ACÓRDÃO N.º 655/2020
PROCESSO N.º 833-A/2020
Processo de Fiscalização Abstracta Sucessiva (alínea b) do artigo 3.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho).
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
O Procurador-Geral da República vem, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 230.º da Constituição da República de Angola (CRA), conjugado com os artigos 27.º alínea d) e 28.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, (fls. 2-7), requerer ao Tribunal Constitucional, que aprecie e declare com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março (Lei de Bases Sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional), por tal norma ofender os princípios da legalidade e da supremacia da Constituição, da certeza e segurança jurídica, da igualdade e o da autonomia, consagrados na Constituição da República de Angola (artigos 2.º, 6.º e 23.º, n.º 1), o que faz nos termos e fundamentos seguintes:
Todavia, será preso se ao crime corresponder pena de prisão superior a dois anos e o arguido for autuado em flagrante delito;
A autonomia do Ministério Público caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade”;
O Procurador Geral da República termina pedindo a este Tribunal Constitucional que deve ser admitido e dado provimento ao requerimento e declarado inconstitucional o n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, com efeito erga omnes, nos termos do artigo 231.º da Constituição da República de Angola e do artigo 30.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho. Para o efeito, juntou o referido diploma legal.
Notificada para se pronunciar sobre o pedido, nos termos do que vem previsto nos n.ºs 1 e 2 alínea b) do artigo 16.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, da LPC, a Assembleia Nacional, na qualidade de autora do diploma, fls. 18-23, em resposta, pronunciou-se nos seguintes termos:
Outrossim, solicitado, nos termos do artigo 10.º da LPC, na qualidade de titular do órgão principal beneficiário, para apresentar elementos de razão tendentes a contribuir para a apreciação do pedido e a decisão do processo atinente ao preceituado no supra citado n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, veio também aos autos, o Comandante Geral da Polícia Nacional, fls. 26 e 28, tecer o seguinte pronunciamento:
a) Nos termos da Constituição da República de Angola, de um modo geral, as Entidades que gozam de imunidades não podem ser presos;
b) Sem culpa formada quando a infracção seja punível com pena de prisão superior a dois anos, excepto em flagrante delito, por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos (Ex: artigos 140.º, 150.º, 188.º todos da CRA);
c)No que concerne à legislação ordinária, o n.º 1 do artigo 49.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, sobre Medidas Cautelares em Processo Penal, estabelece que "Os Oficiais Generais das Forças Armadas Angolanas e Comissários da Polícia Nacional não podem ser presos sem culpa formada, excepto em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a 2 (dois) anos;
d) A segunda parte do n.º 2 do artigo 68.º da Lei 6/20, de 24 de Março, impõe que o Procurador Geral da República deve solicitar autorização ao Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas para manter um oficial Comissário da PNA sob prisão, após o interrogatório.
4. Da análise feita, concluímos que o n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, deve ser conformado às normas da Constituição da República de Angola e com as leis ordinárias em vigor, que tratam das imunidade para as distintas Entidades.
Assim sendo, o Comandante Geral da Polícia Nacional sugere que a norma do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, Lei de Bases sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional, seja corrigida nos seguintes termos:
“Os Oficiais Comissários da PNA não podem ser presos sem culpa formada, excepto em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos, devendo, neste caso, o detido ser entregue imediatamente ao Procurador-Geral da República para interrogatório”.
O Processo foi à vista do Ministério Público, que, no âmbito do pronunciamento oferecido pela Assembleia Nacional, na qualidade de autora da norma em crise, e do pronunciamento do Comandante Geral da Polícia Nacional, promoveu o seguinte:
Pontos 4, 5 e 6 da contestação
A Constituição da República de Angola é a Lei Suprema do Estado Angolano, e por isso, condiciona o conteúdo das normas infraconstitucionais no sentido de que todas normas ordinárias só têm validade se estiverem conforme à Constituição.
As normas constitucionais que reconhecem imunidades à certas entidades, como os artigos 140.º n.º 2, 150.º n.º 2, 179.º n.º 4 e 188.º da CRA, fixam as imunidades para as infracções criminais puníveis com pena de até dois anos de prisão.
A pena de dois anos de prisão é o limite da imunidade, embora a Constituição não tenha regulado a matéria de imunidades para os Oficias Comissários da Polícia Nacional, entende-se que o espírito da Constituição é limitar as imunidades reconhecidas as entidades àquele tempo de prisão.
A regulamentação autorizada pelo n.º 3 do artigo 210.º da CRA deve conformar-se com as normas constitucionais sobre a matéria.
O futuro Código Penal deixará de classificar as prisões em prisão correccional e prisão maior, passando as penas de prisão designarem-se só de prisão sem qualquer adjectivo. Por isso, não é admissível pressupor o que o legislador constituinte dirá em relação a matéria de imunidades.
Pontos 7, 8, 9 e 10 da contestação
Não é de aceitar a sujeição do Ministério Público a prestação de uma informação ao Presidente da República enquanto Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas, pois, esta sujeição tem o mesmo significado de autorização. Por outras palavras, significa que, enquanto a informação não for prestada a prisão do Oficial Comissário não pode ser mantida.
A sujeição da manutenção da prisão do Oficial Comissário a comunicação ao Presidente da República, nas vestes de Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas, viola gravemente os dispostos nos números 1 e 2 do artigo 185.º CRA, periga a boa administração da justiça e a independência dos Tribunais.
Ao contrário da norma do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, que condiciona a manutenção da prisão do Oficial Comissário à autorização do Presidente da República na qualidade de Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas, outra norma da mesma natureza e sobre os mesmos oficiais (n.º 2 do artigo 49.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal), estabelece que a comunicação do Procurador Geral da República ao Presidente da República é feita depois de validação da prisão do Oficial Comissário.
A comunicação aqui é um acto posterior à decisão da manutenção da prisão e tem por finalidade dar a conhecer e não pedir autorização. O Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas toma conhecimento através da comunicação do Procurador Geral da República da prisão validada do Oficial Comissário, não autoriza prisões, aliás, não cabe nas suas competências constitucionais.
iii. Pronunciamento do Comando Geral da Polícia Nacional.
Nada a contrapor, porquanto, partilha as preocupações do Requerente e, em parte, da Assembleia Nacional.
Nestes termos, o Ministério Público representado junto do Tribunal Constitucional pugna pelo provimento do pedido.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 180.º e do n.º 1 do artigo 230.º, ambos da CRA, normas que estabelecem que compete ao Tribunal Constitucional apreciar a constitucionalidade de quaisquer normas e demais actos do Estado, bem como apreciar e declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de qualquer norma.
Por sua vez, a Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), dispõe na alínea a) do seu artigo 16.º que compete ao Tribunal Constitucional “apreciar a constitucionalidade das leis, dos decretos presidenciais, das resoluções, dos tratados, das convenções e dos acordos internacionais ratificados e de quaisquer normas, nos termos previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 180.º da Constituição”.
Ademais, a norma cuja constitucionalidade se requer a apreciação, consta de um diploma com a forma de lei de bases que está publicada na Iª Série do Diário da República n.º 34, de 24 de Março de 2020, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 166.º da CRA, pelo que, para efeitos da alínea a) do artigo 227.º da CRA, o Tribunal Constitucional é competente para apreciar a sua conformidade com a CRA.
III. LEGITIMIDADE
O n.º 2 do artigo 230.º da CRA estabelece que: Podem requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade as seguintes entidades:
O artigo 27.º da Lei do Processo Constitucional, reforça essa legitimidade constitucional, ao estabelecer, no mesmo sentido, que “…têm legitimidade para solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade de quaisquer normas (...) d) o Procurador Geral da República.
Neste contexto, está o Requerente habilitado a apresentar ao Tribunal Constitucional o pedido de fiscalização da constitucionalidade da norma previsto no n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, Lei de Bases Sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional.
IV. OBJECTO
O Requerente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, Lei de Bases Sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional. Neste sentido, o objecto de apreciação deste processo consiste em confrontar a norma do artigo supramencionado com as normas constitucionais correspondentes.
V. APRECIANDO
O Requerente, com o presente pedido de fiscalização abstracta sucessiva, suscita, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março - Lei de Bases Sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional, que essencialmente se subsume na matéria sobre as imunidades dos oficiais Comissários da Polícia Nacional (artigos 6.º e 11.º da LPC), para, a final, decidir se, e em que medida, aquela disposição está em conformidade ou desconformidade com normas constitucionais, como sejam, os artigos 2.º, 23.º, 140.º, 150.º, 179.º, 188.º, 185.º e 231.º, todos da CRA.
Assim:
Do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março - Lei de Bases Sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional
Tendo em atenção o objecto em causa, importa transcrever o conteúdo da norma legal cuja constitucionalidade se requer, o n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março - Lei de Bases Sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional.
Artigo 68.º
(Imunidades)
O Requerente questiona a constitucionalidade da norma legal do artigo e diploma retro mencionados, no confronto com as normas constitucionais previstas para situações similares, como sejam, os artigos 2.º, 23.º n.º 1, 140.º, 150.º, 179.º, 185.º n.ºs 1 e 2 e 188.º, todos da CRA, e, defende que as normas jurídicas que integram o sistema jurídico de um país devem constituir uma unidade coesa, porquanto, um sistema jurídico incongruente cujas normas não se conformam com a CRA é fonte de instabilidade para os seus destinatários.
Considera que o critério estabelecido no n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março ao reconhecer aos Oficiais Comissários imunidades para crimes puníveis com pena de prisão até três anos, podendo só serem detidos em flagrante delito, por infracções puníveis com pena de prisão superior a três anos, ofende os princípios do primado da Constituição e da igualdade, previstos no artigo 2.º e n.º 1 do artigo 23.º da CRA.
Por outro lado, sugere que a necessidade de o Procurador Geral da República ter de solicitar autorização ao Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas, para a manutenção da detenção contraria o princípio da autonomia institucional do Ministério Público previsto no artigo 185.º da CRA.
Portanto, a dúvida sobre a constitucionalidade da norma legal em apreciação, prende-se, por um lado, com o facto de o legislador da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, ter alterado o critério para o reconhecimento e atribuição de imunidades à margem do critério constitucionalmente determinado. Ou seja, em todos os casos de imunidades previstos na CRA e demais legislação vigente, o critério é o da moldura penal abstracta aplicável a um determinado crime. Quer dizer que, se a determinado crime corresponder pena de prisão correcional, o arguido só pode ser preso depois da culpa formada. Todavia, será preso se ao crime corresponder pena de prisão superior a dois anos e se o arguido for autuado em flagrante delito.
Ora, a Lei em questão vem reconhecer aos Oficiais Comissários imunidades para crimes puníveis com pena de prisão até três anos e podendo apenas serem detidos em flagrante delito, por infracções puníveis com pena de prisão superior a três anos, à margem do comando constitucional previstos no artigo 2.º e no n.º 1 do artigo 23.º da CRA. Por outro lado, vem condicionar a manutenção da prisão de um Oficial Comissário da PN à autorização do Presidente da República e Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas, contrariando os princípios da autonomia, da legalidade e objectividade previstos no artigo 185.º da Constituição da República de Angola.
Interpretando as normas legais invocadas pelo Requerente, no seu confronto com as disposições constitucionais também por si invocadas e, ciente de que o legislador ordinário conhece qual é o valor que a CRA ocupa no ordenamento jurídico angolano, o Tribunal Constitucional entende que o cerne da discussão passa necessariamente, em primeiro lugar, pela verificação dos conceitos de constitucionalidade e de inconstitucionalidade; em segundo lugar, pelo sistema de imunidades à luz da CRA e, em terceiro lugar, pela verificação da constitucionalidade ou inconstitucionalidade das normas postas em causa pelo Requerente.
