ACÓRDÃO N.º 668/2021
PROCESSO N.º 850-B/2020
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
João Alves Afonso, melhor identificado nos autos, interpôs recurso extraordinário de inconstitucionalidade neste Tribunal Constitucional do acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 2301/18 da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que absolveu o Réu Barnabé André que vinha acusado da prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 407.º do Código Penal.
Invocou a violação, por parte daquela decisão, do princípio do dever de fundamentação da decisão judicial que decorre directamente do Estado de Direito, princípio do artigo 2.º da Constituição da República de Angola (CRA) e das garantias previstas nos artigos 22.º, n.º 3, alínea a), 26.º, n.º 2 e 3, 29.º, n.º 1, 31.º, n.º 1 e 2, 32.º, n.º 1 e 2, 72.º e 177.º, n.º 1, todos da CRA, bem como do art.º 158.º do Código do Processo Civil (CPC), isto porque a Câmara Criminal do Tribunal Supremo manteve a decisão da primeira instância, por considerar ter andado bem, sem, no entanto, fundamentar a razão por que assim concluiu.
Deste modo, pugna pelo provimento do recurso e revogação do acórdão recorrido.
O Processo foi à vista do Digníssimo Magistrado do Ministério Público que se pronunciou pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos alínea a) e do § único do artigo 49.º da Lei 3/08, de 17 de Junho e do artigo 53.º, ambos da Lei do Processo Constitucional (LPC) já que se verifica o esgotamento da cadeia de recursos dos tribunais ordinários.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é Assistente no Processo de Querela n.º 2355/17 do Tribunal Provincial de Benguela da 2.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns e no Processo n.º 2301/18 da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, de modo subsidiário, ao caso em estudo, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.
Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem por objecto verificar se o Acórdão da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo viola o dever de fundamentação.
V. APRECIANDO
É jurisprudência corrente dos Tribunais Superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
Como é sabido, os fundamentos dos recursos devem ser claros e concretos, pois aos Tribunais não incumbe averiguar a intenção dos recorrentes, mas apreciar as questões submetidas ao seu exame.
As conclusões das motivações não podem limitar-se a mera repetição formal de argumentos, mas constituir uma resenha clara que proporcione ao tribunal que decide uma correcta compreensão do objecto de recurso.
No caso concreto, o Recorrente não apresentou as necessárias conclusões.
Porém, das alegações, ainda que sucintas, consegue-se subentender de forma clara o que pretende impugnar, fazendo referência à violação do dever de fundamentação das decisões.
O Recorrente, no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, indicou como normas constitucionais violadas os artigos 2.º, 22.º, n.º 3, alínea a), 26.º, n.º 2 e 3, 29.º, n.º 1, 31.º, n.º 1 e 2, 32.º, n.º 1 e 2, 72.º e 177.º, n.º 1, todos da CRA, bem como o artigo 158.º do C.P.C.
A violação destes preceitos constitucionais aparece como mera decorrência da violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, encarado este dever na perspectiva de elemento necessário e imprescindível para a defesa do destinatário da decisão, que só conhecendo os respectivos fundamentos ficará em condições de a impugnar consciente e eficazmente.
É, pois, o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais que está essencialmente em causa na apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
Nos termos do artigo 158.º do CPC, as decisões devem ser sempre fundamentadas, referindo o artigo 668.º do mesmo diploma legal que a falta de fundamentação constitui uma nulidade da sentença.
Vemos, assim, que, apesar de o dever de fundamentação não ter consagração constitucional expressa, senão através do direito a julgamento justo e conforme, acaba por decorrer do processo equitativo, da garantia das defesas e das obrigações internacionais a que Angola se encontra adstrita, designadamente, o artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), aplicáveis por força dos artigos 13.º e 26.º, ambos da CRA, na esteira da jurisprudência firmada por este Tribunal (vide Acórdãos nºs 122/2010 e 639/ 2020).
A nossa legislação ordinária também acolhe este princípio como, por exemplo, no artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, onde reza que “as decisões dos Juízes sejam por via de acórdãos, sentenças ou meros despachos, são sempre fundamentados de facto e de direito”.
A fundamentação serve, sem dúvida, o ideal democrático e de justiça espelhado nos diversos princípios constitucionais invocados pelo aqui Recorrente, legitimando a sua obrigatoriedade perante a comunidade em geral e, sobretudo, perante quem é por si afetado.
Com efeito, as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que as sustenta. A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial, na medida em que o dever de o Juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se não pudesse ser sindicado ou se, por alguma forma, essa sindicância fosse afectada.
A sua observância concorre ainda para a garantia da imparcialidade da decisão, porquanto, o juiz só é independente e imparcial se a decisão for fundamentada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação imparcial da norma de direito. A fundamentação adequada e suficiente tem assim uma dupla finalidade, designadamente, como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinam a decisão e a possibilidade de reapreciação através de recursos, para que o tribunal superior possa conhecer do processo de convicção do julgador e o juízo lógico que determinou a decisão.
O dever de fundamentação é, pois, uma garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do Juiz e da imparcialidade das suas decisões.
De igual modo, o princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito e no Estado Social de Direito contra o arbítrio do Poder Judiciário (vide Pessoa Vaz, in Direito Processual Civil - do antigo ao novo Código, Coimbra, 1998, pág. 211).
Isto porque o dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afectam as partes, ao mesmo tempo que permite um controlo mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.
Mas, se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de Direito Democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judiciais.
Colocada assim a questão do direito de fundamentação, vejamos se ele foi ou não ofendido no caso em análise.
O Recorrente, discordando da absolvição do Réu do crime porque vinha acusado, interpôs recurso para o Tribunal Supremo que confirmou a decisão.
A 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, na sua decisão, descreveu os factos assentes e de forma sucinta sustenta a falta dos elementos típicos do crime de difamação por entender “... se mostrar inequívoca quanto à falta de imputação dos factos constantes da acusação particular ao réu, na medida em que os mesmos resultam de uma informação dirigida pelo réu ao seu superior hierárquico no âmbito institucional na qual revela situações menos urbanas e reprováveis perpetradas pelo ofendido no seio da corporação, vide fls. 6 dos autos, e que o ofendido veio a tomar conhecimento por intermédio de uma requisição elaborada pela Comissão de Justiça e Disciplina do CPPN/BG, vide, fls. 16 (...) o certo é que não se vislumbra na referida exposição qualquer acto de publicidade que pudesse ferir a honra e consideração do ofendido...”.
Da explicitação do núcleo essencial do dever de fundamentação resulta ser necessário articular o dever de fundamentação das decisões judiciais em processo penal com o princípio da legalidade e julgamento justo e equitativo, bem como com a efectivação do direito de recurso, não sendo admissível que este direito seja restringido pela insuficiência da garantia do dever de fundamentação.
Fazendo-o, não temos dúvidas de que o aresto impugnado, apesar de ter sido elaborado de forma sucinta – sublinhe-se uma vez mais – cumpre com o invocado dever de fundamentação, na medida em que a sua convicção e sustentação é perfeitamente objectivável e verificável, ao descortinarmos das razões porque mantém a decisão do Tribunal a quo.
Assim e, sem necessidade de outros considerandos, há que concluir que não assiste razão ao Recorrente.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional. em:
Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da LPC.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 3 de Março de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dr. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor (Relator)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata