorrentes reivindicam direitos adquiridos no período de 15 de Junho de 1992 a 31 de Julho de 2005, uma vez que o Contrato de Constituição do Fundo de Pensões do Porto de Luanda, no n.º 1 da Cláusula 3ª prevê um mínimo de 10 anos de efectivo serviço prestado, como requisito para beneficiar do Fundo de Pensões do Porto de Luanda.
Por conseguinte, os créditos reclamados são legítimos e, nos termos do artigo 73.º da anterior LGT, pode o Porto de Luanda ser demandado, sendo, por isso, parte legítima na acção principal, uma vez que, na qualidade de titular do fundo de pensões, tem certamente interesse em contradizer.
B) DO DIREITO AO FUNDO DE PENSÕES
Um fundo de pensões é um património autónomo que se destina exclusivamente ao financiamento de um ou mais planos de pensões.
Os fundos de pensões podem ser abertos ou fechados.
São fechados os que dizem respeito apenas a um associado, ou existindo vários associados, exista um vínculo empresarial associativo, profissional ou social entre os mesmos.
O Decreto n.º 25/98, de 7 de Agosto, aprova e regulamenta a criação e funcionamento dos Fundos de Pensões, como complemento do sistema de segurança social.
Trata-se, assim, de planos de pensões, que mais não são do que programas que definem as condições em que se constitui o direito ao recebimento de uma pensão a título de reforma por velhice, invalidez ou sobrevivência.
A constituição de um fundo de pensões está sujeita, a título prévio, à autorização do Ministro das Finanças.
No presente caso, temos um fundo fechado, ou seja, apenas adstrito aos trabalhadores do Porto de Luanda, não contributivo, sendo o Porto de Luanda o único financiador, nos termos do n.º 2 do artigo 2.º, do ANEXO I ao contrato de Constituição do Fundo de Pensões do Porto de Luanda, aprovado pelo Despacho n.º 125/04, de 15 de Junho, do então Ministro das Finanças.
Nos termos da cláusula 2.ª do Despacho n.º 125/04, o fundo foi constituído como plano de pagamento de prestações complementares de reforma por velhice, reforma antecipada e subsídio por morte.
Sendo que, a cláusula 3ª dispõe que são participantes do fundo todos os trabalhadores da Associada que, à data da constituição do mesmo, tenham uma relação jurídica de emprego ou que, até à extinção deste, venham a encontrar-se nessa situação, com um mínimo de 10 anos de serviço contínuo efectivamente prestado.
Na verdade, houve uma mudança de empregador, no entanto, à data da concretização de tal mudança, já os trabalhadores abrangidos pelo Contrato de concessão haviam completado mais de 10 anos de serviço efectivo como trabalhadores do Porto de Luanda, estando, assim, claramente habilitados a beneficiar do Fundo de Pensões do Porto de Luanda.
Não pode tal crédito ser exigido ao novo empregador, única e simplesmente por força do regime previsto nos artigos 71.º e 72.º, da Lei n.º 02/00, de 11 de Fevereiro, Lei Geral de Trabalho (LGT) em vigor à data dos factos, quando o artigo 73.º da anterior LGT, particularmente o n.º3, vem especificamente para acautelar situações desta natureza, já que é claro que a UNICARGAS, enquanto novo empregador, não poderia assumir tal encargo, porque, em primeiro lugar, não tem autonomia para tal, uma vez que, como referido, a criação de um fundo de pensões carece de autorização prévia do Ministro das Finanças.
Assim, conclui este Tribunal que os Recorrentes são beneficiários efectivos do Fundo de Pensões do Porto de Luanda.
No entanto, e porque o Fundo assim o define, uma vez preenchidos os requisitos para beneficiar do fundo, a saber, um mínimo de 10 anos de serviço efectivo prestado, é necessário que os beneficiários estejam em situação de reforma por velhice, reforma antecipada ou em caso de morte.
Logo, não está em causa uma situação passível do pagamento de uma indemnização, mas tão somente de reconhecimento do direito ao fundo, de forma que, à medida que cada um dos trabalhadores esteja em situação de reforma, reforma antecipada ou em caso de morte, possa receber o complemento respectivo, o que aqui propugnamos.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional conclui que efectivamente o acórdão recorrido violou o princípio da legalidade, assim como o direito dos Recorrentes a um julgamento justo e conforme à lei, na medida em que foi feita uma interpretação dos artigos 71.º, 72.º e 73.º, da Lei n.º 2/00, de 11 de Fevereiro, Lei Geral de Trabalho, LGT, em vigor à data dos factos, contrária ao espírito e letra da lei, extravertendo o instituto da mudança de empregador, deixando desamparada a parte mais vulnerável da relação laboral, mormente os trabalhadores.
DECIDINDO
Nestes Termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os juízes do tribunal constitucional: EM DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E DO DIREITO A UM JULGAMENTO JUSTO E CONFORME À LEI.
Sem Custas (nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 25 de Novembro de 2020
Os Juízes Conselheiros
Dr.ª Guilhermina Prata (Vice-Presidente) – Relatora
Dr. Carlos Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Teixeira
Dr.ª Josefa Antónia dos Santos Neto
Dr.ª Maria da Conceição Almeida Sango
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr.ª Victória Manuel da Silva Izata