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ACÓRDÃO N.º 671/2021 

 PROCESSO N.º 779-C/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO 

M’pindi André, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido a 15 de Dezembro de 2016, nos autos do Processo n.º 1804/2011, pela 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo.

Consta dos autos que o Recorrente intentou e fez seguir uma acção declarativa de condenação contra a Angoalissar – Comércio e Indústria, Lda., que correu termos na 3.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda com o número 1665-D/03, em que peticionou a condenação da Ré na prestação de contas, para que fossem deduzidos e pagos os seus dividendos, acrescido de juros de mora, bem como a pagar uma indemnização, caso se confirmasse a sua exclusão da condição de sócio.

O Tribunal Provincial de Luanda julgou procedente a acção e, em consequência, condenou a então Ré a pagar ao ora Recorrente os dividendos em dívida, acrescidos dos juros legais, bem como a indemnizá-lo na quantia correspondente ao dobro do valor da dívida, pelo prejuízo resultante da sua exclusão da sociedade, acrescido de juros de mora.

Não se conformando com a decisão proferida em primeira instância da jurisdição comum, a então Ré interpôs recurso de apelação, que correu termos na 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo que, em Acórdão proferido a 15 de Dezembro de 2016, revogou a decisão recorrida, absolvendo a Ré do pedido.

Desse Acórdão interpôs, o Recorrente, o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, e, nas suas alegações, formulou conclusões, das quais se destacam:

  1. (…) mal andou o Tribunal “ad quem” ao reconduzir os autos do processo recursório a uma acção especial de prestação de contas, cuja tramitação obedece a procedimentos autónomos e especiais. Eleger como questão prévia a legitimidade do Recorrente em sede de acção especial de prestação de contas, sendo que a acção que dá origem é aferida em pedido alternativo ou subordinado, mas que dele não se pode autonomizar ao ponto de constituir acção principal. 
  1. Apesar da existência de escritura pública de cessão da quota, os pressupostos para sua validação não foram observados pela recorrida, prova que foi aferida pelo Tribunal de 1.ª instância no âmbito de inspecção judicial realizada e do que se extrai do facto da recorrida, após a dita escritura pública ter continuado a prestar mensalmente a quantia de USD 300,00 ao Recorrente. 
  1. Assim, o acórdão do Tribunal “ad quem” fez uma má apreciação dos factos, que resultou na má aplicação da lei, ferindo direitos económicos do Recorrente, a liberdade de decidir a sua continuação ou não na sociedade recorrida e, mais grave ainda, o seu afastamento resultou de uma simulação e de falta de consciência da declaração negocial, ou seja, cujo negócio jurídico realizado em consequência é nulo.
  1. A falta de apreciação do mérito do recurso, não só constitui um erro de direito, mas de má administração de justiça, consequente falta de equidade, em manifesta violação das garantias, direitos e liberdades fundamentais do Recorrente plasmado na Constituição da República de Angola.
  2. A equidade é aqui vista, como a adaptação da lei e da própria justiça a cada caso concreto. É afirmação de que a lei não pode ser tão rígida a ponto de se tornar universal e nem tão minuciosa que não haja brecha que revelem a necessidade de se aplicar uma interpretação específica para uma situação particular (…). 

[…] 

  1. A equidade é a justiça do caso concreto, como já dito, julga os casos com a plena liberdade, onde “leva em conta o que há de particular em cada acção em cada relação, permitindo adequar a norma ao caso concreto e chegar à solução justa. Diz-se por isso, ser a equidade a justiça no caso concreto. E a decisão ser equitativa quando levar em conta as especiais circunstâncias do caso decidido e a situação pessoal dos respectivos interessados.
  2. E isso só ocorrerá neste caso se for julgado o mérito da relação material controvertida, que no entender do Recorrente decorre da descoberta material deste caso, que está na prova produzida pelo Tribunal de 1.ª instância, consubstanciando-se no facto de apesar da escritura pública ter sido lavrada em Cartório Notarial e constituir um documento autêntico, o processo que lhe devia dar origem para que assentasse em requisitos de sua validade, não observou o formalismo legal, neste caso concreto, a escritura pública deve ser anulada. 
  1. Porém, o processo, por não ter observado o formalismo legal é nulo nos termos do art.º 286.º do C.C., cuja nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarado oficiosamente pelo Tribunal, aqui o Recorrente a invoca para anular a escritura pública e, em consequência condenada a recorrida a reintegrar e pagar o que lhe é devido como sócio, pois na prática verificou-se o seu afastamento da sociedade, com base de um processo dissimulado, contra lei expressa, totalmente eivado de má-fé, a partir que deixou de receber os seus dividendos e benefícios sociais até a presente data, sob pena de se, assim, não for entendido, o acórdão do Tribunal “ad quem” peca por iniquidade e em violação aos direitos fundamentais consagrados nos artºs 23.º, 28.º,37.º e 38.º, todos da CRA.

Terminou requerendo a declaração de nulidade do Acórdão recorrido, com todas as consequências legais daí decorrentes.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola”.

Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE 

O Recorrente é parte vencida no processo que correu os seus termos na 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, com o n.º 1804/2011, pelo que tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO 

O objecto do presente recurso é apreciar se o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1804/2011, ofendeu princípios ou violou direitos constitucionalmente protegidos.

V. APRECIANDO 

O pedido de declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido assenta sobre as conclusões que, por força do disposto no artigo 690.º do CPC, aplicável subsidiariamente ao Processo Constitucional ex vi artigo 2.º da LPC, delimitam as questões a conhecer no presente recurso.

O Recorrente fundamenta o seu recurso e as inconstitucionalidades suscitadas, com a alegação de que, com o acórdão recorrido, o Tribunal Supremo apreciou mal os factos e, em consequência, aplicou mal a lei, ferindo direitos económicos do Recorrente, a liberdade de decidir a continuidade da sua participação social.

Considera, então, que houve falta de apreciação do mérito da causa por parte do Tribunal recorrido, o que, na sua opinião, constitui um erro de direito e um caso de má administração de justiça, que produziu como consequência a falta de equidade, em manifesta violação das garantias, direitos e liberdades fundamentais consagrados nos artigos 23.º, 28.º, 37.º e 38.º da CRA.

Defende que, para que o Tribunal recorrido proferisse uma decisão equitativa, deveria considerar as especiais circunstâncias do caso decidido e a situação pessoal dos respectivos interessados, o que apenas ocorreria no caso concreto se fosse julgado o mérito da relação material controvertida, considerando a prova produzida pelo Tribunal de primeira instância.

Antes de mais, parece-nos evidente, até das alegações do Recorrente, que da decisão do Tribunal recorrido não resulta qualquer discriminação em virtude da sua ascendência, sexo, raça, etnia ou outro critério, a seu desfavor, pelo que é de se afastar liminarmente a invocação da ofensa ao princípio da igualdade, estabelecido no artigo 23.º da CRA.

No que aos direitos económicos, sociais e culturais diz respeito, é pertinente esclarecer que as normas que consagram o seu regime têm natureza programática, pelo que a aplicabilidade demanda a mediação de legislação ordinária que o defina.

O seu regime essencial encontra-se disposto no n.º 2 do artigo 28.º da CRA, que tem o seguinte recorte: “o Estado deve adoptar as iniciativas legislativas e outras medidas adequadas à concretização progressiva e efectiva, de acordo com os recursos disponíveis, dos direitos económicos, sociais e culturais”.

O Recorrente, na motivação e conclusões do seu recurso, enuncia, como lhe competia, a regulamentação da Lei das Sociedades Comerciais e do Código Civil para defender a tese que a decisão recorrida ofendeu a sua” …liberdade de decidir a sua continuação ou não na sociedade recorrida…”, alegando que o negócio jurídico que deu causa ao seu afastamento é anulável, pelo que mantém a condição de sócio, com os direitos inerentes.

Analisada a decisão cuja inconstitucionalidade o Recorrente pretendeu suscitar, verifica-se que o Tribunal recorrido procedeu, efectivamente, à apreciação do mérito da causa, para além de decidir sobre a questão prévia da falta de legitimidade da ora Recorrente.

De facto, do Aresto recorrido consta que o Tribunal ad quem, para além de decidir sobre a questão de conhecimento oficioso da legitimidade do Recorrente na acção, tal como foi apresentada em primeira instância, elencou, como segunda questão a tratar, a de saber se a decisão recorrida (proferida em primeira instancia da jurisdição comum) carecia, ou não, de fundamento legal. E dessa questão tomou posição, sem deixar de apresentar a correspondente motivação, baseada nas provas carreadas aos autos, no exercício do seu poder de livre apreciação da prova.

Como se é dado a ver, o Recorrente, neste recurso, pretendeu, na verdade, sindicar a apreciação do mérito da decisão feita pelo Tribunal ad quem, alegando a sua iniquidade, o que retira ao objecto do recurso a necessária idoneidade para ser julgada por este Tribunal, já que não se trata de uma terceira instância de recurso, com poderes de reapreciação da prova e do mérito da causa. Com efeito, “…não lhe compete a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo…” (Carlos Blanco de Morais, in Justiça Constitucional, 2011, Tomo II – O Direito do Contencioso Constitucional, página 619). 

Sobre a alegada violação do direito de propriedade privada do Recorrente sobre a quota na sociedade, Ré no processo que decorreu em primeira instância, o Recorrente alega que a transmissão foi efectivada com base em uma escritura pública que deveria ser anulada. Entretanto, essa sua tese foi contrariada no aresto em sindicância, pela mais alta instância da jurisdição comum, que tinha competência para reapreciar a prova e o mérito da causa, e entendeu que a transmissão foi operada nos termos da legislação ordinária aplicável.

Assim sendo, esta decisão não é passível de censura constitucional, uma vez que a protecção oferecida pelo texto constitucional inclui também a liberdade da transmissão dos bens abrangidos, desde que feita em conformidade com a CRA e a legislação aplicável. É o que estabelece o n.º 1 do artigo 37.º da CRA que “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei.”

O que atrás é referido vale também para a defendida violação do direito à livre iniciativa económica privada, cujo reconhecimento vem consagrado no artigo 38.º da CRA, que dispõe, no seu n.º 1, que “A iniciativa económica privada é livre, sendo exercida com respeito pela Constituição e pela lei”, enquanto que o n.º 2 estatui que “A todos é reconhecido o direito à livre iniciativa empresarial e cooperativa, a exercer nos termos da lei”. 

Com efeito, conforme referem Jorge Miranda, Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, página 1183, nas anotações ao artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece o direito à liberdade de iniciativa económica privada para aquela realidade constitucional, “Em termos muito gerais, tal liberdade compreende, nomeadamente, o direito a constituir empresas e entidades empresariais, de conformação estatutária destas, de gestão e de exercício independente das correspondentes actividades produtivas. Comporta, ainda, genericamente, um modo de exercício individual e um modo de exercício colectivo.”

No caso do presente recurso, a livre iniciativa empresarial do Recorrente não conheceu qualquer restrição imposta pela decisão recorrida, uma vez que esta não estabeleceu limitações ao exercício de quaisquer actividades dessa natureza. Decidiu pela conformidade da transmissão de uma participação social, mas tal não impede que o Recorrente exerça quaisquer outras actividades económicas, individualmente ou inserido em uma sociedade comercial com outros sócios, nos termos da lei.

Aqui chegados, este Tribunal considera que o aresto apreciado está conforme aos princípios, direitos, liberdades e garantias, normas constitucionalmente tuteladas, não havendo, por isso, qualquer ofensa aos princípios invocados pelo Recorrente, estabelecidos nos artigos 23.º, 28.º, 37.º e 38.º da CRA, ou quaisquer outros.

DECIDINDO 

Nestes termos, 

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: 

 Custas, pela Recorrente nos termos da segunda parte do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC).

Notifique.

 

Plenário do Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 9 de Março de 2021.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima d’A. B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Relatora)