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ACÓRDÃO Nº 653 /2020

Processo nº 725-A/2019

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade) 

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Miguel Cuca e Outros, interpuseram recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1ª Seção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 10/11, que confirmou a decisão do Tribunal a quo.

Notificados para apresentar alegações de recurso nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional – LPC, os Recorrentes não apresentaram as referidas alegações.

Não obstante isso, os Recorrentes, no seu requerimento de interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, referem que o acórdão recorrido, “feriu de morte” (sic):

  1. O princípio da legalidade previsto no n.º 2 do artigo 174.º e n.º 1 do artigo 177.º da Constituição da República de Angola (CRA);
  2. O princípio da dignidade da pessoa humana, nos termos dos artigos 2.º, 30.º e 31.º, todos da CRA;
  3. O princípio da igualdade previsto no n.º 1 do artigo 23.º da CRA;
  4. O princípio da estabilidade do emprego previsto no n.º 4 do artigo 76.º da CRA.

Os Recorrentes interpuseram o presente recurso por não se conformarem com o acórdão recorrido.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional – LPC, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE 

A legitimidade para o recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, à pessoa que, de harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC.

Igualmente, tem legitimidade para recorrer aquele que, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, nos termos do n.º 1, do artigo 680.º do Código de Processo Civil (CPC), aqui aplicado ex vi do artigo 2.º da LPC, que estabelece a aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Civil aos processos de natureza jurídico-constitucionais.

No caso concreto, os ora Recorrentes, enquanto partes no Processo n.º 10/11, que não viram a sua pretensão atendida, têm legitimidade para recorrer.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem como objecto apreciar a constitucionalidade do Acórdão da 1ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 10/11, que confirmou a decisão do Tribunal a quo.

V. APRECIANDO

 Questão prévia – ausência de alegações

Conforme referido no Relatório do presente acórdão, os Recorrentes foram devidamente notificados para apresentar alegações de recurso e findo o prazo os mesmos não juntaram alegações, o que implicaria a deserção do recurso, nos termos do artigo 690.º do CPC.

No entanto, o Tribunal Constitucional, tem vindo a traçar a sua jurisprudência sobre esta matéria, conforme os Acórdãos n.ºs 491/2018, 364/2015, 358/2015 e 355/2015, defendendo que sempre que se consiga extrair do requerimento de interposição de recurso a pretensão do Recorrente, bem como os princípios e direitos constitucionais cuja violação pretenda que o Tribunal Constitucional aprecie, o processo deve ser admitido, em homenagem aos princípios da adequação funcional e da economia do processo constitucional.

No requerimento de interposição de recurso a fls. 266 dos autos consta a referência, na perspectiva dos Recorrentes, dos princípios e direitos constitucionais violados em relação ao presente recurso.

Os Recorrentes reivindicam a intervenção analítica e apreciativa deste Tribunal, por entenderem que o Acórdão recorrido violou o princípio da legalidade previsto no n.º 2 do artigo 174.º e no n.º 1 do artigo 177.º; o princípio da dignidade da pessoa humana, nos termos dos artigos 2.º, 30.º e 31.º; o princípio da igualdade previsto no n.º 1 do artigo 23.º; e o princípio da estabilidade do emprego previsto no n.º 4 do artigo 76.º, todos da CRA.

Destarte, no presente recurso e do ponto de vista do requerimento de interposição de recurso dos Recorrentes passaremos a apreciar se foram ofendidos princípios e violados direitos constitucionalmente tutelados.

1. Princípio da legalidade

Este princípio obriga a uma actuação exclusivamente pautada por critérios de natureza legal. Os juízes devem agir dentro da lei e qualquer acção por parte deles, somente será juridicamente válida se nascer da lei em sentido formal.

No âmbito da função jurisdicional cabe aos Tribunais não só dirimir conflitos, mas também assegurar a defesa dos direitos e interesses salvaguardados pela Constituição e a lei.

Da análise do acórdão recorrido e dos presentes autos, resulta que terá sido violado o princípio da legalidade, na medida em que o Tribunal ad quem entendeu que não houve qualquer violação à lei, por parte do Tribunal a quo, ao considerar o depoimento da única testemunha nos autos, arrolada pela então Requerida, bem como ao considerar válido o depoimento desta mesma testemunha quanto ao pagamento dos salários e subsídios dos Recorrentes.

Dispõe o n.º 1 do artigo 618.º do CPC que são inábeis para depor como testemunhas os que o podem fazer como partes, assim, se podem prestar “depoimento de parte” os representantes de pessoa colectiva ou sociedade, não podem depor como testemunhas.

Os representantes legais de uma sociedade, são os que estejam assim definidos nos seus estatutos, nos termos da Lei das Sociedades Comerciais, serão esses os seus gerentes, que podem ser nomeados de entre os sócios ou um 3.º exterior à sociedade, no caso das sociedades por quotas, e pelos seus administradores, no caso das sociedades anónimas. No presente processo vemos que a testemunha arrolada exercia o cargo de Director de operações, ora tal cargo não o torna representante legal da sociedade, logo não poderia o mesmo depor como parte, podendo assim fazê-lo como testemunha.

Ademais, a ratio do disposto no artigo 618.º do CPC é que, em homenagem à busca da verdade material, todas as pessoas devem ser admitidas a depor a fim de, com o seu depoimento, auxiliarem a descoberta da verdade. Se têm a posição de partes, é nessa qualidade que pode ser exigido o seu depoimento.

Se não têm essa posição, então poderão depor como testemunhas, não decorrendo deste facto qualquer violação ao princípio da legalidade, pelo facto de o Tribunal ad quem ter corroborado este entendimento.

Quanto à valoração do depoimento da mesma testemunha sobre o pagamento dos salários e subsídios devidos, importa dizer que tais factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos, sendo que em momento algum os Recorrentes contestaram a veracidade dos mesmos documentos. Logo, não podem pôr em causa a credibilidade das declarações da testemunha, se as mesmas podem ser comprovadas por documentos e os mesmos documentos não foram postos em causa pelos Recorrentes.

2. Violação do princípio da dignidade de pessoa humana

Nos termos do n.º 2 do artigo 31.º da CRA “O Estado respeita e protege a pessoa e a dignidade humana”.

Segundo Raul Araújo e Elisa Rangel, in Constituição da República de Angola - Anotada, “Para protecção de tal dever o Estado tem um duplo dever de respeito pela integridade pessoal: o de não agir (negativo), ou seja, o de não praticar actos que possam pôr em causa a integridade pessoal dos sujeitos jurídicos e o agir (positivo), isto é, deve aprovar a legislação competente e criar todas as condições no sentido de proteger os direitos das pessoas”.

Tratando o presente recurso de um processo de âmbito laboral, tal dignidade pode ser entendida como o dever do Estado de resguardar as relações laborais, promover legislação capaz de garantir a contínua melhoria nas condições de trabalho e, claro, a protecção da parte mais frágil nas relações laborais, que é o trabalhador.

Ora, os Recorrentes no presente processo celebraram contratos por tempo determinado, com uma empresa de trabalho temporário. O tipo de contrato vem definido na Lei Geral de Trabalho e foram cumpridas pela empresa as obrigações decorrentes do tipo de contrato celebrado.

Assim,  não podem os Recorrentes vir arrogar-se a mais direitos dos que a lei lhes garante, por inerência do contrato celebrado, muito menos considerar, em decorrência de tal acto, o desrespeito da dignidade da pessoa humana.

3. Ofensa ao princípio da igualdade

Da análise da decisão recorrida, bem como dos presentes autos, não se vislumbra em que medida podem os Recorrentes ter sido prejudicados, privilegiados ou privados de qualquer direito ou isentos de qualquer dever em razão da sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas, ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 23.º da CRA.

4. Ofensa ao princípio da estabilidade do emprego 

O n.º 4 do artigo 76.º da CRA, estabelece que o despedimento sem justa causa é ilegal e a entidade empregadora constitui-se no dever de indemnizar o trabalhador com justiça, nos termos da lei.

Esta norma salvaguarda o respeito pela estabilidade do emprego, daí a mesma sancionar o despedimento sem justa causa, por violar tal direito.

Essa estabilidade garante o direito do trabalhador de permanecer no emprego, mesmo contra a vontade do empregador, enquanto existir uma causa relevante e expressa na lei.

No entanto, ver-se-á adiante que, o referido princípio não é absoluto e deve ser devidamente harmonizado de forma a salvaguardar outros direitos com igual protecção no texto constitucional.

No caso concreto temos um contrato de trabalho celebrado por tempo determinado, para fazer face a uma necessidade temporária da empresa, uma vez que, pelas especificidades da entidade empregadora, esta contratava trabalhadores conforme a exigência das empresas a quem esta prestava serviços.

Ora, tendo a empresa a que os ora Recorrentes estavam adstritos, deixado de operar em Angola, de igual modo,  deixou de existir o motivo que levou à contratação dos mesmos trabalhadores.

Não pode a entidade empregadora ser condenada a manter nos seus quadros trabalhadores contratados para fins temporários e devidamente especificados nos contratos, quando a razão da contratação,  deixou de existir.

Sobre o princípio da estabilidade do emprego, ao debruçarem-se sobre a garantia de segurança no emprego, Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2015, pág. 501, referem que “A garantia de segurança no emprego, à semelhança dos direitos fundamentais dos trabalhadores em geral, implica naturalmente a compreensão, no domínio das relações laborais, da autonomia privada, da liberdade empresarial e dos outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Ademais,

“A garantia da segurança no emprego não pode, no entanto, ser absolutizada, devendo, por imperativo constitucional, atendendo à unidade do sistema de direitos fundamentais que a Constituição consagra, coexistir com a liberdade de empresa e outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos”.

Vemos, assim, que não é intenção do legislador constitucional transformar o princípio da estabilidade do emprego num peso para o empregador, essa estabilidade deve ser acautelada sim, mas sem que implique sacrificar outros direitos igualmente tutelados constitucionalmente.

Pelo que, da análise do caso concreto, em que estava em causa um contrato que pela sua própria natureza estava condicionado à verificação de outros pressupostos, tais como a continuidade dos motivos que levaram à sua celebração, não resulta de tal desvinculação qualquer atropelo ao princípio da estabilidade do emprego.

Face ao acima expendido, o Tribunal Constitucional considera que não se verificaram, no acórdão recorrido, ofensas aos princípios constitucionais alegados.

DECIDINDO 

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em: negar provimento ao presente recurso.

Sem Custas (nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 25 de Novembro de 2020

 

Os Juízes Conselheiros 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente e Relatora) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata