ACÓRDÃO N.º 652/2020
PROCESSO N.º 746-B/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Miguel João Morais, melhor identificado nos autos, interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho datado de 20 de Abril de 2019, proferido pelo Plenário do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 460/16.
O ora Recorrente após a aplicação da medida disciplinar de demissão da função pública que lhe foi aplicada pelo Ministro da Educação à data dos factos, por este gozar de foro especial, interpôs recurso contencioso de impugnação de acto administrativo junto da 3ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, contra o referido Ministro, que julgou procedente a excepção de caducidade do recurso e absolveu o então Recorrido Ministro da Educação do pedido.
Não se conformando com a decisão supra referida, o Recorrente interpôs novo recurso para o Plenário do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 460/16, que não admitiu o seu recurso contencioso de impugnação de acto administrativo e proferiu o Despacho que o Recorrente ora vem recorrer no âmbito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. Notificado para apresentar alegações de recurso, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), o Recorrente referiu, essencialmente o seguinte:
A interposição do recurso do Despacho do Tribunal Supremo que julgou procedente a excepção de caducidade dos autos de recurso contencioso de impugnação de acto administrativo sobre a sua demissão e, em consequência, a absolvição do Recorrido do pedido, a julgar pelas datas em que o Recorrente fez pessoalmente, não podia ter sido considerado como feita fora do prazo, na medida em que:
Termina pedindo que seja apreciado o Acórdão proferido aos 11 de Outubro de 2017 pela 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Proc. N.º 460/16 e, em consequência, seja revogada a decisão de absolvição do Recorrido do pedido.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da LPC, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o requisito do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, nos termos do parágrafo único do artigo 49.º da LPC.
Deste modo, tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
III. LEGITIMIDADE
Regra geral, a legitimidade processual é aferida por uma relação da parte com o objecto da acção. Essa relação é estabelecida pelo interesse da parte em demandar ou em contradizer, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.
Ainda nos termos desse mesmo Código, os recursos só podem ser interpostos, por quem é parte principal na causa e que tenha ficado vencido (cfr. o n.º 1 do artigo 680.º do CPC.
O Recorrente, não tendo visto a sua pretensão atendida no Tribunal Supremo, esgotada a cadeia recursória, tem legitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é verificar a constitucionalidade do Despacho do Plenário do Tribunal Supremo, datado de 20 de Abril de 2019, que indeferiu o recurso do Acórdão da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do referido Tribunal, no âmbito do Proc. N.º 460/16, e negou provimento ao pedido do Recorrente.
V. APRECIANDO
O Recorrente vem requerer a este Tribunal que verifique a constitucionalidade do Despacho, proferido pelo Plenário do Tribunal Supremo, no âmbito do processo de impugnação do acto administrativo que culminou com a demissão do aqui Recorrente.
O referido Despacho dá a conhecer que o ora Recorrente havia “sido notificado do Acórdão de fls. 40 a 45 que julgou procedente a excepção de caducidade do recurso e, em consequência, absolveu o Recorrido da instância” pelo que interpôs recurso para o Plenário do Tribunal Supremo (fls. 51 a 57).
Analisando a decisão vertida no referido Despacho, urge apreciar se o recurso deveria ou não, ser admitido.
Vejamos:
Revisitemos o referido Despacho proferido pelo Plenário do Tribunal Supremo que refere:
«Estabelece o artigo 80.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril: “Das decisões jurisdicionais em matéria de contencioso administrativo cabe recurso: dos acórdãos proferidos pela Câmara do Cível e Administrativo funcionando como Tribunal de primeira instância, para o Plenário do Tribunal Supremo”.
De acordo com o artigo 86.º, n.º 2, alínea b) do Decreto-lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril: “o recurso não é admitido quando a decisão é irrecorrível, tenha sido interposta fora do prazo ou por quem não tenha legitimidade”.
Ora, analisando os autos, se constata que o Recorrente:
Senão vejamos,
“Estabelece o n.º 1 do artigo 85.º do Decreto-lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril, sob a epígrafe (prazo de interposição de recurso), que “o prazo para a interposição de recurso é de oito dias, a contar da data da notificação da decisão de que se recorre…).
Assim sendo, se o acórdão recorrido foi proferido a 11 de Outubro de 2017, (fls. 40 a 45); a decisão proferida foi notificada ao Recorrente a 22 de Agosto de 2018, (fls. 49); e o Recorrente apenas interpôs recurso a 21 de Setembro de 2018, claramente fê-lo fora do prazo de oito dias previstos por lei. Noutra vertente, na data em que foi interposto o recurso, 21.09.18, a decisão já havia transitado em julgado a 31.08.18 (vide fls. 51). Pelo que não restam dúvidas de que o Recorrente interpôs o recurso, passados mais de 21 dias do trânsito em julgado da decisão.
Nestes termos, o presente Recurso não pode ser admitido, por ter sido interposto fora do prazo, nos termos das disposições combinadas do n.º 1 do artigo 85.º e do n.º 2 do artigo 86.º , ambos do decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril.»
No que concerne a prazos expirados, como antecedente jurisprudencial, referenciamos o Acórdão n.º 523/2018, de 18 de Dezembro, exarado por este Tribunal no Processo n.º 526-C/2016.
Tratou-se de uma questão de natureza laboral em que o Tribunal Constitucional veio dar provimento ao pedido do Requerente, de quem não conhecera o recurso por extemporaneidade, o que originou a reforma da decisão do Tribunal Supremo.
Mas não se afastou o dever que os tribunais têm, de obedecer às normas atinentes à contagem do tempo, para efeitos de assegurar a certeza e a segurança jurídica.
Pelo contrário, reconheceu-se que os tribunais a isso estão obrigados, pelo que, naquele caso específico, o que se verificou de incorrecto foi a base da contagem do tempo, pois, aplicou-se, erradamente, uma determinada norma da Lei Geral de Trabalho para a contagem do tempo.
Enfatiza-se que os presentes autos resultam de um recurso contencioso de impugnação de acto administrativo, sobre a demissão do Recorrente.
De acordo com os preceitos ditados pelo legislador ordinário, o contencioso administrativo angolano é o guardião da legalidade administrativa, ainda que também deva ser o defensor dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, segundo o disposto nos artigos 10.º a 12.º da Lei n.º 2/94, de 14 de Janeiro, Lei da Impugnação dos Actos Administrativos (LIAA) e nos artigos 24.º, n.º 2 do Decreto Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril, Regulamento do Processo Contencioso Administrativo.
Entretanto, o n.º 2 do artigo 2.º da Constituição da República de Angola (CRA), estipula que cabe à “República de Angola promover e defender os direitos e liberdades fundamentais do homem, quer como indivíduo quer como membro de grupos sociais organizados e assegurar o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo, executivo e judicial, seus órgãos e instituições, bem como por todas as pessoas singulares e colectivas.”
Na verdade, no cenário jurídico-administrativo angolano, os particulares dispõem de dois tipos de garantias, nomeadamente, as graciosas, isto é, garantias administrativas ou procedimentais e as contenciosas, ou seja, jurisdicionais.
Todavia, a CRA acolhe o direito dos particulares a obterem, junto dos tribunais, a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, por imperativo do artigo 29.º, que consagra o direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, e do artigo 174.º.
Outrossim, no caso vertente, em causa está o direito ao trabalho consagrado constitucionalmente, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da CRA, segundo o qual “o despedimento sem justa causa é ilegal, constituindo-se a entidade empregadora no dever de justa indemnização ao trabalhador despedido, nos termos da lei.”
Efectivamente, como em qualquer complexo normativo, nas normas do processo contencioso administrativo angolano existe um conjunto de princípios e pressupostos referentes à disciplina do exercício da acção, jurisdição e ao funcionamento do respectivo processo.
Nesta senda, vale dizer que, os pressupostos processuais do recurso, são as exigências legais de interposição do recurso. Na sua ausência, o tribunal recusa conhecer o fundo da causa e emitir uma decisão de mérito. (ISABEL CELESTE M. FONSECA e OSVALDO DA GAMA AFONSO, in Direito Processual Administrativo Angolano, Noções Fundamentais, Edições Almedina, 2013, pág. 75)
Contudo, só os actos administrativos definitivos e executórios, feridos de ilegalidade ou lesivos de direitos adquiridos, podem ser impugnados judicialmente, no que respeita à tempestividade ou oportunidade do recurso, sendo certo que este é um pressuposto que diz respeito aos prazos.
Nos termos do artigo 13.º, n.º 2, da LIAA, importa lembrar que o recurso contencioso (na verdade, o desencadeamento inicial da acção jurisdicional) pode ser proposto no prazo de 60 dias, a partir da data da notificação do mesmo, artigo 14.º da LIAA. Este prazo diz respeito aos actos anuláveis. Quanto aos actos nulos, estes podem ser impugnados a todo tempo. (ISABEL CELESTE M. FONSECA e OSVALDO DA GAMA AFONSO, in Direito Processual Administrativo Angolano, Noções Fundamentais, Edições Almedina, 2013, pág. 77).
Segundo os mesmos autores, na obra citada, pág. 77, perante um recurso interposto junto do tribunal, este começa por analisar, se é o tribunal competente, a questão da legitimidade, a recorribilidade e, também, a questão da oportunidade do recurso, isto é, se o mesmo é tempestivo ou não.
O até aqui exposto, foi resolvido pelo Tribunal Supremo em 1.ª instância, em virtude da qualidade do então Requerido, que desempenhava as funções de Ministro da Educação, à data.
Com efeito, o Recorrente foi notificado do Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do referido Tribunal a 22 de Agosto de 2018 (conforme fls. 49 dos autos), e interpôs recurso a 21 de Setembro de 2018 (fls. 51 dos autos), ou seja, fora do prazo de 08 dias previstos por lei, conforme vertido no Despacho ora analisado sub judice.
Nesta conformidade, e de acordo com o disposto no artigo 85.º, n.º 1 do Regulamento do Processo Contencioso Administrativo (DL n.º 4-A/96, de 5 de Abril) “o prazo para interposição do recurso é de oito dias, a contar da data da notificação da decisão de que se recorre ou da data da sua publicação, em caso de revelia”.
Ademais, estipula o n.º 2, do artigo 86.º do mesmo diploma legal que “O recurso não é admitido quando a decisão é irrecorrível, tenha sido interposta fora do prazo ou por quem não tem legitimidade”.
Todavia, as normas sobre o prazo para interposição de recurso no contencioso administrativo, estão em harmonia com as normas do CPC aplicável em Angola, mais concretamente, no n.º 1 do artigo 685.º, isto é, a interposição dos recursos é de oito dias. Só assim se pode assegurar o cumprimento do princípio da certeza e a segurança jurídica, em cumprimento do princípio fundamental da supremacia da Constituição e do princípio da legalidade, conforme previsto no n.º 2 do artigo 6.º da CRA.
Por conseguinte, e à luz de tudo acima expendido, o Tribunal Constitucional considera que não se verifica qualquer violação a princípios constitucionais, como alega o Recorrente, e o Despacho do Tribunal Supremo está em conformidade com a Constituição da República de Angola e a lei.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 25 de Novembro de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr.ª Guilhermina Prata (Vice-Presidente) – Relatora
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva (Declarou-se impedido).
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr.ª Josefa Antónia dos Santos Neto
Dr.ª Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr.ª Victória Manuel da Silva Izata