ACÓRDÃO N.º 662/2021
PROCESSO N.º 821-A/2020
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Osvaldo Luís Quintas Mervil, com os demais sinais de identificação nos autos, foi acusado, pronunciado e condenado em primeira instância pela 14.ª Secção da Sala de Questões Criminais do Tribunal Provincial de Luanda, pela prática do crime de furto de veículos e objectos neles encontrados, p. e p. nos termos da alínea e) do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 44939, de 27 de Março, em concurso real com o crime de falsificação e viciação, p. e p. nos termos do n.º 1 do artigo 19.º do Decreto n.º 231/79, de 16 de Julho.
Desta decisão interpôs recurso para o Tribunal Supremo, tendo esta instância agravado a medida da pena para 16 anos de prisão maior.
Inconformado com o douto acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, vem, então, o Recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), alegando em síntese o seguinte:
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte vencida no processo n.º 2042, que correu os seus trâmites na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, subsidiariamente, ao caso em apreço, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.
Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolatado no âmbito do Processo que correu seus termos naquela instância, cabendo agora verificar se tal decisão violou ou não os princípios e normas constitucionais invocadas.
V. APRECIANDO
O Recorrente vem alegar essencialmente que, por um lado, durante o julgamento em primeira instância o Tribunal não procedeu à judiciosa valoração dos factos e das provas atinentes; que, por outro lado, do Acórdão da Câmara Criminal do Tribunal Supremo não consta a fundamentação em que este se baseou para agravar a medida da pena e; ainda, por um terceiro lado, o Tribunal ad quem não obedeceu ao princípio legalmente consagrado da proibição da reformatio in pejus.
Este Tribunal Constitucional não se constitui numa terceira instância de julgamento da matéria de competência dos tribunais das outras jurisdições, maxime no que diz respeito a terem procedido a uma correcta apreciação da prova. A este Tribunal compete administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional, em consonância com os artigos 180.º da Constituição (CRA) e 16.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
Pode ser visto a fls. 350 e seguinte dos autos, que o Tribunal de primeira instância procedeu à distinção dos factos provados e dos não provados. Como refere Vasco Grandão Ramos “Cumpridas, entretanto, as normas de direito probatório, o juiz é livre de valorar, no sentido que entender, a prova produzida e tomar a decisão que lhe ditar a sua consciência de julgador”. in Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, 2.ª edição, 2015, pág. 207.
Reconhecendo-se que as outras duas questões essenciais, apresentadas pelo ora Recorrente, encontram-se revestidas de dignidade jurídico-constitucional, por se enquadrarem no que respeito diz ao princípio da legalidade, conforme o disposto nos artigos 64.º a 67.º da CRA, passa-se à sua apreciação.
A) Sobre a fundamentação do agravamento da pena.
A 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo decidiu agravar a medida da pena, de 12 para 16 anos de prisão efectiva, usando para o efeito a fundamentação por remissão – per relationem ou per remissionem (como se pode constatar a fls. 390 dos autos).
Assim sendo, a questão decidenda consiste em saber se, tendo o Tribunal Supremo confirmado a decisão de 1.ª instância e nela constando a expressão – “Afigura-se credível o recorte dos factos operado pelo tribunal recorrido, não havendo por conseguinte mais reparo algum digno de vulto a fazer, sendo certo que os réus juntaram à sua esfera patrimonial, as três viaturas sob às quais não tinham qualquer direito anterior. De resto, nada mais há para acrescentar”, tal alusão é suficiente face ao artigo 659.º do CPC ou encerra uma nulidade por deverem ser os factos que serviram de base ao agravamento da pena objecto de enunciação específica.
É consabido que o artigo 659.º, n.º 2, do CPC prescreve que: “Ao relatório seguem-se os fundamentos e a decisão. O juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados;
fará o exame crítico das provas de que lhe compete conhecer e estabelecerá os factos que considera provados;
depois interpretará e aplicará a lei aos factos, concluindo pela decisão final”.
Isto é, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando o demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Por outro lado preceitua o artigo 668.º, n.º 1, alínea b) do CPC, que “ É nula a sentença quando: b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão”.
Ora, com o devido respeito, que é muito, pelo Tribunal Supremo, o Acórdão aqui em crise, ao não ter especificado os factos em que se baseia a decisão de agravamento da pena, não cumpriu plenamente o preceituado no artigo 659.º, n.º 2, do CPC.
De harmonia com o disposto no artigo 659.°, n.°2, do Código de Processo Civil, na fundamentação da sentença, o juiz deve declarar quais os factos que julga provados e os não provados, analisando criticamente as provas e, entre o mais, especificando os fundamentos decisivos para a sua convicção.
A decisão sobre a matéria de facto é um elemento integrante da sentença, contemplando a declaração tanto dos factos considerados provados como dos factos não provados, assim como a sua fundamentação, com a especificação dos concretos meios de prova determinantes da convicção do juiz, quer se trate de factos provados quer de factos não provados.
No âmbito da decisão sobre a matéria de facto, é importante que o juiz esclareça também, na fundamentação, as razões determinantes da decisão, especificando os concretos meios de prova decisivos para a formação da sua observância, torna-se possível a impugnação de tal decisão, sendo certo que sobre o recorrente impende um exigente ónus de alegação (artigo 690.° do Código de Processo Civil), e o julgamento eficaz pelo tribunal de recurso.
Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que a agravação da pena operada pelo Tribunal Supremo limitou-se a fazer a sua fundamentação com base nos factos dados como provados pelo Tribunal de primeira instância.
Dispõe o artigo 158.º do CPC, que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
A decisão em causa aplicou uma medida restritiva da liberdade individual. É apodíctico que a decisão que dessa matéria se ocupa não é uma decisão de mera regulação do processo, uma vez que tem interferência nos direitos e liberdades das pessoas numa dimensão essencial. Está, por isso, o julgador vinculado à sua fundamentação, nos termos da norma citada.
Esta fundamentação, suscitada pela controvérsia e pela dúvida, deve, em consequência, incidir sobre a explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia no sentido em que o fez.
A fundamentação, expressão da legitimidade de exercício jurisdicional, deve satisfazer este requisito ou seja, deve ser a necessária a explicitar as razões da decisão enquanto escolha e a suficiente a que essas razões resultem patentes para os intervenientes processuais e para a sociedade.
Ou seja, não impõe uma enumeração exaustiva de todas as soluções possíveis, mas antes se basta com indicação das determinantes que a fundam e que simultaneamente arredam outras possibilidades.
É pacífica a jurisprudência no sentido de que só a absoluta falta de fundamentação, não apenas a sua insuficiência, determina a nulidade da decisão a que se acolhe o Recorrente. Deve ser uma falta absoluta à qual se assimila a fundamentação que não permita descortinar as razões de decidir, o que se impõe face à razão de ser do dever de fundamentação que acima abordamos.
No caso a nulidade invocada encontra fundamento, na perspectiva do Recorrente, na remissão para os fundamentos constantes de anterior decisão.
Na sua decisão, efectivamente, o tribunal fez apelo aos fundamentos de facto e de direito constantes da decisão de primeira instância, ou seja, utilizou o modo de fundamentação per relationem ou per remissionem.
Determina tal método a nulidade por falta de fundamentação? A resposta tem de assentar na já indicada razão de ser da estatuição constitucional e legal: dar a conhecer as razões de decidir de modo que, nomeadamente, permita dissentir.
Tendo o tribunal a quo absorvido e integrado a decisão de primeira instância, relativamente aos factos, na sua própria decisão, não ficaram patentes os fundamentos para alteração da medida da pena.
A fundamentação por remissão para decisão anterior - fundamentação per relationem ou per remissionem – não determina por si só nulidade por falta de fundamentação, mas assim o será quando inviabiliza a perceptibilidade das razões de decidir, o que ocorreu no caso vertente, uma vez que não são enunciados os motivos para o agravamento da medida da pena, de 12 para 16 anos de prisão efectiva.
Assim, este modo de proceder do Tribunal Supremo não corresponde à satisfação da exigência estabelecida na lei, porquanto, na verdade, a fundamentação da matéria de facto deve indicar, de forma clara, os concretos meios de prova que determinaram a decisão, positiva ou negativa, para, assim, dar adequado cumprimento à formalidade legal consagrada no artigo 659.°, n.º 2, do Código de Processo Civil.
O que a fundamentação visa – disse-se já também – é assegurar a ponderação do juízo decisório e permitir às partes – no caso, ao arguido – o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos.
A fundamentação por remissão suscitará dúvidas de constitucionalidade, nos casos em que, pelo facto da remissão, a acessibilidade dos fundamentos se tornasse labiríntica ou particularmente complexa, tornando imperceptível as razões que se encontram na base do dispositivo.
Assim sendo, não restam dúvidas de que o Tribunal Supremo, ao ter decidido conforme decidiu (com absoluta omissão dos fundamentos para o agravamento da pena), postergou o princípio da legalidade, previsto nos artigos 6.º e 64.º a 67.º da CRA, materializado pela conjugação dos artigos 158.º e 668.º do CPC, estes aplicáveis ao processo penal ex vi parágrafo único do artigo 6.º do CPP e, ainda, pelo previsto no artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum.
Termos em que o disposto na alínea b) do artigo 668.º do CPC torna nula a decisão de agravar a pena, tomada pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.
B) Sobre a ofensa ao princípio da proibição da reformatio in pejus.
O Recorrente invoca também a violação do princípio da proibição da reformatio in pejus, uma vez que o Tribunal Supremo alterou a decisão de primeira instância e agravou a medida da pena anteriormente aplicada.
O princípio da proibição da reformatio in pejus prescreve que, interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no interesse exclusivo do primeiro, o Tribunal Superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes (artigo 667.º do CPP).
A ratio do instituto radica nas mais díspares razões, mas uma mais antiga pondera uma ideia de equidade, não fazendo sentido reformar para pior uma sentença se só o arguido recorre, não o fazendo o Ministério Público, transitando em julgado quanto a ele o decidido; uma outra na ideia de favor reo, de benefício, de concessão de uma garantia última dos seus direitos de defesa, como contrapeso da sua debilidade posicional no processo. Distintamente, uma nova razão seria de índole reguladora do processo, de instrumento que regulariza o andamento justo do processo na medida em que, pelo menos, não desencoraja o arguido de recorrer com receio de sentença mais gravosa (Cfr. Mara Lopes, in O Princípio da Proibição da Reformatio in Pejus, como Limite aos Poderes Cognitivos e Decisórios do Tribunal, Estudos em Homenagem ao Professor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. III, Coimbra Ed., pp. 949 a 996).
Para Damião Cunha o princípio assume uma função garantística do exercício do direito ao recurso, questionando-se, no entanto, se a proibição se deve limitar ao estrito âmbito impugnatório ou, deve consagrar-se como afloramento de um princípio geral de processo penal, ligado ao exercício do direito de defesa, in Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, Universidade Católica Portuguesa Ed., 2002, pág. 227,
Este entendimento será o mais consentâneo com o princípio do acusatório e a estrutura acusatória do processo, assegurando mais eficazmente, favorecendo-o, o fim do processo, na medida em que põe o condenado a salvo do receio de recorrer, “ permitindo a reapreciação do facto relativamente a um maior número de sentenças reputadas injustas pelos condenados”, nas palavras de Jorge Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Coimbra Ed., 2004, pág. 259.
No caso vertente, o recurso interposto pelo Ministério Público não foi no exclusivo interesse dos arguidos, antes por imperativo legal, não havendo, por isso, violação ao princípio da proibição de reformatio in pejus.
Em conclusão, o Tribunal Constitucional considera inconstitucional o Acórdão do Tribunal Supremo por ter operado o agravamento da pena sem o ter fundamentado.
Assim, devolvam-se os autos ao Tribunal Supremo a fim de que se reforme a decisão em conformidade com o julgamento da questão de inconstitucionalidade, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 47.º da LPC.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 20 de Janeiro de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria de Fátima Lima d´A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata