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ACÓRDÃO N.º 667/2021

PROCESSO N.º 791-C/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade 

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 I. RELATÓRIO

Cláudio da Conceição Francisco, com os demais sinais de identificação nos autos, veio impetrar recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão do Supremo Tribunal Militar, prolatado no âmbito do Processo n.º 49/STM/2018, que decidiu pela manutenção da pena aplicada em primeira instância e, igualmente, pela sua condenação na pena acessória de demissão, nos termos da segunda parte do n.º 3, do artigo 7.º da Lei n.º 4/94, de 28 de Janeiro, Lei dos Crimes Militares.

Em processo que correu trâmites no Tribunal Militar da Região Sul, no Lubango, o Recorrente, afecto ao Comando Provincial da Polícia Nacional, colocado no SIC, foi condenado na pena de dois anos de prisão, acusado da prática do crime de insubordinação, previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 4/94, de 28 de Janeiro, tendo recorrido desta decisão por a considerar eivada de irregularidades e inconstitucionalidades, fundamentos que o aresto ora impugnado não atendeu.

Subjacente à condenação, está o facto de o Tribunal de primeira instância ter dado como provado que o Recorrente se recusou a cumprir ordem superiormente baixada, relacionada com o recebimento de dois processos crime para efeitos de diligências e investigação, alegando não dispor de condições de trabalho no seu gabinete, por este oferecer elevado risco de contrair tuberculose pulmonar, devido às péssimas condições de higiene e ao cheiro nauseabundo insuportável que provinha de quartos de banho próximos.

Desta sorte, inconformado e arguindo ter sido condenado injustamente, o Recorrente alicerça o seu pedido de inconstitucionalidade, junto deste Tribunal Constitucional, à luz dos argumentos que, em síntese, se enunciam:

i. O Tribunal a quo, ao decidir que o aqui Recorrente deveria obedecer à ordem do seu superior hierárquico, agiu com violação aos artigos 1.º, (princípio da dignidade), 30.º (direito à vida), 39.º (direito ao ambiente) e 76.º (direito ao trabalho), todos da Constituição da República de Angola, CRA.

ii. O Tribunal a quo violou o preceituado no artigo 72º. da CRA (direito a julgamento justo e conforme) ao não avaliar, com a devida ponderação, os resultados de uma inspecção judicial que visou apurar as condições de higiene do gabinete, realizada seis meses após a data dos factos de que foi acusado, por confronto com as declarações do ora Recorrente e da declarante Beatriz Fernandes, a fls. 97 dos autos.

iii. O Tribunal a quo não fez uso do seu dever de aplicação directa da Constituição, previsto no n.º 1 do artigo 28.º da CRA, para priorizar a protecção constitucional devida ao direito à vida e à dignidade da pessoa.

Em face do alegado, o Recorrente termina pedindo que o Acórdão objecto da presente sindicância seja declarado inconstitucional, por violar o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos à vida, ao ambiente e ao trabalho, bem como o direito a julgamento justo e conforme, consagrados, respectivamente, nos artigos, 1.º, 30.º, 39.º, 76.º e 72.º, todos da Constituição da República de Angola.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais cumpre, agora, apreciar e decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos.

Não cabendo da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Militar recurso para outra instância inserida na jurisdição militar, esgota-se, deste modo, a cadeia recursória.

III. LEGITIMIDADE

A Lei do Processo Constitucional, Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, na alínea a) do artigo 50.º, atribui legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade ao Ministério Público e às pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

O Recorrente é parte vencida na acção de recurso para o Supremo Tribunal Militar. Tem, por isso, legitimidade processual activa para interposição deste recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO 

Constitui objecto do presente recurso extradordinário de inconstitucionalidade, verificar se o Acórdão do Supremo Tribunal Militar violou princípios e direitos consagrados na Constituição da República de Angola.

V. APRECIANDO

Questão prévia

Embora o Recorrente requeira a impugnação do aresto prolatado pelo Supremo Tribunal Militar, o que, como decisão de última instância, conforma o objecto do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para efeitos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, os fundamentos que alicerçam o respectivo pedido são apresentados com referência à decisão do Tribunal de primeira instância, pese o facto de o Tribunal recorrido ter decidido pela aplicação da pena acessória, ao abrigo da segunda parte do n.º3 do artigo 7.º da Lei n.º 4/94, Lei dos Crimes Militares (LCM)

Não obstante e porque o objecto do Acórdão ora posto em crise é o aresto da primeira instância, no caso o proferido pelo Tribunal Militar da Região Sul, este Tribunal Constitucional considera que os fundamentos trazidos à liça não impedem a apreciação da sindicância ora requerida.

Apreciação do Pedido

O pedido de declaração de inconstitucionalidade suscitado no presente processo repousa, fundamentalmente, na relação essencial que se estabelece entre a condenação e a prova produzida e validada em audiência de julgamento. No caso sub judice está, pois, em causa a condenação pela prática do crime de insubordinação e o exercício de ponderação do Tribunal relativamente à avaliação do acervo probatório que sustenta a respectiva decisão condenatória.

Consequentemente, entende o Recorrente que no referido exercício o Tribunal ad quem deveria ter feito recurso ao artigo 28.º da CRA para proteger a sua dignidade enquanto ser humano e salvaguardar direitos fundamentais como o direito à vida, o direito ao ambiente e o direito ao trabalho, o que, não tendo acontecido, acarretou não apenas a violação dos direitos em causa, como também a violação do direito ao julgamento justo e conforme.

Assim, quid iuris?

Antes de tudo, importará considerar que o Recorrente foi julgado e condenado na sua qualidade de integrante de uma instituição, a Polícia Nacional que, vocacionada para assegurar a garantia da ordem e, concomitantemente, a defesa da segurança e tranquilidade públicas., se encontra organizada na base da hierarquia e da disciplina (artigo 210.º da CRA).

Estes dois valores, a hierarquia e a disciplina, configuram, assim, princípios estruturantes organizacionais, de base constitucional, deste tipo de instituição, sendo tidos como essenciais e indispensáveis para o seu funcionamento e determinantes (além de outros) para aferir da especificidade das relações jurídicas que neste contexto se estabelecem.

Daqui decorre, consequentemente e a exemplo, a especial relação de sujeição a que estão submetidos os membros da Polícia Nacional, das Forças Armadas ou das instituições para-militares, que é regida no quadro de um estatuto especial. Isto é, um estatuto que, no plano dos direitos, garantias e liberdades fundamentais, é susceptível de se diferenciar do estatuto geral que caracteriza a relação fundamental que qualquer pessoa ou cidadão estabelece com o Estado. (Vide José de Melo Alexandrino, in Direitos Fundamentais, Introdução Geral, edições Principia, pág. 141). Um estatuto de que podem resultar restrições ao exercício de alguns direitos fundamentais e a imposição de mais deveres e obrigações do que aqueles que resultam para o cidadão como tal, nas palavras de JJ Gomes Canotilho. (Vide citação, in Direito Militar, Função Militar e Justiça Militar, Edições Almedina, pág. 55).

Em suma, é à luz dos pilares estruturantes da organização das forças de defesa e da segurança nacionais que se atribui especificidade própria ao designado ordenamento jurídico militar, cujos normativos legais visam, assim, tutelar os interesses e bens jurídicos característicos desta ordem jurídica, entre os quais os que estão subjacentes à relação de hierarquia e disciplina.

No crime de insubordinação, pelo qual o Recorrente foi julgado e condenado, está exactamente em causa a tutela directa da garantia da disciplina e do respeito pelo comando hierárquico, o que impõe, em consequência, um especial dever de obediência aos sujeitos da relação hierárquica de sujeição. De tal sorte que, mesmo em situação de risco para a vida do seu destinatário, alguns ordenamentos jurídicos militares obrigam ao cumprimento imperativo de ordem emanada de superior hierárquico, sendo que o crime de insubordinação só não se dá por consumado quando do dever de obediência resultar o cometimento de acto manifestamente criminoso.

Não obstante e como ensina José de Melo Alexandrino na obra acima citada, a págs. 142, a integração de alguém numa relação de estatuto especial não afecta a titularidade de direitos fundamentais (…), na medida em que se considera que este tipo de relação é permeável à validade de tais direitos e não deve, por conseguinte, considerar-se excluída da aplicabilidade das normas de direitos fundamentais.

Ora, o Recorrente justifica o incumprimento de uma instrução do seu superior hierárquico para, como alega, salvaguardar a sua dignidade e os direitos fundamentais objecto de tutela constitucional, acima identificados, (direitos à vida, ao trabalho, ao ambiente, entre outros).

Tendo em conta as condições do local de trabalho, acatar a instrução do superior hierárquico significaria, na perspectiva do Recorrente, atentar contra o seu direito à vida, (artigo 30.º da CRA). Este é, como se sabe, um direito maior, consagrado em múltiplos instrumentos legais internacionais de direitos humanos, como a Carta Africana dos Direitos Humanos e do Povos (artigo 4.º). Um direito que garante o exercício dos demais direitos fundamentais, ou seja, é a fonte através da qual todos os outros direitos fluem (…), tal como expresso pela Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. À semelhança dos outros direitos e garantias fundamentais, tem na dignidade da pessoa humana o seu fundamento ético e normativo.

O direito à vida manifesta-se, assim, em diferentes planos da acção humana e a ele está intrinsecamente associado, como consequência natural, um dever de protecção, por parte dos poderes públicos, contra actos ou situações que coloquem em perigo o bem vida ou, ainda, o dever de criar condições que assegurem uma existência com dignidade.

Nesta perspectiva, é possível dimensionar a protecção do direito à vida a partir de condições que garantam a justa remuneração (artigo 76.º, n.º 2), o direito à higiene e segurança no trabalho (artigo 76.º, n.º 2 da CRA) ou o direito a um ambiente sadio (artigo 39.º da CRA). Aliás, esta é também a interpretação que a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos faz do direito à vida, já que refere que este direito inclui, entre outros, os direitos à dignidade, ao sustento, ao ambiente sadio ou o direito à assistência médica (ver Aua Baldé, in Sistema Africano de Direitos Humanos e a Experiência dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, edição da Universidade Católica Portuguesa, pág 89).

Assim sendo, da arguição da violação do direito à vida, resultaria, in casu,  a consequente afectação dos direitos que o Recorrente considera terem sido violados, isto é, os direitos à dignidade, ao trabalho, ao ambiente sadio e, mais concretamente, o direito à higiene e segurança no trabalho, na medida em que materializam dimensões de protecção do direito à vida. Isto por um lado. Resultaria, por outro, a alegada violação do direito a julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA), pelo não reconhecimento, tanto em sede do Tribunal ad quem como do Tribunal ad quo, da violação dos direitos fundamentais em causa.

Ora, e como tem sido compreendido por este Tribunal Constitucional, o direito a um julgamento justo e conforme é, desde logo, um pressuposto do próprio Estado Democrático de Direito e corolário do princípio da tutela jurisdicional efectiva. Pode, assim, ser aferido tanto na sua dimensão material como processual, onde são de incluir, entre outros, as garantias de imparcialidade e independência, os direitos à ampla defesa, ao contraditório, à igualdade de armas, à prova e também o direito à prolação de decisão em conformidade com os pressupostos legais, seja ela no sentido requerido pelas partes processuais ou não.

Nesta medida, a actividade probatória, inerente ao próprio formalismo processual, afigura-se central na conformação do direito ao julgamento justo e conforme, quer enquanto pressuposto para a obtenção da verdade material, quer como mecanismo de controlo da decisão judicial, por meio da devida e obrigatória fundamentação da matéria de facto.

A prova apresenta-se, por conseguinte, como pressuposto e fundamento da decisão judicial, pelo que qualquer decisão de condenação, de reconhecimento de um direito ou absolutória deve estar sustentada na prova produzida em julgamento, sob pena de colocar em causa a imprescindível e necessária segurança jurídica. Este entendimento vem, igualmente, reflectido nos Princípios e Directrizes sobre o Direito a Julgamento Justo e Assistência Jurídica em África, adoptados pela Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, em Maio de 2003, onde se estabelece, ainda que a propósito da imparcialidade do julgador, que o órgão judicial deve basear as suas decisões exclusivamente em provas objectivas, argumentos e factos que lhe foram apresentados.

No caso sub judice, os autos revelam que o Recorrente, em audiência de julgamento, não logrou contrariar a prova dos factos que lhe eram imputados, quer porque nunca trabalhou na sala que alegava exalar um cheiro desagradável susceptível de perigar a sua saúde, como referiu (vide fls. 95), quer porque não resultou provado que da referida sala de trabalho brotava o dito odor (vide fls. 99).

Ora, independentemente das distintas fases processuais, a convicção do Tribunal forma-se, como é sabido, a partir da prova produzida em audiência de julgamento, norteada que é, entre outros, pelos princípios da oralidade, do contraditório e da imediação, permitindo este último, em particular, o contacto directo entre o julgador e os meios de prova submetidos à sua apreciação.

Deste modo, em face do que resultou provado em julgamento e dos demais elementos que constam do processo atinentes à observância das normas processuais que regulam o exercício do ius puniendi, entende este Tribunal Constitucional não existirem fundamentos de direito para colocar em causa o juízo de ponderação do Tribunal da causa relativamente à valoração da prova que determinou a condenação do Recorrente e firmar, em consequência, um juízo de inconstitucionalidade nos termos requeridos.

Tal significa, assim, que não se verifica a pretendida lesão dos direitos fundamentais arrolados pelo Recorrente, nem a inobservância da obrigação constitucionalmente consagrada de aplicação directa dos preceitos constitucionais referentes aos direitos, liberdades e garantias nos feitos submetidos à decisão de qualquer Tribunal (artigo 28.º da CRA).

Nestes termos,

 DECIDINDO 

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:  

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 2 de Março de  2021. 

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

 

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel do Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima d’A. B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra.  Victória Manuel da Silva Izata