A doutrina afirma que, Constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação a relação que se estabelece entre uma coisa - a Constituição - e outra coisa - um comportamento - que lhe está ou não conforme, que cabe ou não cabe no seu sentido, que tem nela ou não a sua base”. “Não se trata, de relação de mero carácter lógico ou intelectivo. É essencialmente uma relação de carácter normativo e valorativo, embora implique sempre um momento de conhecimento. Não estão em causa simplesmente a adequação de uma realidade a outra realidade, de um quid a outro quid ou a desarmonia entre este e aquele acto, mas o cumprimento ou não de certa norma jurídica. (cfr. por todos, Miranda, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição, Tomo VI, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 9 e 10).
Deste conceito resulta que, O primeiro termo da relação de inconstitucionalidade é a Constituição. A Constituição, não genericamente, na sua globalidade, em bloco, em bruto; mas por referência a uma norma determinada, a certa norma que rege certo comportamento, por referência a certa norma, ou a certo segmento de norma, seja qual for a sua expressão verbal, (texto de preâmbulo, artigo, número ou a alínea de artigo). Há sempre uma norma violada, e não outra. Pela inconstitucionalidade, transgride-se uma norma constitucional uma a uma, não se transgridem todas ao mesmo tempo e de igual modo.” Pode assim ficar afectado todo um instituto ou capítulo que, nem por isso (...) deixa de ser através de qualquer das suas normas (ou de segmentos de normas) que a inconstitucionalidade se manifesta. (Ibidem, cfr. Miranda, Jorge, pág. 11).
Ora, por aquilo que os presentes autos do processo n.º 833-A/20 nos dão a conhecer, resulta claro que o Requerente não questiona a constitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, em relação a todas as normas da CRA. Fá-lo sim, confrontando normas constitucionais específicas e concretas, nomeadamente: a prevista no artigo 140.º (sobre a responsabilidade criminal dos Ministros de Estado, Ministros, Secretários de Estado e Vice-Ministros, cfr. o n.º 2 do citado artigo); a prevista no artigo 150.º (sobre as imunidades dos Deputados em matéria criminal, cfr. o n.º 2 do citado artigo); a prevista no artigo 179.º (sobre a responsabilidade criminal dos juízes, cfr. o n.º 4 do citado artigo); a prevista no artigo 188.º (sobre imunidades ou responsabilidade criminal dos Magistrados do Ministério Público) e em relação à norma prevista no artigo 185.º (sobre a autonomia institucional do Ministério Público, cfr. o n.º 2 do citado artigo).
Neste particular domínio, o Requerente considera ter a norma em crise se afastado do padrão seguido pelos demais diplomas legais enunciados que regulam sobre a matéria, decorrendo daí a ofensa de princípios fundamentais consagrados na CRA.
Nos artigos 140.º, 150.º, 179.º e 188.º da CRA “define-se” o regime constitucional das imunidades dos membros dos órgãos de soberania, dos membros do Poder Executivo e dos Magistrados do Ministério Público, em matéria de responsabilidade criminal. Concretamente, diz-se nestes artigos: os Ministros de Estado, os Ministros, os Secretários de Estado e os Vice-Ministros; os Deputados, os Juízes e os Magistrados do Ministério Público, só podem ser presos depois de culpa formada quando a infracção seja punível com pena de prisão superior a dois anos, excepto em flagrante delito, por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos. Estas normas, se interpretadas no sentido literal, de facto, pode resultar num juízo aparente de inconstitucionalidade. E porquê? Vejamos:
Quando o legislador constituinte pensou e aprovou o conteúdo dessas normas específicas foi apenas para garantir que a prisão preventiva dos membros desses órgãos se concretizasse nas situações em que houvesse culpa formada (isto é, pronúncia pública) nos crimes considerados graves, isto é, crimes puníveis com penas de prisão maior, (nos termos do artigo 55.º do Código Penal), impedindo com isso, que essas entidades sejam presas ou detidas por crimes considerados menos graves, isto é, crimes correcionais, os puníveis com penas de prisão de três dias a dois anos (nos termos do artigo 56.º do Código Penal, ainda em vigor).
O actual Código Penal (CP) faz essa distinção entre, por um lado, crimes menos graves, os puníveis com até dois anos de prisão, qualificando-os como sendo de prisão correcional e, por outro, crimes mais graves, chamando-os de crimes de prisão maior, que é a categoria de crimes com penalidades acima de dois anos. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que a CRA, ao reconhecer tais imunidades àquelas entidades, não pretendeu apenas limitar-se ao número (superior a dois anos); apenas fazendo referência pela expressão pena de prisão superior a dois anos à categoria de um conjunto de crimes legalmente designados pelo Código Penal vigente, que é a de crimes correcionais.
Por esta razão, entende-se que, na eventualidade de o legislador ordinário alterar o conteúdo ou penalidades máximas dos crimes correcionais, nada impede que, no caso concreto, haja a necessidade de se fazer uma interpretação actualista da norma constitucional em causa. Entretanto, a questão que por ora se coloca prende-se com o facto de o legislador ordinário ainda não ter alterado o conteúdo e o limite máximo do que entende serem crimes de penas correcionais ou o que considera, na substância, ser crimes menos graves e crimes graves, não tendo esse conteúdo ainda definido, entende-se, isso sim, que essa norma legal do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, pode efectivamente, levantar questões de constitucionalidade, pois, enquanto não entrar em vigor o novo Código Penal, essa intenção do legislador ordinário, manifestada por via da Lei de Bases Sobre a Organização e o Funcionamento da Polícia Nacional, pode afectar o principio da igualdade que rege a matéria de imunidade criminal dos membros dos órgãos já acima referenciados. A consequência é que, no futuro, quando o Código Penal entrar em vigor com a previsão invocada, quer dizer que essas entidades apenas poderão ser presas se a penalidade for superior a três anos e, isto independentemente da previsão constitucional, cuja referência é a prisão em crimes puníveis com penas superiores a dois anos. Por aqui pode referir-se o seguinte: se a estrutura legal muda, não precisa de mudar também a Constituição. Porque a CRA não define prisão correccional, tal como não define os demais institutos; quem o faz é a lei.
Se a Lei n.º 6/20, de 24 de Março, consagrou na norma legal em apreciação, crime punível com pena de prisão superior a três e não a dois (como previsto na CRA e no actual CP) por referência a uma “nova realidade jurídico-penal” introduzida no CP promulgado pelo Presidente da República, mas ainda não em vigor então é porque esse Código Penal ainda não produz efeitos. Aliás, o próprio Autor da norma destacou que ao consagrar na mesma aquele critério, o crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos e não a dois, fê-lo tendo em conta o novo Código Penal angolano, à data já aprovado pela Assembleia Nacional, apesar de não promulgado e, consequentemente não se encontrar ainda em vigor.
Ora se assim é, a manutenção de uma norma com essa categoria beneficia menos imunidades aos demais em matéria de responsabilidade criminal prevista nos diversos artigos já referidos e atenta de forma flagrante contra o princípio constitucional da igualdade, previsto no artigo 23.º, nos termos do qual, “Todos são iguais perante a lei” e “ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito (...).
Ser igual perante a lei não significa apenas aplicação igual da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos [ou grupo de cidadãos]. O princípio da igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação de um direito igual para todos os cidadãos [ou grupo de cidadãos]. (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, 2003, Pág. 426).
O princípio da igualdade, tendo como corolário os princípios da proibição do arbítrio, da descriminação e da obrigação de diferenciação, é um dos princípios fundamentais que, visando garantir a igualdade jurídica de todos os cidadãos ou grupo de cidadãos, preside à interpretação e aplicação dos direitos fundamentais. “O princípio da igualdade, no sentido de igualdade na própria lei, é um postulado de racionalidade prática: para todos os indivíduos com as mesmas características devem prever-se, através da lei, iguais situações ou resultados jurídicos”. (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, 2003, Pág. 427).
O princípio da igualdade vem concretizado em vários preceitos da Constituição dos quais se realça in casu os artigos 23.º e 22.º da CRA e serve como princípio informador de toda a ordem jurídico-constitucional.
Por outro lado, o princípio da igualdade contribui para a segurança e certeza jurídicas, inclusive com soluções isonômicas para situações idênticas ou próximas. Este princípio impõe um tratamento jurídico idêntico a todos os que se encontrem em situação idêntica ou similar. Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, pág. 261, 2014.
Assim, à luz desta disposição da CRA, a norma legal do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, aprovada com o fundamento espelhado pela Requerida deve ser considerada inconstitucional. Não apenas por causa da categoria em si (crime punível com pena superior a três anos) mas pelo facto de a norma ter consagrado um conteúdo que, na vigência do actual Código Penal, está em desconformidade com o princípio da igualdade, da segurança e da certeza jurídicas.
Por esta razão a norma do n.º 2 da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, deve conformar-se ao padrão seguido pela CRA e as demais leis ordinárias que estabeleceu imunidades criminais aos Deputados à Assembleia Nacional, aos Titulares de cargos de responsabilidade política, aos Magistrados Judiciais e do Ministério Público e aos Oficiais Generais e Comissários da Polícia Nacional, que é o da moldura penal abstracta aplicável a um determinado crime.
O Requerente alega que nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 185.º da CRA, o Ministério Público está dotado de autonomia e estatuto próprio, deve apenas obediência à lei, não devendo receber ordens ou instruções de outros órgãos do Estado. Por isso, não se pode vincular à norma do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, porque esta, ao condicionar à autorização do Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas à manutenção da prisão de um Oficial Comissário, ofendeu os princípios da autonomia e da legalidade e objectividade, previstos no artigo 185.º da CRA.
O princípio da autonomia, constitucionalmente consagrado, confere aos Magistrados do Ministério Público, como órgão do poder judicial, embora hierarquicamente subordinados, garantias de autonomia e independência constitucionais que os coloca dependentes a critérios de legalidade e de objectividade, conforme se interpreta dos artigos 185.º, 186.º e 189.º da CRA. Portanto, ao Ministério Público compete representar o Estado, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar, promover o processo penal e exercer a acção penal.
O princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania tem, assim, uma função de garantia da constituição, pois os esquemas de responsabilidade e controlo entre os vários órgãos transformaram-se em relevantes factores de observância da constituição. (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, 2003, Pág. 889).
Ora, o artigo 185.º da CRA define o que é o Ministério Público e qual é a função que a lei fundamental lhe reserva no exercício da função jurisdicional, ao estabelecer que o Ministério Público é o órgão da Procuradoria Geral da República essencial à função jurisdicional do Estado, sendo dotado de autonomia e estatuto próprio. (cfr. o n.º 1 do citado artigo). Essa autonomia caracteriza-se, em primeiro lugar, pela sua vinculação a critérios de legalidade e de objectividade, conforme o n.º 2 do citado artigo. Da leitura conjugada dessas normas resulta que, pese embora os Magistrados do Ministério Público sejam hierarquicamente subordinados (cfr. o n.º 3), ainda assim, no exercício da sua função jurisdicional, o Ministério Público não está subordinado a qualquer outro órgão. Isto quer dizer que os seus Magistrados devem somente obediência a CRA e a lei, o que lhes impede de realizar a sua actividade com base em ordens ou instruções de outros órgãos do Estado que não seja dentro da própria estrutura organizativa da Procuradoria Geral da República.
Assim, não tem razão o Autor da norma quando no seu pronunciamento refere-se que o sentido do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, é de sujeitar o Ministério Público à prestação de uma informação ao Presidente da República, enquanto Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas, sobre a sua decisão de manter a prisão e não condicionar a manutenção da prisão à uma autorização do Presidente da República, pois o n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, deixa bem claro que o oficial comissário detido deve “(…) ser entregue imediatamente ao Procurador Geral da República para interrogatório e solicitação de autorização ao Presidente da República e Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas, para a manutenção da detenção”, o que contraria o disposto no artigo 185.º da CRA.
Se assim é, o n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, ao ter consagrado que a manutenção da prisão depende da autorização do Presidente da República e Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas, essa norma constitui uma flagrante violação dos referidos princípios da autonomia, da legalidade e objectividade e da separação de poderes, previstos no já citado artigo 185.º e no n.º 3 do artigo 105.º da CRA. Determina este último artigo que “os órgãos de soberania devem respeitar a separação e interdependência de funções estabelecidos na Constituição. A Assembleia Nacional, dentro da organização do poder do Estado é definida como um órgão de soberania e, como tal, tem, à luz da alínea a) do artigo 162.º da CRA, competência de controlo e fiscalização, mediante a qual se lhe impõe o dever de velar pela aplicação da lei suprema angolana e o de velar pela boa execução das leis.
O princípio da legalidade postula dois princípios fundamentais: o princípio da supremacia ou prevalência da lei (...) e o princípio da reserva de lei (...). Estes princípios permanecem válidos, pois num Estado democrático-constitucional a lei parlamentar é, ainda, a expressão privilegiada do princípio democrático (daí a sua supremacia) e o instrumento mais apropriado e seguro para definir os regimes de certas matérias, sobretudo os dos direitos fundamentais e da vertebração democrática do Estado (daí a reserva da lei). (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, 2003, Pág. 256).
O princípio da legalidade também é realçado no âmbito do princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) porque este princípio prende-se com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, 2003, Pág. 257). Assim, a norma do n.º 2 do artigo 68.º deve conformar-se com a CRA, sob pena de inconstitucionalidade ex vi dos artigos 2.º e 6.º da CRA.
Pelas razões expostas, o Tribunal Constitucional considera que o legislador (autor) da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, ao condicionar a manutenção da prisão dos Oficiais Comissários da Polícia Nacional à autorização do Presidente da República e Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas, viola o n.º 2 do artigo 185.º e o n.º 3 do artigo 105.º, ambos da CRA. Considera ainda o Tribunal Constitucional, que o previsto no n.º 2 do artigo 68.º da mesma lei em análise, também está em desconformidade com os n.ºs 1 e 2 do artigo 23.º da CRA, ao estabelecer para os Oficiais Comissários da Polícia Nacional mais imunidades que os membros dos órgãos de soberania, os membros do Poder Executivo, os Magistrados do Ministério Público, e que os Oficiais Generais aos quais são normalmente equiparados, tendo como base uma lei que ainda não está em vigor no ordenamento jurídico e, em consequência, o conteúdo da referida norma estar em desarmonia com o Código Penal ainda vigente, o que na prática resulta na violação do princípio da igualdade, da segurança e da certeza jurídicas.
O Requerente juntou o Diário da República n.º 34, Iª Série, de 24 de Março, em que está publicada a Lei n.º 6/20, de 24 de Março, Lei de Bases Sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional considera inconstitucional, com efeito erga omnes, a norma do n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20, de 24 de Março, nos termos dos artigos 226.º n.º 2 e 231.º da CRA, bem como do artigo 30.º da LPC, por esta (norma) ofender os princípios da legalidade e da supremacia da Constituição, da igualdade, da certeza e segurança jurídica, e da autonomia, todos consagrados na CRA.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os juízes do Tribunal Constitucional, em:
Notifique
Sem custas pelo Requerente, nos termos do artigo 15.º da LPC.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 2 de Dezembro de 2020
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dr.ª Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr.ª Josefa Antónia dos Santos Neto
Dr.ª Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dr.ª Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr.ª Maria de Fátima Lima d´A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr.ª Victória Manuel da Silva Izata