ACÓRDÃO N.º 656/2020
PROCESSO N.º 756-D/2019
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
Cláudio da Conceição Soares, melhor identificado nos autos, veio a este Tribunal interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, a 9 de Maio de 2019, no Processo n.º 1385/18, que o condenou, cfr. fls. 280 dos autos, na pena de oito (8) anos de prisão maior pela prática de crime de aborto.
Inconformado, veio recorrer a este Tribunal, alegando, em síntese, o seguinte:
O Recorrente conclui as suas alegações pedindo que a decisão do Tribunal Supremo seja declarada inconstitucional, por violar o princípio da legalidade.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II – COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, ao abrigo do disposto na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), e da alínea a), conjugada com o § único, ambos do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).
III – LEGITIMIDADE
O Recorrente foi condenado pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo na pena de oito anos de prisão maior, pela prática de crime de aborto.
Tem, assim, o Recorrente, legitimidade para interpor o presente recurso, na medida em que a utilidade derivada da procedência da acção exprime o seu interesse directo em demandar, conforme estabelecem a alínea a) do artigo 50.º da LPC e os n.ºs 1 e 2 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.
IV – OBJECTO
O presente recurso tem por objecto verificar se o Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 1385/18, violou ou não direitos, liberdades e garantias fundamentais do Recorrente, salvaguardados pela Constituição de 2010.
V – APRECIANDO
O Recorrente veio interpor a presente acção recursória, sustentando a sua pretensão de ver declarada a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido com base na alegação de que o Tribunal Supremo violou garantias do processo criminal e não assegurou a defesa dos seus direitos e interesses legalmente tutelados, nos termos da Constituição.
Diante da matéria apresentada a juízo, este Tribunal verificará se, do ponto de vista jurídico-constitucional, assiste ou não razão ao Recorrente:
Alega o Recorrente que não tem qualquer ligação com o crime de aborto, porque os autos da acusação, de fls. 84, e da pronúncia, de fls. 123, referem-se a um suposto cidadão, de nome Cláudio da Conceição Sebastião, que não é o próprio, cujo nome é de Cláudio da Conceição Soares.
Da interpretação que fez dos artigos 98.º do CPP e 668.º do CPC resulta ainda a alegação do Recorrente, de fls. 323, de que o Tribunal ad quem, no acórdão de 9 de Maio de 2019, devia pronunciar-se sobre o facto de Cláudio da Conceição Soares não ter sido “acusado nem pronunciado”, mas sim Cláudio da Conceição Sebastião, devendo, por isso, ser declarada a nulidade da decisão recorrida.
Ora, o regime jurídico das nulidades, vigente no Direito Processual Penal angolano, vem regulado no artigo 98.º do CPP, cujo n.º 5, citado pelo Recorrente, estabelece que “são nulidades em processo penal a falta de notificação do despacho de pronúncia, ou equivalente, ao réu e seu defensor”.
As disposições legais do n.º 1 do artigo 668.º do CPC vão mais longe quanto à regulamentação das causas de nulidades das decisões, considerando que “é nula a sentença quando não contenha a assinatura do juiz, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento e quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.
Todavia, este Tribunal verifica que a alegação de que o Recorrente não foi acusado nem pronunciado não tem que ver com a suposta inexistência dos respectivos despachos, uma vez que estes constam de fls. 84 e 123 do processo, e muito menos tem a ver com a falta de notificação ou de fundamento sobre questões que devesse o Tribunal recorrido apreciar, pois os autos de fls. 98 e 135 sustentam que a defesa foi notificada da acusação e da pronúncia.
Com efeito, o Recorrente arguiu a nulidade do aresto recorrido com base no simples facto de o seu nome, Cláudio da Conceição, aparecer nos autos processuais, em certas vezes, com um suposto sobrenome “Sebastião”, em detrimento de “Soares”, o que, analisado o processo no seu todo, não representa um “lapsus calami” (erro material de escrita), subsumível a um vício de inconstitucionalidade, quanto à identidade do agente.
Outrossim, uma das garantias fundamentais do processo criminal é o direito de ninguém ser detido, preso ou submetido a julgamento senão nos termos de uma lei anterior que qualifique como crime um acto praticado, sendo garantido a todos os arguidos ou presos o direito de defesa e de recurso de decisões contra si proferidas, nos termos do n.º 2 do artigo 65.º e dos n.ºs 1 e 6 do artigo 67.º, ambos da CRA.
Compulsados os autos de tramitação processual, este Tribunal verifica que o aqui Recorrente foi ouvido em autos de interrogatório, cfr. fls. 16, foi identificado pelas testemunhas e cúmplices, cfr. fls. 34, 37, 43 e 44, e, após notificação da acusação, em sede do Processo n.º 2894/16, cfr. fls. 98, e da pronúncia, cfr. fls. 133, subscreveu os autos em que foi condenado, sob os Processos n.º 1240/16-B, na primeira instância, e n.º 1385/18, no Tribunal Pleno de recurso, de cuja decisão a defesa recorreu extraordinariamente, cfr. fls. 323.
Assim sendo, não assiste razão ao Recorrente, porquanto a irregularidade verificada na escrituração do seu nome não influiu no exame e na decisão da causa, uma vez lhe foram asseguradas as garantias de um processo constitucionalmente respaldado, em que os actos, as fases processuais e a mera irregularidade não violaram os princípios da legalidade e do julgamento justo e conforme, nos termos dos artigos 6.º e 72.º da CRA, do artigo 98.º do CPP, do n.º 1 do artigo 201.º e do artigo 668.º, ambos do CPC.
O Recorrente alega que está privado de liberdade física, sem que a sua condenação tenha transitado em julgado, pois o presente recurso tem efeito suspensivo, pressupondo que há, deste modo, um atentado às garantias de direitos fundamentais e uma limitação ao exercício de liberdades, nos termos do artigo 58.º e do n.º 6 do artigo 67.º, ambos da CRA.
De facto, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem efeito suspensivo, que corresponde à sustação dos termos e da decisão recorrida, ao abrigo da alínea a) do artigo 44.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 52.º, ambos da LPC, pelo que o Recorrente devia ter sido restituído à liberdade.
Todavia, o Recorrente encontra-se preso na sequência da condenação no Tribunal de 1.ª instância, como conta a fls. 240 dos autos, e não já no seguimento da prolacção do acórdão do Tribunal ad quem, que é objecto do presente recurso, com efeito suspensivo.
Com efeito, este Tribunal entende que houve violação do direito fundamental à locomoção, pois, apesar de a jurisprudência dos Acórdãos n.ºs 612/2020 e 623/2020 firmar a compreensão jus-constitucional de que o trânsito em julgado ocorre com a decisão definitiva do Tribunal Supremo, o Recorrente devia manter-se em liberdade durante o julgamento do recurso ordinário com efeito suspensivo ali interposto, por se ter achado na condição de réu solto no momento da condenação em 1.ª instância.
Na verdade, o n.º 1 do artigo 658.º do CPP prevê o efeito suspensivo dos recursos interpostos das sentenças ou acórdãos finais e condenatórios, o que se aplica no caso da decisão proferida pelo Tribunal a quo, sendo que o Recorrente devia manter-se em liberdade, já que a caução paga só se extinguiria com o início da execução da pena prolactada pelo Tribunal ad quem, nos termos conjugados da alínea e) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 24.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal.
Porém, o Recorrente devia impugnar a ilegalidade da sua prisão no decurso da apreciação da acção principal por parte do Tribunal Pleno, impetrando uma providência extraordinária de habeas corpus, nos termos dos artigos 316.º e 318.º do CPP, o que não ocorreu.
O que consta, a fls. 102, é tão-somente uma acção cautelar contra uma eventual violação do prazo de prisão preventiva de quatro meses sem acusação, ou seja, existe apenas um recurso de habeas corpus interposto antes da violação do princípio do efeito suspensivo do recurso da decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, que não manteve o Recorrente em liberdade provisória até ao trânsito em julgado da acção principal.
Portanto, o direito à liberdade física deve ser apreciado no âmbito de um recurso extraordinário de habeas corpus, e não em sede da presente acção recursória, que sindica apenas a constitucionalidade do acórdão proferido nos autos da acção principal, que correu termos no Tribunal ad quem.
Assim sendo, é entendimento deste Tribunal que não assiste razão ao Recorrente, quanto à alegada falta de protecção dos seus direitos e interesses legalmente tutelados, nos termos do que dispõem os artigos 13.º, 26.º, 36.º, 56.º e do n.º 6 do artigo 67.º, todos da CRA.
DECIDINDO
Nestes Termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 2 de Dezembro de 2020.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dr.ª Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr.ª Josefa Antónia dos Santos Neto
Dr.ª Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dr.ª Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr.ª Maria de Fátima de Lima d´ A.B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr.ª Victória Manuel da Silva Izata