ACÓRDÃO Nº 670/2021
PROCESSO N.º 823-C/2020
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional
I. RELATÓRIO
Afonso Inácio Paulo Manzambi, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 15 de Abril de 2020, prolactado pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 471/19, que negou provimento à providência de habeas corpus por si requerida.
Inconformado com o Acórdão prolactado pelo Tribunal Supremo, em síntese, nas suas alegações arguiu o seguinte:
Termina, pedindo que o Acórdão recorrido seja declarado inconstitucional e, em consequência, restituída à sua liberdade.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e fundamentos previstos na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que, tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar este recurso.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente intentou uma providência de habeas corpus, requerendo a restituição à liberdade. Porém, não viu a sua pretensão atendida, por essa razão, tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é a verificação da constitucionalidade do Acórdão de 15 de Abril de 2020, prolactado pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que negou provimento à providência de habeas corpus impetrada pelo Recorrente, no âmbito do Processo n.º 471/19, isto é, saber se foram violados princípios, direitos e garantias fundamentais.
V. APRECIANDO
O Recorrente, inconformado com o acórdão em crise que negou provimento ao seu pedido de habeas corpus, requereu ao Tribunal Constitucional a sindicância da decisão recorrida, por alegada violação de princípios, direitos e garantias constitucionais, com fundamento na sua prisão ilegal porque, no seu entendimento, devia estar em liberdade, ex vi do efeito suspensivo do recurso interposto da sentença proferida pelo tribunal da primeira instância e, também, por se encontrar em prisão preventiva há mais de 29 meses.
Importa em sede desta Corte Judicial apreciar a questão que se impõe, em face da matéria em pauta, designadamente, deslindar se a situação carcerária do Recorrente violou princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionais.
Desde logo, o posicionamento da Lei Magna sobre esta matéria deixa claro que a concretização do habeas corpus no Estado de direito democrático assenta em pressupostos jus fundamentais demonstrativos de que, esta garantia constitui um mecanismo defensivo de ataques inusitados à privação do direito fundamental à liberdade, cabendo ao Tribunal Constitucional, no âmbito da sua competência de fiscalização concreta, aferir sobre a constitucionalidade da decisão prolactada pelo Tribunal ad quem. Nesta seara jurídica, o entendimento dogmático dos excelsos autores Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes assevera que “O habeas corpus é definido como “uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar, de forma especial, o direito à liberdade constitucionalmente garantido e que visa reagir de modo imediato e urgente, contra o abuso de poder em virtude de detenção ou prisão, efectiva e actual, ferida de ilegalidade”- in Constituição de República de Angola, Anotada, Tomo I, Luanda 2014, pág. 389.
Esta garantia fundamental comummente designada por remédio processual ou remédio constitucional mereceu consagração na ordem jurídica angolana, com particular realce no acentuado sentido proteccionista conferido à tutela da liberdade, no âmbito dos direitos fundamentais da pessoa humana.
No caso em apreço, consta dos autos que o Recorrente encontra-se detido desde o dia 22 de Fevereiro de 2018, acusado da prática dos crimes de falsificação de documentos e furto, tendo sido a sentença condenatória prolactada no decurso do prazo legal fixado na alínea c) do artigo 40.º da LMCPP. Por isso, neste quesito, isto é, desde a data da detenção, em fase de instrução preparatória, até a data da sentença condenatória do Tribunal a quo, não houve violação do prazo legal, como equivocamente alega o Recorrente.
Nesta asserção, no tratamento desta temática deve-se ter em conta dois momentos distintos: o primeiro aspecto conformado à lógica do artigo 315.º do Código do Processo Penal e do artigo 40.º da LMCPP, cujos prazos legais peremptórios se aplicam as medidas de coacção até à audiência de discussão e julgamento, em primeira instância. O que temos aqui é uma solução imaleável preconizada pela lei que apenas abrange as fases da instrução preparatória até ao julgamento. Pelo que, nos parece forçoso enquadrar neste contexto, as fases recursórias atinentes a fase pós condenação, como é o caso sub judice.
O segundo aspecto reporta-se a fase pós condenatória, em primeira instância, cujos prazos são omissos no ordenamento jurídico angolano. Contudo, essa ausência normativa não inibe nem coarcta a aplicabilidade das medidas de coacção por ser conciliável, com os pressupostos e finalidades processuais, bem como da eficácia da decisão. Na verdade, é preciso ir mais a fundo para sublinhar que, nesse contexto, pode ocorrer a suspensão da execução da pena, e, não propriamente a alteração da situação cautelar ou carcerária do réu, conforme o convencimento do Recorrente.
Para se compreender o efeito suspensivo dos recursos, cabe referir que a Lei deixa claro que a paralisação reporta-se, em concreto, a execução da sentença condenatória. Nesse alinhamento, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 623/2020, de 2 de Junho traz à luz essa questão, reafirmando que em direito penal, o efeito suspensivo traduz-se, essencialmente, no seguinte: a decisão tomada não produz efeito algum, devendo, em princípio, o réu permanecer com a medida de coacção que eventualmente lhe tenha sido aplicada, caso ainda se verifiquem os pressupostos legais aplicáveis.
No concreto, a norma do artigo 40.º da LMCPP cessou os seus efeitos com a realização do julgamento e a condenação do Recorrente, em primeira instância, não produzindo eficácia a sua aplicabilidade na fase pós condenatória, ou seja, a prisão do Recorrente não decorre por força dessa norma. Por outro lado, o carácter suspensivo do recurso interposto apenas susta os efeitos da sentença condenatória aplicada ao Recorrente, sem prejuízo da manutenção da situação cautelar em que o mesmo se encontrava antes (status quo ante).
Do regime exposto, afigura-se lógico que tanto a Constituição como a lei conceberam a prisão preventiva como um expediente cautelar transitório, pois, ela não tem carácter de pena, sendo justificada pela necessidade de garantir determinados fins de natureza estritamente excepcional e subsidiária, colocando na apreciação prudencial do julgador a necessidade da sua decretação e manutenção, assente em pressupostos que deverão fundamentar de forma razoável, convincente, justificada e proporcional a respectiva decisão. Posta a questão nesses termos vislumbra-se que a sua aplicação obedece ao princípio da legalidade cuja razão de ser fundante se alicerça no reconhecimento de que essa medida cautelar (prisão preventiva) afecta a liberdade individual que integra um dos valores fundamentais atinentes à pessoa humana, numa sociedade hodierna em que a “pedra angular” do edifício social tem como objectivo primordial a defesa da dignidade da pessoa humana, salvaguardando, também, a liberdade e a convivência em sociedade.
Deste modo, é legítimo que se possam impor, desde o início do processo, as adequadas medidas cautelares ou de coacção, restringindo total ou parcialmente os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na CRA, devendo esse cerceamento limitar-se ao necessário, proporcional e razoável numa sociedade livre e justa que respeita outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Assim entendido, o regime da prisão preventiva quanto ao respectivo conceito, princípios e disciplina jurídica tem de aproximar-se do princípio da presunção de inocência do arguido na vertente que, apenas concebe uma limitação à liberdade até a sentença condenatória transitada em julgado, que seja socialmente necessária e de duração razoável.
Neste contexto, deve ser aplicado ao caso sub judice o regime previsto no artigo 24.º da LMCPP. A alínea e) do n.º 1 do referido artigo estabelece que as medidas de coacção aplicadas ao arguido extinguem-se com “O trânsito em julgado da sentença condenatória, salvo o disposto no n.º 3 do deste artigo”.
No entanto, essa norma não prevê prazos de extinção das medidas de coacção nos casos em que há recurso da decisão da sentença para o Tribunal ad quem, como acontece no presente processo. Ou seja, não está previsto o prazo máximo de prisão preventiva admissível, o que à luz do vertido no artigo 66.º da CRA constitui uma inconstitucionalidade por omissão.
Ao contrário do que se observava em Angola na vigência do CPP, ora revogado, em sede do direito comparado, legislou-se sobre a fixação de prazos legais das medidas cautelares na fase pós condenação. Com efeito, em países como Cabo- Verde e Portugal, mutatis mutandi, o limite máximo consignado prevê o prazo de 2 anos.
Ademais, neste ponto, o Código do Processo Penal Angolano actualmente em vigor ilustra posição aproximada estabelecendo nessas condições o prazo de um ano e dez meses como limite improrrogável. Ao acolher essa solução o legislador angolano não só supriu uma omissão legal como, também, balizou estabelecendo parâmetros aferidores de que, efectivamente, a prisão preventiva ou outras medidas cautelares não são vitalícias e como tal, não podem ter uma vigência perpétua num país em que se proclama o Estado de direito e a exegese das normas positivas na sua Constituição.
Com efeito, a Lei n.º 39/20, de 11 de Novembro de 2020, que aprova o Código do Processo Penal entrou em vigor no dia 11 de Fevereiro de 2021. Neste diploma legal, mais concretamente no n.º 1 do artigo 283.º (Prazos máximos de prisão preventiva), prescreve-se que a prisão preventiva cessa quando, desde o seu início decorrerem quatro meses sem acusação do arguido; seis meses sem o arguido ser pronunciado; doze meses, até à condenação em primeira instância e dezoito meses, sem haver condenação com trânsito em julgado. Todavia, havendo recurso para o Tribunal Constitucional, o prazo é acrescido de quatro meses. Ou seja, no cômputo geral o prazo máximo de prisão preventiva é de vinte e dois meses, isto é, um ano e dez meses.
Entretanto, no âmbito do direito comparado o Código de Processo Penal português estabelece no artigo 215.º o seguinte:
A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação; b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância e d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
O n.º 5 do citado artigo refere que os prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os correspondentemente referidos nos n.ºs 2 e 3, são acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo penal tiver sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial.
Ao passo que, no direito cabo-verdiano o prazo de duração máxima das medidas de coacção pessoal está consagrado no artigo 279.º do Código de Processo Penal, que preceitua o seguinte:
A prisão preventiva extinguir-se-á quando, desde o seu início, tiverem decorrido: a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação; b) Oito meses sem que, havendo lugar audiência contraditória preliminar, tenha sido proferido despacho de pronúncia; c) Dezasseis meses sem que tenha havido condenação em primeira instância; d) Vinte e dois meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
O n.º 4 do mesmo artigo estabelece que sem prejuízo do disposto no número seguinte, os prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os correspondentemente referidos no n.º 2, serão acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou o processo penal tiver sido suspenso para julgamento em separado de questão prejudicial.
Do exposto resulta que, no direito processual penal português havendo recurso para o Tribunal Constitucional o prazo máximo de prisão preventiva é de vinte e quatro meses, ou seja, dois anos. Diversamente, o direito processual penal Cabo-verdiano fixa o prazo de vinte e oito meses, isto é, dois anos e quatro meses.
No caso em pauta, evidenciam os autos que, desde a data da condenação do Recorrente (28 de Fevereiro de 2019), até à data em que decorre a tramitação do processo sub judice no Tribunal Constitucional decorreram vinte e quatro meses.
Perfilhamos aqui o entendimento de J.J. Gomes Canotilho ao defender que “(…) a existência de processos céleres, expeditos e eficazes – de especial importância no âmbito do direito penal mas extensiva a outros domínios (…), é condição indispensável de uma protecção jurídica adequada (ex: prazos em caso de Habeas Corpus, apreciação da prisão preventiva (…)” in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Editora, Almedina, pág. 499.
Assim, partindo dos pressupostos legais e dogmáticos referenciados, mormente no que toca ao actual Código do Processo Penal em vigor em Angola, o Tribunal Constitucional entende que quanto a este aspecto assiste razão ao Recorrente, pelo que deve ser restituído a liberdade, enquanto aguarda a decisão do recurso ordinário interposto no Tribunal ad quem, sem prejuízo da aplicação de outras medidas cautelares que em homenagem aos princípios da necessidade, da paz social e da confiança jurídica se afigurem legalmente cabíveis.
Face ao exposto, conclui o Tribunal Constitucional que o aresto recorrido violou princípios, direitos e garantias constitucionais.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 3 de Março de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Albeto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira (Relatora)
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima d`A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata