ACÓRDÃO N.º 665/2021
PROCESSO N.º 806-B/2020
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade - habeas corpus
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
João dos Santos Agostinho José, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que indeferiu a providência de habeas corpus, que aí correu termos sob o Processo n.º 495/20.
Consta dos autos que o Recorrente foi detido a 13 de Dezembro de 2018, por suspeita da prática de um crime de violação, p.p. pelo artigo 393.º do Código Penal (CP), tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção penal mais grave, com o fundamento na gravidade dos factos e no perigo de perturbação da instrução do processo.
Não se conformando com a medida de coacção aplicada, requereu a substituição da mesma, o que foi concedido pelo Juiz de Turno, que mandou substituir a prisão preventiva pelo Termo de Identidade e Residência, tendo o Recorrente sido solto a 23 de Janeiro de 2019.
A 2 de Setembro de 2019 foi acusado, em Despacho do Ministério Público, pela prática do crime de Violência à Integridade Física, p.p. pelos artigos 3.º n.º 2 alínea e) e 25.º n.º 1, alínea a) e n.º 2, todos da Lei n.º 25/11, de 14 de Julho – Contra a Violência Doméstica, em concurso com o crime de Violação, p.p. pelo artigo 393.º do CP.
A 5 de Setembro de 2019 foram os autos introduzidos em juízo e a 21 de Novembro de 2019 foi o Recorrente pronunciado pelos mesmos crimes de que vinha acusado, tendo nessa altura, o juiz da causa, ordenado a sua prisão preventiva, o que veio a acontecer pela segunda vez nos autos. Para fundamentar a sua decisão, o juiz da causa alegou o receio de perturbação da instrução do processo e o facto de o arguido vir acusado e pronunciado por crime doloso, punível com pena de prisão maior.
Do Despacho de Pronúncia o arguido apresentou recurso, que foi indeferido por extemporaneidade.
A 17 de Janeiro de 2020, interpôs, o Recorrente, junto do Tribunal Supremo, a providência extraordinária de habeas corpus, em que concluiu que a liberdade provisória era a medida de coacção mais justa, equilibrada, adequada e consentânea com a realidade do processo penal e do caso concreto, não constituindo fundamento isolado para a aplicação da medida de prisão preventiva o facto de o crime de que vinha pronunciado ser grave, bem como não haver qualquer possibilidade material de perturbação, ou incumprimento de obrigações que lhe tinham sido impostas durante o tempo em que esteve submetido à liberdade provisória.
O Tribunal Supremo, em Acórdão proferido a 15 de Abril de 2020, negou provimento à providência requerida, com o fundamento de que não se encontravam preenchidos os requisitos taxativamente previstos no artigo 315.º, § único, do Código de Processo Penal (CPP) e não se verificava, à altura da interposição da providência, qualquer violação aos prazos previstos no artigo 40.º n.º 1 da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP).
Deste Acórdão interpôs, o Recorrente, o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, em que alegou, essencial, que:
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente foi requerente da providência de habeas corpus que correu os seus termos na 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, com o n.º 495/20, pelo que é parte legítima, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é apreciar se o Acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 495/2020, ofendeu princípios ou violou direitos constitucionalmente protegidos.
V. APRECIANDO
A CRA determina as circunstâncias em que a liberdade de quaisquer cidadãos pode ser restringida, merecendo neste sentido o disposto nos artigos 57.º, 58.º, e 68.º, todos da Lei Magna da República de Angola.
Como é sabido, a providência de habeas corpus, com tutela constitucional no artigo 68.º da CRA, é uma providência extraordinária expedita destinada a assegurar, de forma especial, o direito à liberdade constitucionalmente garantido e que visa reagir de modo imediato e urgente, contra o abuso de poder em virtude de detenção ou prisão, efectiva e actual, ferida de ilegalidade. (Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, in Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, anotações ao artigo 68.º, págs. 388 a 390).
O pedido de declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido assenta sobre as conclusões que, por força do disposto no artigo 690.º do CPC, aplicável subsidiariamente ao Processo Constitucional ex vi artigo 2.º da LPC, delimitam as questões a conhecer no presente recurso.
Assim sendo, temos por assente que o Recorrente fundamenta, em primeira linha, o seu recurso e as inconstitucionalidades suscitadas, com a alegação de que o despacho de pronúncia, ao mandar substituir a medida de coacção penal pela mais grave, violou a lei, nomeadamente o artigo 279.º do CPP, que aparece repetidamente indicado por lapso, uma vez que da transcrição feita pelo próprio Recorrente a fls. 62 é possível verificar que se trata do artigo 273.º do CPP, com a redacção do Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de Maio. Isto porque, esta disposição legal só permite a revogação da liberdade provisória, após culpa formada, quando se verifique a inobservância das obrigações impostas, nos termos estabelecidos para a liberdade provisória antes da culpa formada.
Por outro lado, considera o Recorrente que, por força do princípio da unidade do prazo legal, consagrado no artigo 23.º, n.º 2, da LMCPP, o prazo da prisão preventiva deveria ser contado como se não tivesse havido interrupção, ou seja, desde 13 de Dezembro de 2018, pelo que à data de interposição da providência cautelar já se encontravam vencidos os prazos estabelecidos no n.º 1 do artigo 40.º da LMCPP.
Por essas razões, conclui que a sua prisão preventiva seria duplamente ilegal, pelo que o aresto recorrido, ao decidir em sentido contrário, violou os preceitos constitucionais dos artigos 68.º, 67.º e 64.º da CRA, violando assim os seus direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstos.
Antes de mais, parece-nos cristalino que o artigo 273.º do CPP, apresentado pelo Recorrente como “…preceito angular da liberdade provisória no ordenamento processual penal angolano…” foi derrogado pela disposição do artigo 36.º da LMCPP, que passou a estabelecer, no seu número 1, que “O Magistrado do Ministério Público pode impor ao arguido a medida de prisão preventiva quando considerar inadequadas ou insuficientes as medidas de coacção estabelecidas nos artigos antecedentes e existirem fortes indícios da prática de um crime doloso, punível com pena de prisão maior superior a (3) três anos, ou pelo não cumprimento das obrigações a que o arguido em liberdade provisória está sujeito.” Ademais, este fundamento não foi apresentado em primeira instância ao Tribunal Supremo, pelo que não era exigível a este pronunciar-se sobre esta alegada causa de ilegalidade da medida de prisão preventiva.
No tocante ao defendido excesso da prisão preventiva que alegadamente se verificava à altura da interposição da providência extraordinária em causa, verifica-se que o Recorrente esteve preventivamente preso, pela primeira vez, no período compreendido entre 13 de Dezembro de 2018 a 23 de Janeiro de 2019, tendo a medida sido substituída pela de Termo de Identidade e Residência por decisão do Juiz de Turno. Este primeiro período perfaz 41 (quarenta e um) dias de prisão preventiva.
Entretanto, a 9 de Dezembro de 2019 foi novamente sujeito à medida de coacção mais grave, aplicada em Despacho de Pronúncia, pelo que, à data de interposição da providência de habeas corpus (17 de Janeiro de 2020), teriam decorridos mais 40 dias de prisão preventiva, o que perfaz um total de 80 (oitenta) dias.
Os prazos de prisão preventiva estão estabelecidos no artigo 40.º da LMCPP, que referem que deve cessar quando desde o seu início decorrerem 12 (doze) meses sem condenação em primeira instância, sendo que este prazo pode ser acrescido de dois meses em casos de especial complexidade, por despacho devidamente fundamentado.
Dispõe o n.º 2 do artigo 23.º da LMCPP que, em caso de reaplicação de uma medida cautelar, deve ser respeitada a unidade do prazo legal, que se conta como se a medida não tivesse sido interrompida. Não parece resultar dúvida de que os prazos legais referidos nessa norma, como devendo ser contados como um único, são os da mesma medida de coacção aplicada em mais de um momento. Portanto, não faz qualquer sentido a interpretação segundo a qual deverá computar-se o tempo em que o arguido estiver submetido a outra medida de coacção, com excepção do tempo de detenção e prisão domiciliar, segundo o que dispõe o n.º 4 do artigo 40.º da LMCPP.
Só assim, se compreenderá a norma do n.º 2 do artigo 42.º da LMCPP que estabelece a possibilidade de o Magistrado competente impor ao arguido uma ou mais medidas de coacção previstas nos artigos 26.º, 27.º 28.º e 32.º quando a prisão preventiva se extinguir por se terem esgotado os prazos do artigo 40.º do mesmo diploma legal.
Assim sendo, ao tempo da interposição do recurso, os prazos legais da medida de prisão preventiva estavam a ser respeitados.
Entretanto, o Tribunal Constitucional tomou conhecimento que a primeira sessão da audiência de julgamento do Recorrente teve lugar no dia 18 de Março de 2020, tendo sido condenado a 30 de Dezembro do mesmo ano, à pena única de 8 (oito) anos de prisão maior, pela prática dos crimes de violação e ofensas a integridade física. Contudo, esta decisão foi objecto de recurso ordinário apresentado pelo arguido, ora Recorrente, e pelo Ministério Público, por imperativo legal.
Aqui chegados e dilucidada a questão nos termos supra relatados, este Tribunal julga pela improcedência do recurso, por não se ter verificado, no Acórdão recorrido, qualquer violação dos seus direitos fundamentais.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos da segunda parte do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC).
Notifique.
Plenário do Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 2 de Março de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima d’A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Relatora)