ACÓRDÃO N.º 663/2021
PROCESSO N.º 783-C/2019
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Augusto da Silva Tomás, Isabel Cristina Gustavo Ferreira de Ceita Bragança, Rui Manuel Moita e Manuel António Paulo, melhor identificados nos autos, vieram ao Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 19 de Novembro de 2019, proferido pelo Plenário do Tribunal Supremo, nos autos do Processo n.º 100/2019, que os julgou pela prática dos crimes de peculato, participação económica em negócios, violação das normas de execução do plano e orçamento, recebimento indevido de vantagem e abuso de poder, todos na forma continuada, condenando-os nas penas fixadas entre os dois a oitos anos de prisão maior, multas e indemnização ao Estado no valor de três milhões até um bilião, quinhentos e um milhões e cento e setenta e três mil e duzentos e dois kwanzas, sessenta e dois mil até quarenta milhões de dólares norte-americanos e duzentos e quarenta e um mil até treze milhões, oitocentos e cinquenta e sete mil e oitocentos e quatro euros.
Inconformados com esta decisão, os Recorrentes, notificados para apresentar alegações, vieram no essencial dizer o seguinte:
Augusto da Silva Tomás
Isabel Cristina Gustavo Ferreira de Ceita Bragança
Rui Manuel Moita
Manuel António Paulo
Os Recorrentes terminam as suas alegações pedindo que este Tribunal dê provimento ao presente recurso e declare a inconstitucionalidade do acórdão do Plenário do Tribunal Supremo.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
Os Recorrentes foram condenados pelo Plenário do Tribunal Supremo nas penas de dois (2) meses a oito (8) anos de prisão maior, em multa e indemnização ao Estado pela prática dos crimes de que foram acusados, pronunciados e julgados nos autos de recurso.
Resulta, assim, evidente que os Recorrentes têm interesse directo em demandar, pelo que gozam de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, com base na alínea a) do artigo 50.º da LPC e no n.º 1 do artigo 26.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
Este recurso tem por objecto verificar se o Acórdão do Plenário do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 100/2019, violou ou não os seguintes princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais:
a) Direito a Julgamento Justo e Conforme e Princípio do Formalismo Processual – artigo 72.º da CRA;
b) Direito à Integridade Pessoal e à Dignidade da Pessoa Humana – artigo 31.º da CRA;
c) Princípio do Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efectiva, Direito ao Processo Equitativo e ao Contraditório – artigos 29.º e 174.º da CRA;
d) Direito à Liberdade Física e Segurança Pessoal e Princípio da Igualdade – artigos 23.º, 36.º e 67.º da CRA, artigo 9.º da DUDH e artigo 9.º do PIDCP;
e) Princípio da Presunção da Inocência, Direito de Defesa e Direito a Não Autoincriminação – n.º 4 do artigo 29.º, artigo 6.º, alínea g) do artigo 63.º e artigo 67.º, todos da CRA;
f) Direito ao Duplo Grau de Jurisdição – artigo 6.º e n.º 1 do artigo 67.º da CRA e artigo 8.º da DUDH e n.º 4 do artigo 9.º do PIDCP;
g) Princípios da Não Retroactividade da Lei, da Legalidade, da Fundamentação das Decisões e da Livre Apreciação da Prova – artigos 2.º, 6.º, n.º 4 do artigo 65.º, artigos 175.º e 177.º, todos da CRA, e artigo 14.º do PIDCP.
V. APRECIANDO
Os Recorrentes apresentaram individualmente as suas alegações, sendo que, em sede de conclusões, evidenciaram os princípios, direitos e liberdades fundamentais que consideram terem sido violados pelo acórdão do Plenário do Tribunal recorrido.
Decorre da lei processual civil vigente que a apresentação de alegações deve conter as conclusões, caracterizadas pela forma sintética de exposição, e que determinam as questões a conhecer.
No caso sub judice, os Recorrentes respeitaram as disposições legais sobre o ónus de alegar e formular conclusões, de moldes a que este Tribunal não proferiu qualquer despacho de aperfeiçoamento, pelo que é de se conhecer o presente recurso, nos termos e para efeitos dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 690.º do CPC.
Por outro lado, os Recorrentes apresentaram conclusões similares em sede de alegações, mencionando os mesmos princípios constitucionais aquando da exposição dos factos e dos fundamentos de direito, que não são, substancialmente, distintos num e noutro caso.
Por fim, os Recorrentes formulam pedidos, consubstanciados essencialmente no sentido de este Tribunal dar provimento ao presente recurso e julgar inconstitucional o acórdão recorrido.
Assim, este Tribunal irá apreciar em conjunto as questões colocadas por cada um dos Recorrentes e fá-lo do seguinte modo:
A) Direito a Julgamento Justo e Conforme e Princípio do Formalismo Processual
Entendem os Recorrentes que a violação do direito a julgamento justo e conforme e do princípio do formalismo processual deveu-se ao facto de o Tribunal a quo ter recusado receber os meios de prova que apresentaram em sede de julgamento; ter omitido factos nos quesitos finais, bem como os Juízes Conselheiros do Tribunal ad quem não terem tido acesso ao processo dentro do prazo de junção de vistos, tendo, em consequência disto, alguns deles emitido as declarações de voto de vencido.
Alegam, ainda, a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, porque foram condenados pelo crime de peculato, mas os factos não se subsumem a este típico legal de crime, por não terem a qualidade de funcionários públicos, bem como o julgador entendeu que todos os que tinham relação de proximidade com o bem público deviam ser condenados, independentemente da individualização da culpa, o que é muito grave e ofensivo aos direitos constitucionalmente tutelados.
Em termos jurídico-constitucionais, o direito a julgamento justo e conforme é corolário do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, e representa uma garantia fundamental dos cidadãos perante os tribunais, consequência do sentido real de Estado democrático de direito defendido no artigo 2.º da CRA.
O julgamento justo e conforme é, assim, uma garantia concretizada no asseguramento de uma justiça que seja materialmente funcional, imparcial e independente, permitindo o acesso aos Tribunais a todo o cidadão, no propósito de uma tutela jurisdicional efectiva.
É, também, este o sentido defendido pela jurisprudência firmada por este Tribunal, no Acórdão n.º 336/2014, segundo a qual: o direito ao julgamento justo deve ser entendido enquanto imposição da lei de que aquando da administração da justiça, seja assegurado ao arguido todo um conjunto de garantias previstas, desde o momento da suspeita de cometimento do crime até ao momento da total execução da pena condenatória. Assim, no caso do julgamento, o Tribunal está obrigado a respeitar os princípios da independência e imparcialidade, como condição de garantia do arguido de que as audiências sejam conduzidas com equidade. O julgamento justo é aquele que respeita o princípio da igualdade de armas e trata as partes e os seus representantes de maneira formalmente igual.
Efectuado o enquadramento deste princípio e revendo o alegado pelos Requerentes, que aludem no essencial à tipificação criminal dos actos, acusação individualizada, organização e condução do julgamento, quesitos finais e igualdade das penas, começaremos pela alusão que os Recorrentes Manuel António Paulo e Isabel Cristina Gustavo Ferreira de Ceita Bragança fazem ao facto de não serem funcionários públicos e, por isso, não lhes poder ser imputado um crime de peculato.
Convém, desde já, salientar que a função jurisdicional deste Tribunal Constitucional é sindicar se o acórdão recorrido, ao conter fundamentos de direito e decisões, contraria ou não princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na Constituição, conforme orienta a alínea a) do artigo 49.º da LPC.
Relativamente à questão colocada pelos supra referidos Requerentes, em como não são funcionários públicos, o Tribunal recorrido, a fls. 5468 e versus, fundamentou a sua decisão com base na qualificação do CNC como Instituto Público.
Este raciocínio está em consonância com a regra da sujeição do pessoal dos institutos públicos ao regime da função pública, conforme determinam os nºs 1, 3 e 4 do artigo 35.º do Decreto Legislativo Presidencial n.º 2/13, de 25 de Junho, que aprova o Diploma sobre Regras de Criação, Estruturação e Funcionamento dos Institutos Públicos, pelo que bem fundamentou o Acórdão impugnado.
Já relativamente à alegada recusa de meios de prova, não cabe à jurisdição deste Tribunal conhecer desta matéria. Em princípio, isto só implicaria a análise jurisdicional por este Tribunal se os elementos probatórios que os Recorrentes alegam terem sido rejeitados fossem aqui especificados e incorporassem o leque de questões prejudiciais não atendidas pelo Tribunal ad quem, ou seja, pusessem em causa a descoberta da verdade material na jurisdição comum e, consequentemente, a justa decisão, no sentido do julgamento justo e equitativo.
Na verdade, a natureza das questões prejudiciais é substantiva ou material e não apenas formal ou processual e, por isso, reveste-se de garantia constitucional no âmbito do papel de intervenção deste Tribunal para efeitos de fiscalização quando é alegada, o que não foi feito nem tão-pouco os autos suscitam um procedimento por parte deste Órgão judicial, nos termos e para efeitos do seu poder de cognição.
Entende de igual modo este Tribunal que, contrariamente ao alegado, o formalismo processual respeitante à consulta, prazo, visto e declarações de voto de vencido, que foram juntos aos autos pelos Juízes Conselheiros do Tribunal ad quem, não violam qualquer princípio constitucional, mormente o alegado princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.
De facto, a Constituição não indica os parâmetros de concretização do conceito de princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, e não seria diferente. Com efeito, na densificação deste princípio basilar da Constituição, este Tribunal não pode deixar de salientar que o direito a uma decisão jurisdicional final, em que se verifique o formalismo processual alegado pelos Recorrentes, é consequência do direito a julgamento justo e conforme e das garantias do processo criminal.
No caso concreto, as exigências inerentes a um processo justo e equitativo indicam que a prolacção do aresto do Tribunal recorrido deve resultar da realização da reunião do Plenário, da participação directa e da manifestação da vontade expressa pela maioria dos Juízes Conselheiros em efectividade de funções presentes na sessão, da vista do Ministério Público, da análise das questões levantadas em sede de recurso, bem como de uma decisão fundamentada em obediência à Constituição e à lei, como se verifica no caso presente, a fls. 5425, 5439 a 5499 dos autos.
O acórdão impugnado, por ter sido subscrito pelo quórum formado pelo maior número de Juízes Conselheiros do Plenário do Tribunal ad quem, a fls. 5483, enquadra-se no leque de decisões de protecção alargada dos direitos fundamentais dos Recorrentes, uma vez que o carácter justo e equitativo do aresto do Tribunal Pleno decorreu do controlo intrínseco exercido por cada Juiz Conselheiro do catálogo dos direitos e liberdades fundamentais dos Recorrentes, que estavam em causa no acto de julgamento.
Acresce que uma leitura atenta do aresto permite a este Tribunal concluir que a decisão respeitou a opinião da maioria dos Juízes Conselheiros que compõem o Plenário, ainda que os que votaram vencido, porque não lhes foi dado o prazo legal para estudo do Processo, decidissem de modo diverso.
Também, o referido aresto conheceu de todas as questões ali levantadas pelos Recorrentes, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º da CRA e do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.
Desta feita, não assiste razão aos Recorrentes, porquanto, neste caso, não foi violado o direito material a julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA.
B) Direito à Integridade Pessoal e à Dignidade da Pessoa Humana
O Recorrente Augusto da Silva Tomás, diferentemente dos demais, alega que, no decorrer do julgamento na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal a quo, foi ultrajado e maltratado pelo Juiz da causa, tendo sido violado os seus direitos à integridade pessoal e à dignidade da pessoa humana, previstos e protegidos no artigo 31.º da CRA.
Ora, a República de Angola é um Estado de direito democrático, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, que tem como fundamento o primado da Constituição e da lei, conforme rezam as disposições dos artigos 1.º e 2.º da CRA.
Por isso, constitui tarefa fundamental do Estado defender e assegurar os direitos, liberdades e garantias fundamentais a todos os cidadãos, ao abrigo do preceituado na alínea b) do artigo 21.º da CRA.
A integridade pessoal, na realidade, é um direito inviolável e está relacionado com a garantia constitucional de os tribunais, ao administrarem a justiça em nome do povo, respeitarem e protegerem a pessoa e a sua dignidade humana.
Este direito (integridade pessoal) de primeira geração incorpora três valores constitucionais, nomeadamente a dignidade moral, a dignidade intelectual e a dignidade física, e vem igualmente protegido nos tratados internacionais, que proíbem toda e qualquer submissão do ser humano à tortura, penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, ao abrigo do artigo 5.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e do artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), aplicáveis ao ordenamento jurídico angolano ex vi dos artigos 13.º e 26.º, ambos da CRA.
Compulsados os autos, este Tribunal não vislumbra qualquer acto passível de avaliação constitucional em sede do presente recurso. Dito de outro modo, a plenitude do sentido de acesso à justiça corresponde ao direito de defesa dos interesses legalmente protegidos e ao respeito pelas competências dos órgãos do poder judicial em razão da matéria, para que seja assegurado a todos os cidadãos as garantias constitucionais do processo criminal ou cível.
Este Tribunal verifica que as questões alegadas pelo Recorrente resultam do decurso de um julgamento, onde poderão ter surgido estados emocionais exaltados. Isto pressupõe dizer que o Recorrente, ao particularizar o facto de não ter sido tratado com dignidade no julgamento pelo Juiz da causa, põe em causa a conduta do julgador e não o processo da decisão ora recorrida.
Com efeito, sendo o Estado defensor da integridade pessoal e da dignidade da pessoa humana, cuja eventual violação tenha ocorrido em sede de julgamento, goza o Recorrente do direito constitucional de lançar mão de outro mecanismo adequado de acesso à justiça, qual seja a avaliação da conduta do Magistrado Judicial por parte do órgão competente em matéria disciplinar.
Para casos similares, resulta claro do texto constitucional que cabe ao Conselho Superior da Magistratura Judicial o poder de exercer a acção disciplinar sobre os Juízes, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 184.º da CRA, sem prejuízo do que preceituam os artigos 1.º e 23.º da Lei n.º 14/11, de 18 de Março, que atribui à referida entidade a competência para fiscalizar, ajuizar e aplicar sanções sempre que se justificar.
Portanto, os factos aqui particularmente alegados pelo Recorrente não se subsumem a actos da competência deste Tribunal que possam, a menos, ser apreciados no presente recurso.
C)Princípio do Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efectiva, Direito ao Processo Equitativo e ao Contraditório
Sobre esta questão, os Recorrentes referem que requereram a instrução contraditória e a audição de declarantes, peritos e testemunhas, mas o pedido não foi atendido, e asseveram a inexistência de provas irrefutáveis de que praticaram os crimes de peculato, violação de normas de execução do plano e do orçamento, abuso de poder, participação económica em negócio e recebimento indevido de vantagens, por isso, ao serem condenados, o Tribunal recorrido eximiu-se da nobre vocação de fazer justiça equitativa.
Não sendo este Tribunal um terceiro grau de jurisdição, conforme estatui o artigo 180.º da CRA, cumpre analisar se, no acórdão ora posto em causa, o Tribunal ad quem foi parcial ou não respeitou o direito à ampla defesa, no estrito sentido da igualdade de armas e de oportunidade entre as partes, bem como o direito ao processo equitativo.
Ora, a igualdade de oportunidades e o uso equitativo de armas entre as partes processuais pressupõem o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva. Como é justo de ver, nos Estados democráticos de direito predomina o consenso de que não basta que se garanta o acesso dos cidadãos aos tribunais, mas, essencialmente, que lhes seja dada a possibilidade de defenderem os seus direitos e interesses legalmente protegidos, através de um processo jurisdicional equitativo, com previsão legal.
Segundo os ensinamentos de J.J Gomes Canotilho, o acesso ao direito, em termos gerais, reconduz-se, fundamentalmente, “ao direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar num prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de causas e outras”. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Ed., 6.ª Reimp., Almedina, 2003, pág. 433,
Ora, este Tribunal verifica que, quanto à alegada falta de instrução contraditória e audição de declarantes, peritos e testemunhas, os Recorrentes carrearam ao processo as provas pessoais, participaram em todas as audiências de produção de prova e foi-lhes permitido a inquirição de todas as testemunhas, declarantes e peritos arrolados, conforme demonstram os autos a fls. 3964 a 4067.
Sobre a invocada violação do direito de ampla defesa, importa analisar de forma particular o caso da Recorrente Isabel Cristina Gustavo Ferreira de Ceita Bragança, que denuncia a privação do seu direito à instrução contraditória, precisamente no que respeita à falta de audição de certas testemunhas. Mas os autos de fls. 3912 demonstram que foi respeitado o seu direito à instrução contraditória.
Sucede que a Recorrente indicou como testemunhas Procuradores Gerais Adjuntos da República, com participação directa na acusação, enquanto representantes do Estado, pelo que a Câmara Criminal, como tribunal de primeira instância, julgou, e bem, não os admitir, sob pena de, aí sim, incorrer na violação do direito a julgamento justo e conforme e, consequentemente, prejudicar a defesa, pois a parte que acusa não pode exercer, ao mesmo tempo, o papel de defensor da Arguida.
Em suma, e no geral, este Tribunal não corrobora com os Recorrentes sobre a alegada violação do direito de ampla defesa e do direito ao processo equitativo.
Ainda quanto à justiça equitativa, sendo uma concretização do princípio fundamental do julgamento justo e uma garantia jurídico-constitucional de defesa dos direitos dos cidadãos, é essencial explicitar o seguinte: o processo equitativo em Direito Constitucional implica a obrigação de existir uma acção judicial justa e definida por lei antes do cidadão responder criminalmente ou ser privado da sua liberdade, para que, observado o direito no decurso da audiência, discussão e julgamento, valorada a prova e feito o enquadramento jurídico-penal, seja aplicada a pena concreta com respeito às circunstâncias atenuantes e agravantes e outros elementos descritos no artigo 84.º do CP, nos termos do artigo 29.º da CRA, do artigo 10.º da DUDH e do artigo 14.º do PIDCP, conjugados com os artigos 13.º e 26.º, ambos da CRA.
O sentido material da garantia do processo equitativo conduz ainda ao direito a um processo prescrito na lei para todos, sem discriminação de qualquer espécie ou natureza e, essencialmente, a um processo justo e adequado, para que os autos em que os cidadãos respondam sejam positivamente informados pelos princípios da justiça constitucional.
Assim, entende este Tribunal Constitucional não assistir razão aos Recorrentes, uma vez que lhes foi assegurado o processo equitativo e o direito ao contraditório, nos termos dos artigos 29.º e 174.º, ambos da CRA.
D) Direito à Liberdade Física e Segurança Pessoal e Princípio da Igualdade
O Recorrente Augusto da Silva Tomás, diferente dos demais, alega que, por um lado, se encontra ilegalmente detido sem a retirada das suas imunidades parlamentares, o que viola os artigos 23.º, 36.º e 67.º, todos da CRA, bem como os artigos 9.º da DUDH e do PIDCP e, por outro, os prazos de prisão preventiva esgotaram-se, assim como a jurisdição do Juiz que prorrogou a referida medida de coacção pessoal.
No que concerne à alegada detenção ilegal com fundamento na falta de levantamento das imunidades parlamentares, o Plenário do Tribunal Constitucional, no âmbito do Processo n.º 697-A/2019, sobre o qual recaiu o Acórdão n.º 552/2019, negou provimento ao recurso impetrado pelo Recorrente, por não ter verificado, no Acórdão recorrido do Tribunal ad quem, a inobservância do princípio da presunção da inocência, do direito à liberdade física, dos princípios do contraditório e da proporcionalidade, muito menos da pretensa imunidade.
Em matéria de esgotamento dos prazos máximos de prisão preventiva e do poder de jurisdição do Juiz Conselheiro Presidente da causa que procedeu à prorrogação, este Tribunal já se pronunciou no Acórdão n.º 612/2020, proferido no âmbito do Processo n.º 790-B/2020, em que negou provimento ao recurso extraordinário de habeas corpus, pois não verificou a violação do direito à liberdade de ir e vir e do direito a não ser mantido em prisão preventiva fora dos prazos legalmente estabelecidos.
Dessa forma, as supra referidas decisões proferidas por este Tribunal fazem caso julgado quanto à questão das imunidades parlamentares, pelo que se torna despiciendo e inadmissível reapreciar esta matéria, nos termos dos artigos 47.º e 52.º, ambos da LPC.
Outrossim, alegam os Recorrentes que, no dia da notificação do Acórdão condenatório, agora impugnado, interpuseram o presente recurso com efeito suspensivo, mas, ainda assim, foi executado o mandado de condução ao estabelecimento prisional, aguardando, até ao momento, um pronunciamento do Tribunal recorrido em relação ao pedido de habeas corpus.
É útil aqui aclarar que o efeito suspensivo do recurso extraordinário de inconstitucionalidade susta os termos e a decisão recorrida, ao abrigo das disposições combinadas da alínea a) do artigo 44.º e do artigo 52.º da LPC.
No caso de Isabel Cristina Gustavo Ferreira de Ceita Bragança, este Tribunal, em sede do Acórdão n.º 623/2020, do Processo n.º 796-D/2020 – providência de habeas corpus –, deu provimento ao recurso interposto e, em consequência, ordenou que a Recorrente fosse restituída à situação carcerária em que se encontrava à data da decisão proferida pelo Plenário do Tribunal recorrido, nomeadamente o termo de identidade e residência.
Quanto aos Recorrentes Rui Manuel Moita e Manuel António Paulo, por Despacho de fls. 5874, proferido no âmbito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, com efeito suspensivo, foram restituídos à liberdade no dia 23 de Junho de 2020, mediante termo de identidade e residência, situação em que se encontravam à data do julgamento realizado pelo Plenário do Tribunal ad quem.
Tendo havido decisão, por via dos referidos Acórdão e Despacho jurisdicionais, sobre a questão do efeito suspensivo do recurso interposto e da tutela da liberdade, repondo a legalidade da situação carcerária dos Recorrentes visados, entende este Tribunal ser desnecessário reapreciar a alegada questão.
E) Princípio da Presunção da Inocência, Direito de Defesa e Direito a Não Autoincriminação
Alegam os Recorrentes que não ficou demonstrado nos autos que tenham criado um esquema para se apropriarem de verbas do CNC e que informaram a investigação do desconhecimento da existência de valores depositados nas suas contas bancárias, pelo que, por força do princípio da presunção da inocência, na sua vertente in dubio, pro reo, não deviam ser condenados, mas o Tribunal decidiu pela condenação, violando, de modo flagrante, princípios básicos inerentes às garantias processuais penais, tal como in dubio, pro reo absolvendo.
Nesta anotação, cumpre sublinhar que, de acordo com o sentido patente no n.º 2 do artigo 67.º da Constituição, se presume inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
Ora, o princípio da presunção da inocência representa uma das garantias fundamentais do processo penal, e corresponde ao sentido jurídico negativo de não atribuição da culpa ao cidadão digno de defesa, em toda a fase processual, senão após o trânsito em julgado da decisão condenatória, como também defende o recente Acórdão n.º 610/2020, deste Tribunal.
Ainda na linha de pensamento de Jorge Miranda e Rui Medeiros, o princípio da presunção de inocência “assenta na ideia-força de que o processo deve assegurar todas as necessárias garantias práticas de defesa do inocente e não há razão para não considerar inocente quem não foi ainda solene e publicamente julgado culpado por sentença transitada em julgado. Daqui resulta, entre outras consequências, a inadmissibilidade de qualquer espécie de culpabilidade por associação ou colectiva e que todo o acusado tenha direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular…”. In Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2005, págs. 722 e 723.
Por força deste princípio, o ónus de prova da culpabilidade do indivíduo recai sobre o órgão titular da acção penal, no caso concreto o Ministério Público, que deverá, na fase da instrução, ordenar todas as diligências tendentes à recolha de material probatório, visando sustentar a sua acusação e, na fase do julgamento, defender os factos e provas constantes do despacho acusatório.
Assim, no âmbito das garantias do processo criminal, a violação do princípio da presunção da inocência e da defesa acarreta a inobservância material dos princípios da prova e do contraditório, traduzido na ausência da recolha de provas, de actos instrutórios e da estruturação da audiência de julgamento que a lei penal define como sendo o momento em que se devem atender a todos os meios de prova apresentados pela acusação e defesa, em prol da descoberta da verdade material.
Todavia, compulsados os autos de fls. 3772 e seguintes, este Tribunal verifica que a acusação e a defesa foram chamadas a deduzir as suas razões de facto e de direito, a juntar provas, a responder às provas contra si oferecidas e a discorrer sobre o valor e o resultado de umas e outras provas.
Por outro lado, os elementos probatórios apresentados foram produzidos e discutidos em sede das diversas sessões de audiência, em condições de plena igualdade entre as partes da defesa e da acusação.
Em face disto, resulta evidente que os princípios da presunção da inocência e da ampla defesa foram respeitados, uma vez que houve, materialmente, a observância de um processo com base em provas constantes dos autos e discutidos em audiência de julgamento, sem exclusão do direito à plena igualdade de armas e de oportunidade, tal como entendeu o aresto impugnado.
Outrossim, os autos tornam evidente que os Recorrentes pretendem também questionar a valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido. Porém, como referido anteriormente, o presente Tribunal não é competente para conhecer dessa matéria, nem o Tribunal recorrido o poderia fazer, sob pena de violar o princípio da livre convicção do julgador e da imediação, a menos que, perante os factos provados e a motivação da decisão, se torne evidente para todos que a decisão recorrida era ilógica, arbitrária e violadora das regras da experiência comum.
Ora, como concluiu o aresto impugnado, não houve, por parte do Tribunal de primeira instância, qualquer erro nessa valoração.
De igual modo, vêm os Recorrentes alegar que o acórdão recorrido violou o princípio do contraditório, porque, para que fossem condenados pelo crime de peculato, sem suporte factual ou documental, foi necessária a transformação automática do relatório da IGAE em corpo de delito, contrariando a jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 122/10, que defende o seguinte: os inquéritos administrativos não podem ser integrados automaticamente na formação do corpo de delito….
Atento à transcrição do Acórdão supracitado, há que explicitar que o sentido da jurisprudência deste Tribunal Constitucional não se afere de parte de um texto extraído da decisão, mas da fundamentação completa da matéria em questão.
Certo disso, é de reiterar que o Acórdão acima mencionado firmou a jurisprudência (pág. 7) de que a conversão automática de um inquérito administrativo em autos de instrução preparatória e consequente uso de elementos nele contidos em desfavor do Recorrente viola o princípio nemo tenetur se ipsum accusare – ninguém é obrigado a acusar-se a si próprio –, a par do facto de os indícios de crimes participados às autoridades não terem sido objecto de instrução criminal formalmente autónomo do relatório da inspecção, não podendo, por esse facto, as provas da acusação gozarem do respaldo constitucional.
No caso presente, é, por isso, pertinente verificar se o relatório produzido pela IGAE foi ou não transformado em corpo de delito, se o procedimento criminal foi autónomo do relatório administrativo e se, em consequência, houve ou não violação do direito fundamental a não auto-incriminação.
Compulsados os autos de fls. 5, constata este Tribunal que a IGAE emitiu o Parecer n.º 01/IGAE/18, sobre a inspecção realizada ao CNC, que termina com a indicação de remessa do processo à Procuradoria Geral da República, a título de participação.
Consta dos autos a fls. 162 uma informação da Digna Representante do Ministério Público junto da DNIAP, esclarecendo que “a participação criminal da IGAE denunciou alguns membros da direcção e funcionários pela prática de irregularidades. Porém, tendo atenção que a IGAE é um órgão do Estado e que as inspecções realizadas no CNC têm a natureza meramente administrativa, as provas acopladas ao relatório de inspecção não poderão ser aproveitadas neste processo-crime, em homenagem ao princípio da proibição da auto-incriminação, previsto na alínea g) do artigo 63.º da CRA”.
Em razão desta informação e conforme denotam os autos de fls. 3775, foram recolhidas declarações dos Arguidos, ora Recorrentes, e promovidas várias diligências processuais da instrução preparatória, mormente emissão de mandados de revista, busca e apreensão de documentos e computadores junto do CNC e empresas relacionadas, pedidos de extractos bancários, audição de declarantes, solicitação de peritos na área de contabilidade e finanças e demais acções da fase contraditória.
Com base no que ficou dito, sucede que o respeito ao princípio da não autoincriminação está interligado com a defesa do princípio da intervenção mínima do direito penal, no sentido de acautelar a violação ou o enfraquecimento material do exercício do direito de defesa.
Em termos concretos, tendo havido, na fase da instrução processual, diligências que se mostraram inicialmente justas ao dever de apuramento da verdade material, a fim de serem consistentes os elementos probatórios nos autos, este Tribunal verifica que, a posteriori, foram produzidas provas na fase de audiência e julgamento, o que evidencia que as informações contidas na participação da inspecção não foram usadas contra os Recorrentes, assim como houve uma instrução criminal formal e materialmente independente.
Esta actuação do poder judicial é reflexo do cumprimento do dever de juntar provas constitucionalmente respaldadas no processo criminal, ou seja, oferecer provas que não tenham resultado da violação do direito constitucional de qualquer cidadão de não fazer confissões ou declarações contra si próprio.
Destarte, não assiste razão aos Recorrentes quando afirmam ter sido o relatório da IGAE transformado automaticamente em corpo de delito, pelo que este Tribunal não entrevê, no caso, a violação do disposto na alínea g) do artigo 63.º da CRA, conjugado com os artigos 8.º e 11.º da DUDH e o artigo 14.º do PIDCP, aplicáveis ex vi do artigo 26.º da CRA.
F) Direito ao Duplo Grau de Jurisdição
A este propósito, convém enfatizar a alegação dos Recorrentes de que o acórdão recorrido é inconstitucional, pois, do despacho de pronúncia, foi interposto recurso para o Plenário do Tribunal Supremo. Porém, o recurso foi apreciado e decidido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal, o que constitui, a seu ver, uma violação ao direito dos Recorrentes ao duplo grau de jurisdição.
Na verdade, o princípio do duplo grau de jurisdição é corolário do princípio do devido processo legal, também denominado princípio do due process of law, e encontra respaldo constitucional ao abrigo dos artigos 1.º e 2.º, ambos da CRA, que definem a República de Angola como um Estado democrático de direito, baseado na dignidade da pessoa humana e promotor e defensor dos direitos, liberdades e garantias fundamentais do homem, quer como indivíduo quer como membro de grupos sociais organizados.
Enfatize-se que, segundo Carolina Alves de Sousa Lima, “o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do Direito Processual Penal, é uma garantia jurídico-processual penal mínima a ser concedida a todos os acusados, nos casos de reexame da decisão penal condenatória”. Ou melhor, é um princípio “que garante, entre os seus pressupostos, o reexame da decisão judicial e também o princípio da ampla defesa”. In Princípio do Duplo Grau de Jurisdição, Editora Manole Ltda, 2004, Págs. 83-95.
De modo cristalino, o princípio do duplo grau de jurisdição vem plasmado no n.º 1 do artigo 67.º da CRA, segundo o qual é garantido a todos os arguidos ou presos o direito de defesa, de recurso e de patrocínio judiciário, e tem como objectivo assegurar aos particulares a possibilidade de sindicar em outra instância as decisões judiciais contra si proferidas, com vista a obter uma apreciação distinta e uma sentença justa.
Para além do artigo supracitado, são ainda relevantes, por força do preceituado no n.º 2 do artigo 26.º da Constituição, as normas de harmonia jurídica externa relativas aos direitos fundamentais, o que, de imediato, nos remete para o § 5.º do artigo 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de que Angola é parte e para a disposição da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos do Humanos e dos Povos, que deve ser interpretada e integrada em consonância com a defesa do princípio do duplo grau de jurisdição.
Da leitura dos autos, a fls. 4229, 4230, 4242, 4243 e 4395, resulta evidente que, no Processo n.º 02/2019, os ora Recorrentes arguiram a nulidade do acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal, que confirmou o despacho de pronúncia.
O recurso do despacho de pronúncia foi admitido, a fls. 4249, para que subisse nos próprios autos ao Tribunal Pleno, e os Recorrentes foram, a fls. 4251 a 4255, notificados da admissão, para apresentarem alegações correspondentes, como consta a fls. 4257, 4300 e 4320.
Contudo, a 23 de Abril de 2019, foi proferido novo despacho, a fls. 4345, que remeteu o recurso para julgamento na 3.ª Secção da Câmara Criminal e, por não caber recurso do despacho de admissão desta, os Recorrentes aguardaram pela decisão, que foi proferida a 16 de Maio de 2019, a fls. 4382, e dela recorreram para o Plenário.
Em face disso, o Tribunal defendeu, a fls. 4395, o indeferimento da arguição, porque, a seu ver, o recurso do despacho de pronúncia deve ser julgado pela Câmara, com vista a garantir a imparcialidade, a isenção e o julgamento justo do Plenário que deverá decidir a acção principal.
De facto, a alínea a) do artigo 33.º da Lei n.º 13/11, de 18 de Março, Lei Orgânica do Tribunal Supremo, estabelece que “compete ao Plenário do Tribunal Supremo julgar os recursos interpostos de decisões proferidas pelas Câmaras quando estas julguem em primeira instância”.
Não se pode também ignorar que o Tribunal Supremo funciona aqui como Tribunal de Primeira Instância e, nessa medida, o despacho de pronúncia é lavrado por um Juiz Conselheiro nas vestes de Juiz dessa primeira instância, aplicando-se as regras deste Tribunal.
O despacho de pronúncia é uma decisão a que cabe sempre recurso, entenda-se, aqui, uma decisão proferida pela Câmara, enquanto tribunal de primeira instância, e sujeita ao recurso para o órgão superior, designadamente o Plenário, enquanto Tribunal Pleno.
Portanto, o despacho de pronúncia não é uma decisão proferida por um conjunto de Juízes, porquanto estes só decidem em colégio de três Juízes Conselheiros quando se trata de sentenças, o que não é o caso. Está-se perante uma decisão de um Juiz da Câmara que, por implicar recurso, não pode ser objecto de julgamento pelos pares, mas por um órgão superior a estes, por isso, da decisão da Câmara Criminal implica recurso para o Plenário do Tribunal Supremo.
Todavia, convém sublinhar que o despacho de pronúncia não é uma decisão judicial susceptível de ofender o princípio do duplo grau de jurisdição.
Contudo, importa indagar se o procedimento adoptado representa uma inconstitucionalidade. Ou seja, se a Câmara Criminal, não tendo competência para o efeito, praticou um acto que inquina de inconstitucionalidade o acórdão recorrido.
A competência, sendo um dos pressupostos relativos ao tribunal, tal como a jurisdição, pode ser: 1) material, 2) territorial e 3) funcional.
A incompetência, enquanto uma das excepções, é tida também como incidente processual. Os incidentes processuais têm natureza adjectiva ou processual, são questões acessórias, questões laterais, porque são alheias ao fundo da questão principal e, por isso “serão deduzidas ou conhecidas em qualquer altura do processo até decisão final”, nos termos do artigo 140.º do CPP.
Por outro lado, no caso vertente, não se pode deixar de considerar que, nos termos do § 3.º do artigo 99.º do CPP, “Os tribunais superiores poderão sempre julgar suprida qualquer nulidade que não afecte a justa decisão da causa”. Significa isto dizer que, com a intervenção de um Tribunal superior, no caso concreto, o Plenário do Tribunal Supremo, fica tacitamente sanada qualquer nulidade que pudesse afectar o acórdão recorrido.
Na verdade, a norma do n.º 1 do artigo 201.º do CPC também vem determinar que “…a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Os autos a fls. 4395 denotam que o Tribunal recorrido arregimentou o fundamento de que só devia atender a arguição da nulidade do acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal se a referida nulidade influísse no exame e decisão da causa.
Este Tribunal sufraga a disposição legal do CPC supracitada, porque está alinhada com os princípios da legalidade e da vigência de leis anteriores à Constituição de 2010, previstos nos artigos 6.º e 239.º, ambos da CRA, sem prejuízo de aduzir que no Acórdão recorrido, o Tribunal ad quem, por ter conhecido da matéria do despacho de pronúncia e julgado de facto e de direito o Processo n.º 100/2019, sanou o vício da incompetência verificada, não havendo, por isso, qualquer inconstitucionalidade.
Assim, a Câmara Criminal, a fls. 4201 e seguintes, lançou mão a um expediente procedimental que só contenderia com o direito material ao recurso, constituindo, deste modo, uma inconstitucionalidade, se a incompetência não tivesse sido sanada pelo Tribunal Pleno.
Por isso, não procede a alegação dos recorrentes de que foi violado o direito material ao duplo grau de jurisdição, uma vez que foi observado o princípio do devido processo legal.
G) Princípios da Não Retroactividade da Lei, da Legalidade, da Fundamentação das Decisões e da Livre Apreciação da Prova
Os Recorrentes alegam que o Tribunal recorrido qualificou os supostos crimes de peculato, participação económica em negócios, abuso de poder e outros em que foram julgados como crimes continuados, sem especificar a data da sua prática, a uniformidade da conduta e a conexão temporal, e que, se os tivessem praticado, tais crimes estariam amnistiados pela Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, levando o Tribunal a não aplicar retroactivamente nenhuma lei penal.
Com efeito, as garantias dos direitos e liberdades fundamentais abarcam as regras da aplicação da lei criminal no tempo, cujas disposições dos nºs 2 e 3 do artigo 65.º da CRA são explícitas quando proclamam que ninguém pode ser condenado por crime senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão….” e “não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas por lei anterior, respectivamente.
Estes preceitos constitucionais, em que se enquadra o brocardo latino nullum crimen sine lege – não há crime sem lei, artigo 5.º do CP –, contemplam excepções, baseadas sobretudo no entendimento de que a lei pode ser aplicada retroactivamente desde que desta aplicação resulte uma situação mais favorável ao réu, como sustenta o n.º 4 do artigo 65.º da CRA.
Terá havido violação do princípio da não aplicação retroactiva da lei?
Para uma análise jus-consentânea das alegações dos Recorrentes, este Tribunal entende que é indispensável não perder de vista que o direito ao processo baseado em lei anterior, que tipifica os crimes, está intrinsecamente relacionado com o dever de fundamentação das decisões por parte dos tribunais, em nome do princípio do Estado democrático de direito, nos termos do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 67.º, ambos da CRA.
A fundamentação judiciosa da acusação, da pronúncia e da decisão visa não só aclarar os direitos e persuadir as partes, no que se refere à bondade do acto de julgamento do poder judicial público, como, de igual modo, assegurar a justiça efectiva e o recurso, que será melhor interposto se os arguidos tiverem acesso às razões fundadas da sentença.
Por isso, o dever de fundamentar os arestos obriga do julgador, após apreciação livre das provas, segundo a sua justa e legal convicção acerca de cada circunstância e facto, escalpelizar todas as razões de facto e de direito, e o horizonte temporal dos crimes, finalmente condizentes com a decisão que vai proferir.
Esta decisão judicial, como nota Abílio Neto, não é, nem pode ser, um acto arbitrário, mas a concretização da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional. As partes necessitam saber a razão ou as razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente previstos. In Código do Processo Civil Anotado, 21.ª Edição, Ediforum, 2009, pág. 950.
No mesmo diapasão, refere Helena Cabrita que a convicção vertida na decisão não poderá ter por base critérios arbitrários, irracionais ou ilógicos, exigindo-se o contrário, que a mesma esteja ancorada nas regras da experiência de modo a que possa ser explicitável e compreensível através da fundamentação da decisão. In A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, 2015, pág. 187.
O direito a uma decisão fundamentada é, também, inerente ao dever de sujeição dos tribunais ao princípio da legalidade e de subordinação à Constituição, que abarca a obrigação destes respeitarem e fazerem respeitar a lei e estarem comprometidos com a defesa dos direitos fundamentais e dos interesses legítimos dos cidadãos consignados na Lei Magna.
No caso sub judice, o Tribunal ad quem assentou a sua decisão em leis vigentes, que cominam os factos típicos, tais como o uso ilegal do erário público na aquisição de bens e participações sociais em sociedades e suprimento de défices orçamentais de empresas privadas, negócio consigo próprio, recepção de gratificações, fretes de aeronaves, como crimes de peculato, violação de normas de execução do plano e orçamento, recebimento indevido de vantagem, abuso de poder e participação económica em negócio, provas documentais dos actos praticados por cada um dos Recorrentes, constantes de fls. 3 a 591 dos Anexos XI e XXVIII, fls. 45 a 3783, bem como de fls. 5439 a 5483, dos autos.
Por sua vez, o artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, dispõe o seguinte: 1. As decisões dos Juízes sejam por via de acórdãos, sentenças ou meros despachos são sempre fundamentadas de facto e de direito. 2. A fundamentação não pode consistir na mera evocação de uma norma legal nem na adesão, por parte do juiz, às razões e alegações evocadas por qualquer das partes, incluindo o Ministério Público.
Este Tribunal constata que o acórdão posto em causa contém, a fls. 5473-5474, passagens tais como “…podemos concluir, sem qualquer margem para dúvidas, que os factos estão perfeitamente localizados no tempo, ao referir que se apropriaram de 2008 a 2017 de determinadas verbas pertença do Estado angolano e, por isso, vêm acusados de crimes na forma continuada, mormente o de peculato” e “tendo a actuação dos mesmos prolongado até 2017…”.
Apesar de o texto supratranscrito não ser suficientemente preciso quanto a cada ano e lugar em que os factos ocorreram, e uma vez que isto não constitui uma irregularidade processual, à luz do artigo 100.º do CPP, é entendimento deste Tribunal que o aresto recorrido não violou o princípio da fundamentação, sobretudo porque o Tribunal ad quem, na análise da matéria de facto, feita a fls. 5452 a 5465 do Acórdão, especificou, de forma clara e objectiva, os fundamentos e o horizonte temporal dos crimes praticados.
Portanto, não é de acolher o argumento apresentado pelos Recorrentes, segundo o qual o acórdão proferido pelo Tribunal ad quem está eivado do vício da falta de fundamentação.
Os Recorrentes acrescem, ainda, que os actos julgados foram praticados antes da entrada em vigor da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, Lei de Amnistia. Assim sendo, encontram-se amnistiados os crimes visados nos artigos 313.º e 437.º, ambos do CP, bem como na Lei n.º 3/10, de 29 de Março, Lei da Probidade Pública, na Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro, Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento ao Terrorismo e na Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro, Lei sobre a Criminalização das Infracções Subjacentes ao Branqueamento de Capitais.
Porém, também neste aspecto não se pode acompanhar os Recorrentes, porquanto, tratando-se de crimes na forma continuada ocorridos até 2017, a data a atender para efeitos de aplicação da Lei da Amnistia é a do último acto praticado dos que integram a unificação jurídica, ou seja, o ano de 2017.
Em resumo, o acórdão do Tribunal ad quem está em conformidade com a Constituição e as decisões contêm fundamentos de direito que não padecem de inconstitucionalidades face aos princípios da legalidade e da subordinação dos actos do Estado (Tribunais) à Lei Fundamental, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º da CRA.
Este Tribunal conclui que o Acórdão impugnado não violou os pressupostos elementares do Estado democrático e de direito, atinentes, principalmente, às garantias substantivas do processo penal, tais como o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o direito à julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 29.º e 72.º, ambos da CRA, bem como no artigo 14.º do PIDCP.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 2 de Fevereiro de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel M. da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata