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ACÓRDÃO N.º 672/2021

PROCESSO N.º 778-B/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam em Conferência no Plenário do Tribunal Constitucional

 I. RELATÓRIO

Lumanhe - Extracção Mineira, Importação e Exportação, Lda., melhor identificada nos autos, vem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo no âmbito do Processo n.º 179/2007, que negou provimento ao recurso interposto e, em consequência, declarou válido o acto da Administração Geral Tributária (AGT) que procedeu a correcções do imposto industrial relativo ao exercício económico de 2008, no montante de Kz. 520.742.391,00 (Quinhentos e vinte milhões, setecentos e quarenta e dois mil e trezentos e noventa e um Kwanzas), nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), por considerar que aquele Acórdão ofende os princípios constitucionais da segurança jurídica e da protecção da confiança, estruturantes do Estado de Direito, ambos consagrados no artigo 102.º da Constituição da República de Angola (CRA).

A Recorrente apresenta, em conclusão, a fls. 437 e segs, as alegações seguintes:

  1. O Acórdão do Tribunal Supremo, na parte em que considera como realizadas dentro do prazo legal as correcções às declarações fiscais do exercício de 2005, operadas no âmbito de uma fiscalização realizada em 2015 e que teve como objecto o ano de 2009, é inconstitucional, por pôr em causa uma das garantias constitucionais do contribuinte, prevista no artigo 102.º da CRA, qual seja, a de que qualquer facto tributário, que gere obrigação de imposto, só pode ser fiscalizado e alterado no prazo de 5 anos, sob pena de caducidade.
  2. Sempre que das correcções efectuadas resultar o dever de liquidação adicional, esta liquidação deve ser feita pela AGT e notificada ao contribuinte antes de decorrido o prazo de cinco anos, contados do termo do ano em que se verificou o facto tributário.
  3. Tal representa que um facto tributário verificado em 2005, como no caso da provisão em causa, apenas poderia ser sindicado, mediante o envio de notificação para pagamento de liquidação adicional, que alegadamente fosse devida, até 31 de Dezembro de 2010.
  4. Mas sem conceder, mesmo em relação à fiscalização ao exercício de 2009, a ora Recorrente foi apenas e só notificada para o exercício de audição prévia (o que é diverso da notificação de liquidação ou correcção adicional), em 27 de Julho de 2015, isto é, decorridos que eram mais que 5 anos contados desde o termo daquele exercício (2009), que se encerrou a 31 de Dezembro de 2009, o que demonstra a forma como a AGT pretende lidar com as garantias dos contribuintes.
  5. Não pode a AGT, em 2015 (ou já depois de 2010), a pretexto de sindicância do exercício de 2009, bulir com um facto tributário ocorrido no exercício de 2005 e alterar a matéria colectável daquele exercício.
  6. Qualquer discordância ou discussão em relação a uma provisão constituída em 2005 só poderia ter sido validamente relevada pela Administração Tributária até ao termo do prazo dos 5 anos após a sua constituição, sob pena de esta sindicância, levada a cabo depois de 2010 - e no caso dos autos ocorreu em 2015 - estender os seus efeitos a um exercício económico cuja revisão, por não ser já tempestiva, não era possível, funcionando, assim, a caducidade, como garantia e limite para a reapreciação do acto tributário.
  7. Com efeito, face à natureza receptícia do acto tributário, enquanto acto administrativo, a notificação é o requisito de perfeição do acto tributário de liquidação. Logo, ainda que por mero exercício de raciocínio, se admitisse que o facto gerador (a provisão em causa, constituída em 2005), pudesse alegadamente ser corrigida, tal correcção apenas operaria de forma eficaz se a Recorrente tivesse sido notificada dessa mesma correcção e/ou da liquidação adicional dentro do prazo de caducidade (5 anos), que configura um limite temporal do direito à liquidação do imposto.
  8. Ora, nem houve notificação da contribuinte dentro do prazo de caducidade e nem sequer as correcções que hipoteticamente poderiam gerar a liquidação adicional foram calculadas dentro deste prazo, pelo que não é apenas uma questão de eficácia do acto de correcção, tratando, sim, de um acto/entendimento que colide frontalmente com as garantias do contribuinte, fixadas no artigo 102.º da CRA.
  9. O direito que a lei confere à Administração de proceder a correcções para apurar o cumprimento integral das obrigações fiscais, não pode significar que os particulares vejam as suas demonstrações financeiras a ser sindicadas a todo e a qualquer tempo, sem respeito pelos prazos em que tais demonstrações podem ser efectivamente questionadas, pois tal representaria um frontal ataque ao princípio da segurança e certeza jurídica.
  10. O princípio da caducidade do direito do Estado liquidar tributos, o qual ocorre no prazo de cinco anos seguintes àquele a que a matéria colectável respeite (artigo 62.º, n.º 1 do Código Geral Tributário (CGT)), é uma das mais fortes garantias dos contribuintes, previstas no artigo 102.º da CRA, e visa assegurar a estabilidade e confiança na relação fiscal.
  11. O comportamento do Estado, consubstanciado no desrespeito das regras sobre a caducidade do direito de liquidação de tributo, é inconstitucional, por violar flagrantemente os princípios constitucionais de segurança jurídica e de protecção da confiança, estruturantes do Estado de Direito.
  12. A actuação da AGT, secundada pelo Douto Acórdão, ora em crise, representa uma forma, inconstitucional, de, fora do limite dos 5 anos imposto por lei, alterar factos ocorridos num determinado exercício, num claro atentado às garantias dos contribuintes, o que equivale a uma inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 102.º da CRA.
  13. Razão pela qual, se requer a declaração da inconstitucionalidade do entendimento veiculado no Acórdão em crise, segundo o qual uma provisão pode ser revertida intemporalmente, sem qualquer vinculação à garantia de caducidade do crédito do imposto, mesmo que dessa reversão resulte obrigação de pagar imposto adicional.
  14. Consideram-se violados pelo Acórdão recorrido as normas do artigo 62.º do CGT e do artigo 102.º da CRA.

Nestes termos, e atento aos fundamentos apresentados, vem a Recorrente requerer a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pelo Tribunal ad quem.

O Processo foi à vista do Ministério Público, que promoveu (fls. 451 e 452) o seguinte:

A Recorrente veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal “ad quem” que declarou válido o acto da Administração Geral Tributária que procedeu as correcções do imposto industrial relativo ao exercício económico de 2008, do montante de Kz. 520 742 391, 00 por entender que o acórdão impugnado é inconstitucional, pois, viola as garantias constitucionais do contribuinte previstas no artigo 102.º da Constituição da República de Angola.

- A Recorrente alega que não concorda com o douto Acórdão do Tribunal Supremo que considera realizadas dentro do prazo legal as correcções às declarações fiscais do exercício de 2015 e que tiveram como objecto o ano de 2008 (erradamente disse 2009 -fls. 437).

- Entende a Recorrente que, o direito à liquidação do imposto da Administração Geral Tributária precludiu, porquanto, a provisão, facto tributário, foi constituída em 2005 e nesse mesmo ano poderia ser reivindicado, mediante o envio de notificação para o pagamento de liquidação adicional, se fosse devida, até 31 de Dezembro de 2010.

- Que em relação a fiscalização do exercício de 2008 só foi notificada para o exercício de audição prévia em 27 de Julho de 2015, isto é, decorridos mais de 5 anos contados do termo do exercício de 2008 que encerrou a 31 de Dezembro do mesmo ano.

O prazo do Estado (Administração Geral Tributária) é de 5 anos nos termos do artigo 62.º n.º 1 do Código Geral Tributário.

Da apreciação dos autos resulta a constatação de que: i. A 14 de Junho de 2013, a Recorrente foi notificada pela Repartição Fiscal dos Grandes Contribuintes da Direcção Nacional de Impostos a fim de tomar conhecimento das correcções efectuadas aos elementos contabilísticos respeitantes ao exercício de 2008. ii. Ora, sendo certo que nos termos do n.º 2 do artigo 62.º do Código Geral Tributário, o prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário, então, também é certo que o direito e os poderes de liquidação da Administração Geral Tributaria não caducaram, porquanto, a cobrança de imposto do exercício económico de 2008, foi feita formalmente a 14 de Junho de 2013, antes de terem decorridos 5 anos.

Deste modo, não se vislumbra no Acórdão recorrido qualquer violação à Constituição da República de Angola.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos das alíneas a) e b) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE

A Recorrente tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “... podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (...) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.IV.

IV. OBJECTO

Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade do Acórdão da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, que decidiu sobre a fiscalização realizada pela AGT, em 2013, às contas da aqui Recorrente referentes ao exercício de 2008, da qual resultou a alteração de um facto tributário constituído no exercício de 2005. 

V. APRECIANDO

A Recorrente considera que o Acórdão recorrido, na parte que julga as correcções feitas às declarações fiscais por si apresentadas, ofende os princípios constitucionais da segurança jurídica e da protecção da confiança, previstos no artigo 102.º da CRA, por terem sido realizadas fora do prazo.

Desde o princípio da discussão da questão controvertida (1.ª reclamação para a Administração Tributária) que a ora Recorrente alega ter havido caducidade. O facto tributário (provisão) ocorreu no ano fiscal de 2005 (neste ano a empresa pagou menos imposto industrial do que deveria, sob o pretexto de que estava a fazer uma reserva para ser usada caso sofresse um ataque na sua mina principal).

Por outro lado, a Administração Tributária alega que a ora Recorrente havia constituído uma provisão em 2005, mas que esta provisão era ilegal por ter sido constituída sem motivo que a justificasse; além disso, a provisão continuou a constar dos orçamentos dos anos seguintes, incluindo o de 2008. Em 2013, a Administração Tributária efectuou uma auditoria às contas da Empresa, mais especificamente ao orçamento de 2008, e detectou a provisão dita ilegal, pelo que, no exercício das suas competências, deu as instruções necessárias para corrigir o erro em que se laborava: procedeu a uma nova liquidação do imposto.

Em geral, quanto à divisão de tarefas entre os tribunais, a jurisdição comum procede ao julgamento de facto e de direito e o Tribunal Constitucional comprova se esse julgamento está conforme aos ditames constitucionais.

Os factos foram julgados pelo Tribunal Provincial de Luanda (Sala do Contencioso Fiscal e Aduaneiro), em 1.ª instância, e este, na sua sentença, negou provimento à Acção de Impugnação de Correcção da Liquidação Fiscal.

Mas, o referido Tribunal, apesar de ter procedido a uma audiência de produção de provas (em que ouviu as partes litigantes, os seus representantes legais, técnicos fiscais designados pelas partes e, ainda, um técnico neutro), não procedeu à fundamentação correcta da decisão a que chegou, justificando-se o conteúdo da “Questão Prévia” expendida no Acórdão do Tribunal Supremo (fls. 382 a 384).

A fim de corrigir a fundamentação defeituosa operada em 1.ª instância, o Tribunal Supremo voltou a apreciar os seguintes tópicos: “Saber se estamos ou não diante da caducidade do direito da Recorrente à liquidação do imposto;” (fls. 384) e “Saber se a decisão recorrida deve ou não ser declarada nula, por violação das alíneas a) e e) do n.º 1 do Código de Processo Tributário” (fls. 386).

As duas instâncias da jurisdição comum analisaram o tópico da caducidade à luz da Lei n.º 21/14, de 22 de Outubro, Lei que aprova o Código Geral Tributário (fls. 385), sem que tivessem mencionado que tiveram em conta que esta Lei, de 2014, é posterior a qualquer dos factos analisados no presente processo: constituição da provisão em 2005; auditoria ao orçamento da empresa de 2008 e auditoria e notificação da correcção em 2013. Este CGT dispõe, no n.º 1 do artigo 62.º que só pode ser liquidado tributo nos cinco anos seguintes àquele que a matéria colectável diz respeito e no n.º 3 que O prazo referido no n.º 1 é ampliado para 10 (dez) anos quando o retardamento da liquidação resulta de infracção.

Na altura em que foi aprovado o novo CGT, já estava em vigor a actual Constituição de Angola, que sobre o assunto versa, no n.º 2 do artigo 102.º que As normas fiscais não têm efeito retroactivo, salvo as de carácter sancionatório, quando sejam mais favoráveis aos contribuintes. Isso significa que para aplicar a parte sancionatória da norma de 2014 a factos ocorridos anteriormente é necessário comparar o disposto nesta norma com o disposto na norma que vigorava à data da ocorrência dos factos, devendo-se aplicar as normas que sejam mais favoráveis aos contribuintes.

O artigo 5.º do revogado CGT já dispunha que as leis fiscais só dispõem para o futuro, e nos termos regulados pela lei geral.

Quer isto dizer que ... a admissibilidade da retroactividade fiscal colocar[ia] em causa o princípio da segurança jurídica e a tutela da confiança, ainda que a norma fiscal venha a criar para o contribuinte uma situação mais favorável do que a que vigorava antes da sua entrada em vigor, nem nestas circunstâncias o princípio em questão cede. Este princípio só deixa de ser aplicado quando a norma fiscal tenha carácter sancionatório, mas desde que ela seja mais favorável ao contribuinte. (Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, 2014, pág. 523).

Dispõem os artigos 35.º e 36.º do anterior CGT (aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 3868, de 30 de Dezembro de 1968): Só poderá ser liquidado imposto nos cinco anos seguintes àquele a que a matéria colectável diz respeito; Quando se verificar que na liquidação se cometeram erros de facto ou de direito, ou houve quaisquer omissões, de que resultou prejuízo para o Estado, a Repartição de Fazenda deverá repará-lo mediante liquidação adicional, mas sempre com observância do prazo fixado no artigo anterior.

Em virtude de os dois diplomas legislativos que se sucederam no tempo determinarem o mesmo prazo de caducidade para que a Administração Tributária pudesse liquidar o imposto, não se levanta uma questão prejudicial por, nos julgamentos efectuados pelos tribunais de jurisdição comum, se ter usado o conteúdo de uma ou de outra lei para julgar a questão sub judice.

O princípio da segurança jurídica (tal como o da protecção da confiança) alegado pela Recorrente é aplicável no âmbito do sistema tributário, pois, o mesmo só se configura como justo quando os seus contribuintes puderem com razoabilidade antever condutas, suas e alheias.

Por certo, segurança jurídica e protecção à confiança são ideias que pertencem à mesma constelação de valores. Contudo, no curso do tempo, foram-se particularizando e ganhando nuances que de algum modo as diferenciam, sem que, no entanto, uma se afaste completamente da outra.

Modernamente, no direito comparado, a doutrina prefere admitir a existência de dois princípios distintos, apesar das estreitas correlações existentes entre eles.

De acordo com J. J. Gomes Canotilho, estes dois princípios - segurança jurídica e proteção à confiança - andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica - garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito - enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7.ª Edição, 2003, pág. 257.

A distinção fundamental a estabelecer entre ambos (princípio da segurança jurídica e princípio da protecção da confiança) reside no facto de que, a segurança jurídica é um princípio que procura proteger o Direito objectivo, ao passo que a protecção da confiança é um princípio que procura proteger posições jurídicas subjectivas.

Na verdade, num caso ou no outro (segurança jurídica ou protecção da confiança), o que se pretende alcançar é, fundamentalmente, o mesmo: impedir a perturbação que a acção imprevista possa introduzir na esfera jurídica da Recorrente.

Assim, para apreciar e decidir se o Acórdão recorrido ofende ou não os supraditos princípios, previstos no artigo 102.º da CRA, analisá-los-emos em separado:

A. Sobre o Princípio da segurança jurídica

A Recorrente alega que o Acórdão recorrido é inconstitucional, na parte em que considera como realizadas dentro do prazo legal as correcções às declarações fiscais do exercício de 2005, operadas no âmbito de uma fiscalização realizada em 2013 e que teve como objecto o ano de 2008 (fls. 438), pois o direito que a lei confere à Administração Tributária de proceder às correcções para apurar o cumprimento integral das obrigações fiscais, não pode significar que os particulares vejam as suas demonstrações financeiras a ser sindicadas a todo e a qualquer tempo, sem respeito pelos prazos em que tais demonstrações podem ser efectivamente questionadas. Tal representaria um frontal ataque ao princípio da segurança e certeza jurídica (fls. 443).

O princípio da segurança jurídica, aqui invocado pela Recorrente, é um princípio constitucionalmente consagrado, consistindo na combinação de exigências que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado das consequências directas de seus actos. Isto porque garante-se que o homem necessita de segurança jurídica para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de direito. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7.ª Edição, 2003, pág. 257.

O princípio da segurança jurídica, como garantia da Recorrente, transmite, evidentemente, a certeza de se realizar determinada actividade sob a égide de determinado ordenamento jurídico; não poderá ela ser surpreendida com carga tributária inovadora a prejudicá-la, isto é, não pagar impostos que não tenham sido estabelecidos de acordo com a Constituição e a lei, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 102.º da CRA e a alínea a) do n.º 1 do artigo 23.º da Lei n.º 21/14, de 22 de Outubro, que aprova o CGT.

Os preceitos acima referidos vêm fortalecer que a lei é a garantia de estabilidade das relações jurídicas. É, portanto, um conceito objectivo que está intimamente relacionado ao princípio da legalidade e a outros tantos que cerceiam a actuação do Estado em prol do cidadão.

É neste sentido que os artigos 1.º e 5.º do Código Geral Tributário, aprovado pelo Diploma legislativo n.º 3868, de 30 de Dezembro de 1968, já dispunham que: Serão obrigatoriamente determinadas por lei a incidência, as isenções e a taxa de cada imposto, bem como as formas processuais de atacar a ilegalidade dos actos tributários (artigo 1.º); As leis só dispõem para o futuro, e nos termos regulados na lei geral (artigo 5.º).

O princípio da legalidade fiscal goza de dignidade constitucional e serve de garantia dos contribuintes e meio de limitação dos poderes públicos na criação, gestão e administração dos impostos como preceituam os artigos 102.º e 165.º n.º 1, alínea o) da CRA. Portanto, é a lei que determina a sua incidência, a taxa, os benefícios fiscais e igualmente as garantias dos contribuintes a que nos referimos (ao tempo dos factos, regulada pelo artigo 1.º do Diploma legislativo n.º 3868, de 30 de Dezembro de 1968, e artigo 8.º do CGT- Lei n.º 21/14, de 22 de Outubro).

O princípio da legalidade compreende duas vertentes: por um lado, o princípio da reserva de lei (formal) implica uma intervenção parlamentar, tanto no sentido material, por lei que fixe a disciplina do imposto, como no sentido formal através de uma autorização dada ao Governo-legislador, para de acordo com a lei de autorização legislativa fixar essa disciplina. Raul Araújo e Elisa Nunes, Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, 2014, pág. 521.

Por outro lado, o princípio da reserva material de lei (formal) ou o princípio da tipicidade impõe que a lei contenha a disciplina, o mais completa possível, relativa aos elementos essenciais do imposto: a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes. (ibidem).

 Portanto, a obrigação tributária constitui-se com a verificação dos factos que definem a incidência do respectivo tributo, salvo nos casos previstos na Lei, como vem disposto no artigo 24.º do actual CGT. No mesmo sentido, antes, o artigo 1.º do Diploma Legislativo n.º 3868, de 30 de Dezembro de 1968 (revogado, mas em vigor na altura da ocorrência dos factos ora sub judice).

Portanto, tendo a Recorrente tomado conhecimento antecipado e reflexivo das consequências directas dos seus actos e, à luz da liberdade reconhecida, tendo-os praticado na vigência dos diplomas legais aplicados, foi-lhe assegurada a efectividade do princípio da segurança jurídica. Assim, o Acórdão recorrido não ofendeu o referido princípio da segurança jurídica.

B. Sobre o Princípio da protecção à confiança  

A Recorrente alega que o Acórdão recorrido é inconstitucional, por se terem realizado correcções às declarações fiscais do exercício de 2005, operadas no âmbito de uma fiscalização realizada em 2013 e que teve como objecto o ano de 2008, pois só poderia ter sido feita a fiscalização e alteração tributária no prazo de cinco anos, sob pena de caducidade (fls. 438).

Assim, se das correcções efectuadas, resultasse o dever de liquidação adicional, a AGT deveria notificá-la antes de decorrido o prazo de cinco anos, contados do termo do ano em que se verificou o facto tributário (fls. 443).          

Tendo o facto tributário se verificado em 2005, como é o caso da provisão em causa, apenas poderia ser sindicado, mediante notificação para pagamento de liquidação adicional, até 31 de Dezembro de 2010. Consequentemente, a AGT, numa fiscalização ao exercício económico de 2008 (realizada em 2013), não poderia verificar um facto tributário ocorrido noutro ano fiscal, ou seja na fiscalização ao exercício de 2008 apenas poderiam ser fiscalizados factos tributários gerados nesse mesmo exercício, sem prejuízo da fiscalização de qualquer facto tributário no prazo de 5 anos contados a partir do termo do ano fiscal em que o facto tenha sido gerado (fls. 445 e 446).

Neste contexto, a ora Recorrente alega ter sido ofendido o princípio da protecção da confiança, consagrado no artigo 102.º da CRA, por terem sido frustradas as suas expectativas diante das garantias inerentes à estabilidade, confiabilidade, certeza, inteligibilidade, cognoscibilidade e, enfim, segurança nas relações entre a AGT e a aqui Recorrente. Terá razão?

Vejamos então:

Neste sentido, J. J. Canotilho afirma que, “[a] segurança jurídica e a protecção da confiança exigem, no fundo: “(1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança jurídica nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos”. “Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder — legislativo, executivo e judicial”. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, 2003, pág. 257.

Na verdade, o Código Geral Tributário de 1968, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 3868, de 30 de Dezembro de 1968, que é o aplicável ao caso vertente, prescreve no seu artigo 35.º que Só poderá ser liquidado imposto nos cinco anos seguintes àquele a que a matéria colectável respeite.

Na mesma esteira, estabelece o n.º 1 do artigo 62.º do Código Geral Tributário aprovado pela Lei n.º 21/14, de 22 de Outubro, que Só pode ser liquidado tributo nos 5 (cinco) anos seguintes àquele a que a matéria colectável respeite e a alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º deste mesmo diploma legal define como caducidade do direito à liquidação a extinção do direito e dos poderes de liquidação que a Administração Tributária dispõe em relação às declarações fiscais dos contribuintes, por força do decurso do prazo para o efeito fixado na lei.  

Verifica-se, entretanto, que, contrariamente ao que o sucedeu, o Código Geral Tributário de 1968 é absolutamente omisso e não fixa expressamente o momento em que começa a correr o prazo de caducidade.

Assim, de acordo com o disposto no artigo 329.º do Código Civil, o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido.

Nesta perspectiva sustenta Ana Filipa Morais Antunes que a determinação do início do prazo de caducidade é tarefa reservada, em muitos casos, ao legislador. Assim, em matéria de anulabilidade do negócio jurídico, esclarece-se que o prazo para o exercício do direito potestativo (de anulação) se conta a partir do momento em que cesse o vício que lhe serve de fundamento (cf. artigo 287.º, n.º 1, do C.C.). Nos demais casos, sempre que a lei não se pronunciar acerca do início do prazo, o prazo começará a correr a partir do momento em que o direito puder legalmente ser exercido. Estabelece-se, pois, uma regra análoga à consagrada em matéria de prescrição (cf. artigo 306.º, n.º 1, do C.C.). A correcta determinação do início do prazo de caducidade pressuporá uma análise casuística. In Prescrição e caducidade, Coimbra Editora, 2008, pág. 170.

Também Ana Prata, na mesma esteira, sustenta que o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido. Em abstrato, poderia começar a contar-se o prazo para a caducidade, entre outras hipóteses, a partir do momento em que a situação jurídica foi constituída, ou a partir do momento em que ela possa ser legalmente exercida: o art. 329.º teria escolhido a segunda hipótese. Contudo, uma interpretação cuidada deste normativo mostra que a distinção só é relevante nos casos em que a lei crie o prazo de caducidade mas não fixe o momento a partir do qual ele deva ser contado, constituindo, por isso solução, residual. De outro modo, a contagem começa, evidentemente, no momento em que a lei o determinar. In Código Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2017, pág. 400.

No mesmo sentido Abílio Neto salienta ainda que se o facto do qual resulta o direito exercitando estiver sujeito a termo ou a condição suspensiva só com a verificação do evento condicionante tem início o prazo de caducidade para o seu exercício. In Código Civil Anotado, Ediforum, 20.ª Edição, 2008, pág. 273.

A uma solução semelhante conduz, também, o n.º 2 do artigo 62.º do CGT aprovado pela Lei n.º 21/14, de 22 de Outubro ao estabelecer que: O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu.

Portanto, o que consta dos autos (fls. 243, 293 e 311) é que a Recorrente constituiu em 2005 uma provisão tributária para fazer face a eventuais riscos ou encargos que poderiam ocorrer no futuro, tendo esta mesma provisão sido operada no âmbito de uma fiscalização que teve como objecto o ano de 2008 e que foi realizada em 2013. Ou seja, o facto tributário tem por base uma provisão constituída em 2005 e que se mantinha até ao ano 2008.

Segundo a doutrina estamos perante uma provisão sempre que se considera necessário utilizar, como reserva, uma determinada quantia, que é assim retirada do lucro tributável do exercício, para prever uma certa despesa provável mas ainda não comprovada, a ter lugar no futuro. Vide J. L. Saldanha Sanches e João Taborda da Gama, Manual de Direito Fiscal Angolano, Wolters Kluwer - Coimbra Editora, 2010, pág. 347.

É, aliás, nesta perspectiva, que, nas suas alegações de recurso bem afirma a AGT (fls. 328 e 329) que As provisões não são realidades estáticas que, uma vez constituídas, ficarão registadas nas suas contas, num único exercício até que a esta lhe aprouver. Elas são transpostas de exercício a exercício, até que se julgue desnecessária a sua manutenção. (…) dito de outro modo, a sua constituição e manutenção não são de execução instantânea, na medida em que devem ser revistas, confirmadas ou actualizadas em cada exercício, podendo ser mantidas por vários exercícios até que se verifique a desnecessidade da sua manutenção.

Assim, a constituição e manutenção não se completa com um único acto, trata-se de uma realidade de execução continuada, razão pela qual a provisão aqui em referência, tendo sido constituída em 2005, foi transportada até ao exercício de 2008 e consequentemente registada naquele exercício, porquanto, até momentos antes da fiscalização, se julgou que os motivos que levaram a sua constituição se mantinham.

Assim, tratando-se de uma provisão que só atingiu a completude no exercício de 2008, não podia o prazo de prescrição ou de caducidade iniciar-se em 2005, até mesmo porque a partir do momento em que foi transportada para o exercício de 2008, passou a ser considerada como matéria colectável deste exercício e não mais do exercício de 2005.

Assim sendo, é a liquidação tributária referente ao ano de 2008 que marca o início do prazo de caducidade para o seu exercício. A este propósito, a alínea o) do artigo 2.º do Código Geral Tributário aprovado pela Lei n.º 21/14, de 22 de Outubro, define como “liquidação do imposto” o apuramento do imposto devido pelo contribuinte, mediante aplicação da taxa do imposto à matéria colectável.

O dever de liquidação adicional é incluído nos valores que forem cobrados em conjunto com o imposto. Deve ocorrer, portanto, por notificação para pagamento, nos termos do artigo 120.º do CGT.

Nestes termos, consta dos autos (fls. 257, 60, 73, 74, 91 e 245) que a Recorrente foi notificada a 14 de Junho de 2013 pela AGT para conhecimento das correcções efectuadas aos elementos contabilísticos respeitantes ao exercício de 2008 e, porque o artigo 35.º do Código Geral Tributário de 1968, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 3868, de 30 de Dezembro de 1968, vigente à data, estabelece que Só poderá ser liquidado imposto nos cinco anos seguintes àquele a que a matéria colectável respeite, e atento aos fundamentos apresentados, no que concerne ao momento em que começa a correr o prazo de caducidade, não tem razão o Recorrente em requerer a declaração de inconstitucionalidade do douto Acórdão recorrido.

Estando o facto tributário incluso no orçamento de 2008, o prazo para a caducidade do Direito da Administração Tributária corrigir a liquidação do imposto começou a contar a partir de 31 de Dezembro/final do exercício de 2008, pelo que o contribuinte só poderia ter sido notificado da referida correcção até 31 de Dezembro de 2013, conforme o disposto pelos artigos 35.º e 36.º do anterior CGT (aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 3868, de 30 de Dezembro de 1968). Tendo a ora Recorrente sido formalmente notificada a 14 de Junho de 2013, antes de terem decorridos os 5 anos, não houve preclusão do prazo de caducidade, pelo que não se verifica a ofensa ao evocado princípio da protecção da confiança.

Nestes termos, o Tribunal Constitucional considera que o Acórdão recorrido não ofende os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, alegados pela Recorrente.

 DECIDINDO

Nestes termos

Tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

 Custas para a Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.


Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 9 de Março de 2021.

 

O JUIZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilherma Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator) 

Dr. Carlos Magalhães 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B. da Silva 

Dr. Simão de Sousa Victor 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata