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ACÓRDÃO N.º 660/2021

PROCESSO N.º 805-A/2020

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)

Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

João Serrote Vunda, melhor identificado nos autos, vem ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2102, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), por inferir que o referido acórdão, ao manter a pena de dois anos de prisão, que lhe foi aplicada pelo crime de corrupção passiva, ofendeu os princípios do contraditório, da presunção de inocência e do julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 67.º, n.ºs 1 e 2 e 72.º, ambos da Constituição da República de Angola (CRA).

O Recorrente apresenta (fls. 575 – 578 dos autos), em síntese, as seguintes alegações:

  1. O Réu, ora Recorrente, foi mantido na condenação da primeira instância, num crime cuja prova foi baseada numa presunção e autêntica violação dos princípios do contraditório, presunção de inocência e o direito a julgamento justo e conforme. Além disso, como questão prévia, o Recorrente argumenta que o Despacho exarado deferiu a Reclamação para a admissão do presente recurso com um efeito suspensivo, todavia, o Tribunal da Comarca do Dande, surpreendentemente, mantém, a execução da Decisão vertida no Acórdão recorrido. O Recorrente está preso desde Fevereiro de 2020, cumprindo a pena de dois anos. Nestes termos, o Recorrente requer que seja posto em liberdade provisória, nos mesmos termos em que a vinha beneficiando, antes do Acórdão do Tribunal Supremo.
  2. Em momento algum os co-réus João Serrote Vunda, Júlio Edson Vicente Amaro e Luiany David Trindade Garcia tiveram um acordo com o co-réu Isaías Manuel Francisco Leão, este então funcionário do Tribunal da Comarca do Dande, no sentido de soltarem os cidadãos de nacionalidade chinesa, condenados no Processo-crime n.º 4458-F/16, registado no Tribunal da Comarca do Dande, mediante quaisquer contrapartidas, conforme o artigo 9.º da Acusação feita pelo Digno Magistrado do M.º P.º da Primeira Instância;
  3. O Recorrente não recebeu das mãos de qualquer dos seus subordinados, qualquer dinheiro que não fosse para o pagamento das multas resultantes da condenação daqueles cidadãos estrangeiros, e que o mesmo tenha sido usado em proveito próprio, aliás, só assim ocorreu, pois o co-réu Júlio Edson Vicente Amaro, também funcionário do [Serviço de Migração e Estrangeiros de Luanda] SME/LUANDA, chegara tarde ao Bengo e pediu que o Recorrente ficasse com os valores, a título de fiel depositário, para que no dia seguinte, atendendo aos constrangimentos de regressar àquela província, orientasse alguém, para o devido depósito, e assim aconteceu;
  4. O Recorrente, também, nunca recebeu valores ou promessa de recebê-los, por parte de qualquer cidadão nacional ou estrangeiro, com o propósito de facilitar a retirada e fuga dos citados cidadãos chineses da cadeia, facto que inequivocamente foi comprovado nas diversas audiências de julgamento. (vide actas do julgamento da primeira Instância);
  5. Do valor recebido, para o pagamento das multas, foi depositado na conta do SME/BENGO, conforme autos de Transgressão e Guias de Depósitos, valores confirmados, segundo extracto de Conta da mesma Instituição que constam dos autos. (Vide fls. 38 a 46 e 143 a 152 dos autos);
  6. Ao Recorrente nunca foi garantida qualquer gratificação que pusesse em causa a sua normal actuação no estrito cumprimento da lei pois, compulsados os autos, encontramos todos os passos conducentes ao pagamento dos emolumentos que teriam de ser pagos pelos cidadãos chineses, que seriam soltos depois daquele cumprimento, pois era este o conteúdo da cópia da Sentença recebida ao Tribunal;
  7. Os factos acima expostos têm sido, desde a instrução dos presentes autos até à Instância recorrida, a base de defesa do Recorrente e dos demais réus condenados, com excepção do então funcionário do Tribunal, que confessou tudo ter feito sem anuência ou comparticipação dos demais. Contudo, tanto na Primeira Instância quanto na Segunda, nada se tem feito para que aqueles factos merecessem algum valor processual e, neste sentido, o Recorrente tem vindo a apelar para que se atendesse os princípios com dignidade constitucional, pois estavam a ser beliscados com a total ignorância de todos os argumentos que tem sido apresentados, mormente os Princípios do Contraditório e o da Presunção de Inocência, n.º 1 e 2 do art.º º, bem como o direito a julgamento justo e conforme, art.º 72.º ambos da CRA.
  8. O Acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, simplesmente não fundamenta a manutenção das penas de dois anos de prisão aplicadas aos demais co-réus, ao contrário da situação particular do então funcionário do Tribunal da Comarca do Dande. Neste último caso em concreto, além de terem sido apreciados e valorados os seus argumentos de defesa, a Instância recorrida, também fundamentou a sua decisão para aquele caso concreto, demonstrando uma clara atitude de violação dos princípios e do direito que aqui se alega, quando nada disse relativamente aos demais, aliás, o Tribunal Supremo, simplesmente disse “nos demais se mantém”. (Vide Acórdão do Tribunal Supremo);
  9. Em sede da Primeira Instância, nada foi materialmente provado para que o Recorrente e os demais co-réus condenados merecessem sê-los, se tivermos em conta, que na fundamentação daquela decisão, o Tribunal de Primeira Instância ter tido a sua convicção com base numa presunção, pois segundo aquele, “os co-réus acreditavam numa possível gratificação”, quando nenhuma promessa tinha sido feita aos mesmos. (Vide Sentença de Primeira Instância);

O Recorrente concluiu pedindo que este Tribunal dê provimento ao presente recurso, declare inconstitucional o Acórdão do Tribunal Supremo e, consequentemente, proceda à sua absolvição por insuficiências de provas, em respeito ao princípio in dúbio pro reo, (na dúvida, a favor do réu) pois nada foi provado contra si.

O processo foi à vista do Ministério Público que promoveu o seguinte:

- O Recorrente participou em todos os actos processuais para exercer a sua defesa, quer na fase de instrução preparatória, fls. 126 e 181, quer na fase judicial através dos autos de fls. 332, 352 e 464, pelo que, lhe foi assegurado o direito de contradizer em igualdade de oportunidade e meios.

- O processo penal tem em vista coligir elementos de prova que conduzam a incriminação ou a inocentar o arguido. No caso sub judice, verifica-se haver no processo prova bastante de que o julgador ad quem se serviu para fundamentar o juízo de condenação do Recorrente.

- O direito a julgamento justo e conforme pressupõe a actuação de um tribunal independente, imparcial e competente, a igualdade das partes, a igualdade de armas e direito de defesa. No processo em apreço o tribunal ad quem considerou todos esses princípios.

Portanto, não se vislumbra violação de quaisquer princípios ou direitos evocados pelo Recorrente.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é co-réu no Processo n.º 2102, que correu os seus trâmites na 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pelo que, tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “...podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (...) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem como objecto o Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 2102, que correu naquela instância, pelo que cabe verificar se tal decisão ofendeu os princípios do contraditório, da presunção de inocência e do julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 67.º nºs 1 e 2 e 72.º da CRA.

V. APRECIANDO

O Recorrente alega, para além da questão prévia, sobre o efeito suspensivo do recurso e a execução da sentença, que o Acórdão recorrido ofendeu os princípios do contraditório, da presunção de inocência e do julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 67.º nºs 1 e 2 e 72.º da CRA.

Assim:

  1. Sobre o efeito suspensivo do recurso e a execução da sentença

O ora Recorrente alega, como questão prévia, que o recurso foi admitido com efeito suspensivo, conforme fls. 421, 422, 455, 567 e 569 dos autos. Todavia, o Tribunal da Comarca do Dande (Único Juízo) executou a decisão vertida no Acórdão recorrido. Por esta razão, o Recorrente está preso desde Fevereiro de 2020, cumprindo a pena de dois anos de prisão, pelo que, requer que seja posto em liberdade provisória, nos mesmos termos em que dela beneficiava, antes do Acórdão recorrido.

Na verdade, no âmbito do termo de vista, aos 7 de Janeiro de 2020, o Ministério Público promoveu a imediata emissão de mandados de detenção contra os réus condenados e, aos 8 de Janeiro de 2020, emitiu-se os mandados de condução contra os co-réus, incluindo o aqui Recorrente, pelo crime de corrupção passiva, para cumprir os dois anos de prisão maior (fls. 518 e 518v).

Consta a fls. 526, 533 a 537 dos autos, que o Magistrado Judicial do Tribunal da Comarca do Dande emitiu o mandado de captura, no âmbito do Processo n.º 93-C/2017-Querela, para qualquer autoridade competente prender e ser conduzido à cadeia, o aqui Recorrente, para cumprir a pena de dois anos de prisão maior. O Serviço de Investigação Criminal cumpriu o mandado de captura, aos 27 de Janeiro de 2020.  

Ora, o recurso é um direito e garantia fundamental do processo criminal, que se enquadra no direito de acesso aos tribunais, mediante o qual uma decisão proferida por um tribunal é reexaminada por uma nova instância (de recurso), ex vi nºs 1 e 6 do artigo 67.º da CRA e artigo 645.º do CPP. Assim, porque, à luz da alínea a) do artigo 44.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 52.º, ambos da LPC, do n.º 1 do artigo 658.º do CPP e da alínea e) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 24.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem efeito suspensivo, que corresponde à sustação dos termos e da decisão recorrida, não deveria ter sido executado o Acórdão recorrido.

Destarte, o Recorrente deveria ter impugnado tempestivamente a execução do Acórdão recorrido, impetrando uma providência de habeas corpus junto do Tribunal Supremo, nos termos dos artigos 316.º e 318.º do CPP, da alínea d) do n.º 1 do artigo 34.º da Lei n.º 13/11, de 18 de Março, Lei Orgânica do Tribunal Supremo, e do n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum.  

Ademais, não compete ao Tribunal Constitucional decidir em primeira instância sobre a providência de habeas corpus, nem tal decisão é possível no âmbito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, cujo objecto é verificar se o Acórdão recorrido ofendeu algum princípio constitucionalmente consagrado.

Além disso, torna-se supérfluo conhecer e decidir, também, sobre a providência de habeas corpus, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade interposto pelo Recorrente, porque, qualquer que seja a decisão vertida sobre o mesmo, extinguir-se-á a situação de prisão ilegal aqui arguida pelo ora Recorrente. Nestes termos, deve ser julgada extinta a respectiva instância, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 287.º do CPC subsidiariamente aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.

  1. Sobre o princípio do contraditório e o direito a julgamento justo e conforme

O Recorrente alega que sempre refutou as acusações que sobre si recaem, desde a instrução dos presentes autos até à instância recorrida, diferentemente do réu Isaías Manuel Francisco Leão (funcionário do Tribunal), que confessou os factos, sem referir a implicação dos demais. Porém, tanto na primeira Instância como na segunda Instância, nada se fez para que as suas refutações merecessem algum valor processual.

Diz ainda que, embora do Acórdão recorrido (fls. 513 e 513v dos autos) se extrai que os factos provados reproduzem, no essencial, o suficiente para responsabilização criminal dos réus e “que os réus confessaram parcialmente os factos” (fls. 513v), nunca lhe foi garantida por alguém qualquer gratificação que pusesse em causa a sua normal actuação no estrito cumprimento da Lei, como se pode constatar na Sentença. Por isso, sustenta ter sido ofendido o princípio do contraditório e o da presunção de inocência, bem como violado o direito a julgamento justo e conforme, previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 67.º e no artigo 72.º, ambos da CRA.

Porém, do Acórdão recorrido consta o fundamento de que, efectivamente, a prova vertida nos autos é suficiente para a responsabilização criminal dos réus, pois a fls. 513 realça que “Os réus agiram com a manifesta vontade de soltarem os cidadãos chineses que cumpriam pena de prisão na cadeia da Caboxa. Para o efeito, encetaram contactos com o co-réu Isaías Manuel Francisco Leão, à data dos factos Escrivão do Tribunal Provincial do Bengo que, por seu turno, alterou a sentença respectiva, nela fixando o valor de Kz 140.000,00 da taxa de justiça que estava estabelecida em Kz 40.000,00. Emitiu, por outro lado, um forjado mandado de soltura, o que permitiu que fossem os referidos [cidadãos] chineses postos em liberdade”. “Os réus confessaram parcialmente os factos” (fls. 513v).

O princípio do contraditório, aqui alegado pelo Recorrente, consiste em garantir que ninguém sofra os efeitos de uma sentença sem ter tido a possibilidade de uma efectiva participação nela, com vista a sustentar as suas posições jurídicas, de modo a que o Tribunal possa limitar-se a julgar de maneira imparcial.

Esse princípio é, portanto, uma garantia do processo criminal que encontra consagração no n.º 1 do artigo 67.º e no n.º 2 do artigo 174.º da CRA, bem como no n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum. Nestes preceitos assevera-se que os Tribunais são obrigados, no exercício das suas funções jurisdicionais, a assegurar os princípios do acusatório e do contraditório e a reprimir as violações da legalidade democrática.

É, aliás, neste âmbito que, por exemplo, o Recorrente e os demais co-réus, diante do facto de que os quesitos podem ser reclamados, requereram que estes (os quesitos) não fossem discutidos na mesma audiência em que foram lidos, visto que o processo integra cinco réus e implicaria um elevado número de questões sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa (conforme consta de fls. 418, 423 e 425 dos autos).

A pretensão requerida pela defesa, acima referida, foi atendida pelo Juiz da causa que agendou para data posterior, proferindo o seguinte despacho: “Para discussão e aprovação dos quesitos e leitura da sentença agendo o dia 29 do mês e ano em curso pelas 9 horas”. Isto porque, nos termos do n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro, Lei do Ajustamento das Leis Processuais, Penal e Civil se estabelece o seguinte: “Formulados os quesitos, serão seguidamente lidos e postos à reclamação, podendo os representantes da acusação e defesa requerer que sejam elaborados outros quesitos ou que os propostos sejam redigidos ou ordenados de modo diverso”.

Outrossim, a fls. 420 dos autos consta a acta de audiência de julgamento, realizada aos 29 de Junho 2018, onde esteve também presente o ora Recorrente e o seu mandatário legal, para a formação de um juízo de certeza sobre a existência ou não dos elementos constitutivos do crime de que foi (o Recorrente) acusado e pronunciado, bem como sobre a sua responsabilidade ou não. Concluiu-se, assim, não se ter verificado aqui a ofensa do princípio do contraditório alegado pelo ora Recorrente.

De igual forma não se vislumbra qualquer violação ao direito a julgamento justo e conforme, também argumentado pelo ora Recorrente como tendo sido violado, pois este praticou os devidos actos processuais para sua defesa e, em consequência, foi julgado e considerado provado o seu envolvimento na conduta criminosa, conforme fls. 423, 426, 427 e 428 dos autos, respeitante aos quesitos.

O direito a julgamento justo e conforme é um direito fundamental que visa, essencialmente, concretizar o afastamento dos casos de injustiça, pois, ampara qualquer cidadão contra intervenções estatais (autoridades executivas, legislativas e judiciais) arbitrárias, dando-lhes segurança para que não sejam privados de suas liberdades sem antes enfrentar um julgamento justo, pautado em lei, previamente produzido e de conhecimento público.

De acordo com Grandão Ramos “O julgamento é um conjunto de actos e actividades processuais concentradas num determinado lugar que tem por fim a formação de um juízo de certeza sobre a existência dos elementos constitutivos do crime e sobre a responsabilidade do réu. É uma fase toda ela dirigida à procura da verdade objectiva.” In, Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, 2.ª Edição, 2015, Pág. 296.

Portanto, não se verifica aqui qualquer ofensa do princípio do contraditório, nem a violação do direito a julgamento justo e conforme.

  1. Sobre a presunção da inocência e o dever de fundamentação

O Recorrente alega que, em sede da primeira Instância, nada foi materialmente provado para que merecesse ser condenado, pois a decisão baseou-se numa presunção de que “os co-réus acreditavam numa possível gratificação”, quando nenhuma promessa tinha sido feita aos mesmos (vide sentença da primeira Instância).

Por outro lado, o Recorrente alega, também, que verifica-se nas actas de julgamento da primeira Instância que, em momento algum, associado aos co-réus Júlio Edson Vicente Amaro e Luiany David Trindade Garcia, tiveram um acordo com o co-réu Isaías Manuel Francisco Leão (funcionário do Tribunal da Comarca do Dande) no sentido de soltarem os cidadãos de nacionalidade chinesa, condenados no Processo-crime n.º 4458-F/16, mediante quaisquer contrapartidas, como faz crer o articulado 9.º da Acusação na Primeira Instância.

Por outro lado, defende-se alegando que nunca recebeu valores, ou promessa de recebê-los, com o propósito de facilitar a retirada dos citados cidadãos chineses da cadeia, facto que foi comprovado nas diversas audiências de julgamento (vide actas de julgamento da primeira Instância).

Assim, não obstante os apelos feitos pelo Recorrente para que o Tribunal a quo atendesse tais factos, tal não ocorreu, razão pela qual, com a sua condenação, não se evitou a ofensa e violação de valores constitucionais, como o princípio da presunção de inocência e o direito a julgamento justo e conforme, previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 67.º e no artigo 72.º ambos da CRA.

Ora, consultados os autos, verifica-se que a “possível gratificação” a que o Recorrente se refere, consta de fls. 441 dos autos (sentença da primeira Instância) ter-se efectivado quando, em conclusão, o Juiz da causa refere como um dos fundamentos para sua decisão o seguinte: “Contudo, resultou como provado por nexo de causalidade que no final das contas, os co-réus nos autos acreditavam e esperavam uma possível gratificação, excepto o co-réu Nataniel Mateus Micolo (fls. 100 e 368) ”.

Constata-se igualmente nos autos (fls. 105, 124 e 357) que a co-ré Luiany Daniela Trindade Garcia entregou ao declarante Domingos Francelino Reis Patrício Kz. 1.350.000,00 (um milhão e trezentos e cinquenta mil kwanzas) e que este solicitou ajuda ao seu amigo ora co-réu, Júlio Edson Vicente Amaro (fls. 424 e 425), tendo sido este último que, por fim, no âmbito da acção criminosa, entrou em contacto com o Recorrente.

Também consta como provado nos autos (fls. 426) que o Recorrente pediu ajuda ao co-réu Isaías Manuel Francisco Leão para soltar da cadeia os dois cidadãos chineses, tendo este, depois de muitas solicitações, decidido unilateralmente forjar o conteúdo da sentença. Desta, passou a constar que os cidadãos chineses deveriam pagar uma multa equivalente a USD 1.000,00 (mil dólares americanos) por cada um deles, Kz 70.000,00 (setenta mil kwanzas) de taxa de justiça e o valor em Kwanzas correspondente a USD 5.000,00 (cinco mil dólares americanos) para cada um deles, a título de multa, a ser paga pela empresa LUMACART, bem como a soltura a favor dos mesmos cidadãos chineses, após pagamento das multas (fls. 426).

Consta, ainda, como provado que o co-réu Júlio Edson Vicente Amaro para efectuar o pagamento (fls. 425), procedeu ao depósito dos valores das respectivas multas com ajuda do Recorrente (fls. 427).

Embora não seja da competência do Tribunal Constitucional aferir se os demais tribunais no âmbito do julgamento procederam a uma correcta apreciação ou não das provas, uma vez que a este Tribunal compete administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional, conforme os artigos 180.º da CRA e 16.º da LOTC, a verdade é que, nos termos dos artigos 655.º do CPC aplicável ao Processo Penal, subsidiariamente ex vi do § único do artigo 1.º do CPP, quer a Sentença (fls. 433 dos autos) como o Acórdão recorrido (fls. 509 a 514) concluíram, sem dúvidas, que o Recorrente e demais co-réus se envolveram na acção criminosa, pondo em risco princípios fundamentais da Administração Pública, nomeadamente os da legalidade, da justiça, da responsabilização e da probidade administrativa, legalmente plasmados no artigo 198.º da CRA.

O Acórdão recorrido (fls. 433 dos autos), não é uma decisão discricionária, “Porque formada a partir da prova produzida no processo, a convicção do julgador não é arbitrária, não pode basear-se em razões de natureza subjectiva nem é produto de voluntarismo”. “A convicção do juiz é uma convicção fundamentada, a partir de dados objectivos fornecidos pelo processo, com vista a uma finalidade específica - a descoberta da verdade material ou objectiva, a verdade tal como ela, na realidade dos factos, ocorreu”. “Cumpridas, entretanto, as normas de direito probatório, o juiz é livre de valorar, no sentido que entender, ´a prova produzida` e tomar a decisão que lhe ditar a sua consciência de julgador”. In Grandão Ramos, Vasco, Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, 2.ª Edição, 2015, págs. 206 e 207.

O Recorrente realça também que o Acórdão proferido pelo Tribunal Supremo não fundamenta a sua decisão de manutenção das penas, de dois anos de prisão, aplicadas a si (Recorrente) e aos demais co-réus, salvo no caso particular do co-réu Isaías Leão, então funcionário do Tribunal da Comarca do Dande, em que fundamentou a sua decisão, pois, aliás, o Tribunal Supremo, simplesmente disse: “nos demais se mantém” (fls. 577 dos autos). 

No entanto, o Acórdão recorrido (fls. 513 e 513v dos autos) refere que, dentre outros, “Os factos (...) descritos reproduzem no essencial a prova vertida nos autos, suficiente para responsabilização criminal dos réus”; “Os réus agiram com a manifesta vontade de soltarem os cidadãos chineses que cumpriam pena de prisão na cadeia de Kibaxi (...)” e que “Os réus confessaram parcialmente os factos”. Por esta razão e no âmbito da “subsunção jurídico-penal”, evidenciou o mesmo acórdão que o Recorrente cometeu um crime de corrupção passiva previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 38.º da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro, Lei Sobre a Criminalização das Infracções Subjacentes ao Branqueamento de Capitais.

Assim, não é verdade que o Acórdão recorrido não tenha respondido a obrigação de que as decisões dos tribunais judiciais devem ser sempre fundamentadas em razão de propiciar: “(1) controlo da administração da justiça; (2) exclusão do carácter voluntarístico e subjectivo do exercício da actividade jurisdicional e abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes; (3) melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes em juízo um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas”. Cfr. Gomes Canotilho, J. J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, 2003, pág. 667.

O dever da fundamentação, disposto no n.º 1 do artigo 158.º do CPC e artigos 11.º e 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, visa o afastamento do arbítrio judicial e a fiscalização da actividade jurisdicional, impondo ao julgador a necessidade de motivar os seus pronunciamentos decisórios e conferindo legitimidade democrática e constitucional.

Ora, o aqui Recorrente praticou os actos processuais conducentes a organizar a sua defesa perante os factos de que foi acusado, pronunciado e posteriormente julgado, que reproduzem, no essencial, a prova vertida nos autos (conforme fls. 423 e 432). Por outro lado, o Tribunal Supremo fundamentou a sua decisão tendo em atenção o objecto do recurso interposto, pelo que, não cabe razão ao Recorrente ao alegar a ofensa dos princípios da presunção da inocência e a inobservância do dever de fundamentação.

Nestes termos, não existem razões para admitir a ofensa de quaisquer princípios, direitos, liberdades e garantias consagrados na CRA.

 DECIDINDO

 Nestes termos,

Tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

 Notifique.



Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 19 Janeiro de 2021.

 

O JUIZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator) 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite Ferreira 

Dra. Maria de Fátima Lima d´A. B. da Silva