ACÓRDÃO N.º 673/2021
PROCESSO N.º 789-A/2020
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
António Bastos Mendes e João Augusto Miguel de Oliveira, suficientemente identificados nos autos, vieram ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 49.º da Lei n.º 3/08 de 17, de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, impugnando o Acórdão de 29 de Agosto de 2019, da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, em sede do Processo n.º 2549/19, no qual foram condenados respectivamente nas penas de um (1) ano e seis (6) meses de prisão, suspensa por um período de dois (2) anos, pelo crime de fraude fiscal qualificada e quatro (4) anos de prisão maior, pelos crimes de fraude fiscal qualificada, associação criminosa e branqueamento de capitais.
Inconformados com o douto aresto, os Recorrentes, após terem sido notificados, apresentaram alegações que, no essencial, se resumem no seguinte:
António Bastos Mendes
Concluindo, o Recorrente, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 6.º; 23.º, 67.º, nºs 1 e 2; 72.º e 174.º, n.º 2, todos da CRA, 351.º do CPP, 17.º, n.º 2 da Lei n.º 2/15 de 2 de Fevereiro, conjugados com os preceitos dos artigos 12.º, 13.º e 38.º, todos da Lei n.º 3/14 de 10 de Fevereiro, Lei sobre a Criminalização das Infracções Subjacentes ao Branqueamento de Capitais (LSCISBC), e 44.º, n.º 2 e 45.º n.º 1 do CP, requer que seja declarada a inconstitucionalidade da decisão objecto deste recurso, em consequência, seja ordenado o Tribunal Supremo a conformar a sua decisão com os preceitos dos artigos da CRA violados.
João Augusto Miguel de Oliveira
O Recorrente finaliza dizendo que o acórdão do Venerando Tribunal Supremo é inconstitucional por afrontar o artigo 6.º combinado com os artigos 65.º n.º 6 e do 177.º n.º 1, todos da CRA, em consonância com o referido artigo 667.ºdo CPP e, por isso mesmo deve ser declarado como tal e decretada a sua consequente revogação.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente, nos termos do artigo 53.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, interposto com o fundamento do parágrafo único da alínea a) do artigo 49.º, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola”.
Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que, tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
Os Recorrentes são ambos Réus no Processo n.º 2549/19, que correu os seus trâmites na 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no qual foram condenados nas penas de um (1) ano e seis (6) meses de prisão, suspensa por um período de dois (2) anos e quatro anos de prisão maior, respectivamente, pelos crimes de fraude fiscal qualificada, associação criminosa e branqueamento de capitais, pelo que são parte legítima nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto a verificação da constitucionalidade do Acórdão proferido a fls. 2157 a 2183 no Processo n.º 2549/19, pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que alterou a decisão recorrida e condenou os Recorrentes respectivamente nas penas de um (1) ano e seis (6) meses de prisão, suspensa por um período de dois (2) anos e, quatro anos de prisão maior, pelos crimes de fraude fiscal qualificada, associação criminosa e branqueamento de capitais.
V. APRECIANDO
Extrai-se do processo que os ora Recorrentes António Bastos Mendes e João Augusto Miguel de Oliveira, tal como demais réus não Recorrentes nestes autos de recurso extraordinário de inconstitucionalidade, foram todos condenados a penas de prisão, por quanto, alguns deles na qualidade de funcionários da Administração Geral Tributária (AGT), com o propósito de adquirirem de forma ilícita vantagens patrimoniais, decidiram ajudar a empresa contribuinte TECNIMED- Equipamentos e Materiais Hospitalares, que a certa data havia recebido duas notificações para pagamento de valores cobrados a título de imposto, contribuindo para fazer reduzir de forma abusiva o valor da referida cobrança.
Não obstante, permanecendo inconformados com a condenação sofrida em sede de recurso interposto no Tribunal Supremo, os Recorrentes, vieram desta feita requerer, a declaração de inconstitucionalidade do acórdão proferido por aquela Corte suprema, por considerarem, embora com argumentos distintos, que esta decisão ofendeu e violou na sua essência princípios e direitos fundamentais.
O Recorrente António Bastos Mendes alega que a decisão objecto do presente recurso ofende os princípios constitucionais da legalidade, da igualdade, presunção de inocência, contraditório e do acusatório, colocando em causa os direitos fundamentais de defesa e julgamento justo célere e conforme a lei, porquanto entende que, na sequência daquela que foi a actuação do tribunal da primeira instância, o acórdão ora recorrido acabou também por reafirmar a condenação do Recorrente num crime do qual jamais foi acusado.
O Recorrente invoca a violação do preceituado no artigo 351º do Código do Processo Penal anteriormente em vigor, na medida em que, tendo sido apenas acusado pela prática de um crime, o de corrupção activa, viu-se, contudo, pronunciado e condenado em primeira instância, igualmente pela prática de outro crime de fraude fiscal, p e p pelo n.º 1 do artigo 12.º, ambos da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro - Lei sobre a criminalização das infrações subjacentes ao branqueamento de capitais (LSCISBC), sem que para tal tivesse sido observado o disposto no preceito legal em nota, quanto a alteração substancial da acusação, no caso de discordância do juiz da causa sobre os factos da acusação e sua qualificação, tendo todavia, o Tribunal Supremo reiterado em sede de recurso naquela instância, a sua condenação no crime de fraude fiscal qualificada, muito embora o tivesse absolvido pela prática do crime de corrupção activa por reconhecer que tal crime jamais foi cometido por este Recorrente.
Irradia, com efeito, do disposto no artigo 2.º da CRA, referente ao princípio do Estado democrático de direito, o dever de fundamentação das decisões judiciais, previsto já anteriormente no artigo 158.º do CPC, e mais recentemente materializado na Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro - Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum (LOFTJC), na qual estabelece o seu artigo 17.º que as decisões dos juízes sejam por via de acórdãos, sentenças ou meros despachos são sempre fundamentadas de facto e de direito, mas que a fundamentação não pode consistir na mera evocação de uma norma legal nem na adesão, por parte do Juiz, às razões e alegações invocadas por qualquer das partes, incluindo o Ministério Público.
Ora, o Recorrente António Bastos Mendes foi em sede da acusação do Ministério Público, indiciado pela prática do crime de corrupção activa, p.p. pelo n.º 1 do artigo 38.º da LSCISBC, imputando-se-lhe a conduta de ter consentido, na qualidade de Administrador para área financeira da empresa TECNIMED, que esta sonegasse ao Estado, o valor do imposto realmente devido, pagando em contrapartida do benefício concernente à redução do mencionado tributo, determinada quantia monetária a título de consultoria, prestada pela empresa TIPOS CONSULTING pertencente a um dos co – réus, funcionário da AGT.
Sucede que, perante a conduta referenciada, o tribunal de primeira instância decidiu pronunciá-lo, bem como condená-lo também pelo crime de fraude fiscal qualificada, p e p pelo artigo 12.º e 13.º da LSCISBC, em concurso real com o crime de corrupção activa, p.p. no n.º 1 do artigo 38.º do mesmo diploma legal, tendo para o efeito, fundamentado que a conduta justificativa daquela qualificação dos factos, constava da acusação do Ministério Público.
Ou seja, a impugnação segunda a qual, a acusação feita pelo Ministério Público não fez referência ao crime de fraude fiscal foi devidamente apreciada pela juíza, ainda em primeira instância, conforme demostram os autos a fls. 1855 e ss, tendo-se retirado a conclusão de que, no caso, não houve preterição do disposto no artigo 351.º do CPP (corpo), fundamentando-se de que não existiam factos novos susceptíveis de merecerem esclarecimentos adicionais.
Já em sede de recurso no Tribunal Supremo, também entendeu esta Corte que a questão suscitada pelo Recorrente, com efeito, não colhia, tendo em consideração que os elementos do tipo legal de crime em referência, vinham claramente descritos na peça processual do Ministério Público, razão pela qual, a qualificação jurídica operada pela juíza de primeira instância não alterou a substância dos factos constantes da mesma acusação, por conseguinte, observando-se o disposto no parágrafo único do artigo 351.º do CPP então em vigor.
Acrescendo, todavia que, a decisão recorrida, no que concerne a matéria da subsunção jurídico-penal, distintamente da apreciação feita pelo tribunal a quo, surge porque na verdade, os factos constantes da acusação do Ministério Público, respeitantes a conduta do Recorrente António Bastos Mendes, tal como a dos restantes Réus no processo, também consubstanciava a circunstância de uma mesma conduta, ser igualmente violadora de um ou mais preceitos legais incriminadores, por isso, justificando entre as diferentes normas incriminadoras, pelas quais foram pronunciados e condenados os réus, a existência de uma relação de consumpção. Portanto prevalecendo no caso do ora Recorrente António Bastos Mendes, apenas o crime de fraude fiscal qualificada, p.p. pelo n.º 1 do artigo 13.º da LSCISBC, em detrimento do crime de corrupção activa.
Com efeito, salientou-se, em virtude do conteúdo dos respectivos normativos que, os crimes de corrupção activa e passiva e o crime de fraude fiscal qualificada incriminavam os réus pelos mesmos factos, por isso, relevando a existência entre as referidas normas de uma relação de consumpção, impedindo que pela mesma conduta observada, fossem os réus punidos duas vezes, em referência ao principio non bis in idem.
Destarte, retira-se do acima descrito que o Recorrente em causa não foi absolvido do crime de corrupção activa pelo facto de inexistir prova de conduta incriminadora, conforme pretende fazer crer, mas sim por ter resultado do exercício hermenêutico levado a cabo pelo tribunal de recurso que ao caso fazia-se apelo a um concurso aparente ou legal de normas, razão pela qual, justificava-se, pois, perante duas ou mais normas potencialmente aplicáveis que, o julgador decidisse pela aplicação de apenas uma delas, realçando que, no caso do Recorrente, o concurso aparente era, inclusive, punido com a mesma penalidade, ou seja, de 1 (um) a 5 (cinco) meses de prisão.
Portanto, depreende-se da análise acima que, no caso vertente, foi feito justo apelo à teoria do concurso aparente de infracções, referenciada por Eduardo Correia e Figueiredo Dias, segundo a qual muitas normas do direito criminal como aliás as de outros ramos de direito estão umas para com as outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente que a aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias a possibilidade de eficácia cumulativa de outras. De onde resulta que a pluralidade de tipos que se podem considerar preenchidos quando se toma isoladamente cada uma das respectivas disposições penais, vem no fim de contas em muitos casos, olhadas tais relações de mútua exclusão e subordinação a revelar-se inexistente. Neste sentido se afirma que se estará então perante um concurso legal ou aparente de infracções (in Direito Criminal, vol. II pág. 203 a 205).
Sequencialmente, no que respeita a determinação das relações de subordinação entre as diversas disposições do direito criminal, acrescenta-se em simultâneo na obra ora citada que, está-se perante uma relação de consumpção quando, entre os valores protegidos pelas normas criminais verifica-se por vezes relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa. Daí que, ainda com fundamento na regra ne bis idem, se tenha de concluir que lex consumens derogat legi consumtae.
Outrossim, demonstra-se precipitado vir aferir que, na decisão recorrida, foi dita a pena aplicada sem dizer qual o crime que o Recorrente vai condenado, considerando, como acima ficou demonstrado, que na sua douta apreciação da matéria da causa, o tribunal competente para reavaliar o decidido em primeira instância, justificadamente concluiu que, em face da factualidade provada nos autos, efectivamente a conduta observada pelo Recorrente tanto preenche o tipo legal de crime previsto no artigo 38.º da LSCISBC, como a do tipo legal previsto no artigos 12.º e 13.º do mesmo diploma legal, razão pela qual, decidiu condená-lo por um único crime - precisamente o de fraude fiscal qualificada, pese embora, aqui realçarmos o lapso manifesto, de tal referência, apenas deixar de vir expressa unicamente na parte decisória do Acórdão ora sindicado.
Vindo ainda a propósito, importa, todavia reforçar, conforme aborda Vasco A. Grandão Ramos, que a questão da alteração da qualificação jurídica dos factos integrantes do objecto da acusação, não obriga o juiz, o que obriga são os próprios factos. Razão pela qual, sendo estes os mesmos, o juiz pode alterar a qualificação jurídica constante da acusação do Ministério Público, (in Noções Fundamentais do Direito Processual Penal, 1993, pág. 370).
Na verdade, seguindo de perto o mesmo autor e obra, pág. 351, “Deduzida a acusação, pode suceder que o juiz entenda que se provam factos diversos dos apontados pelo Ministério Público, de que resulte uma alteração substancial da acusação. Se assim for, ordenará que o processo lhe volte com vista para deduzir nova acusação.
Será diferente se o juiz apenas qualificar diversamente os factos alegados pelo Ministério Público ou julgar provados factos que não alterem substancialmente a acusação. Então limitar-se-á a referir isso no despacho de pronúncia ou equivalente – artigo 351.º”.
Pelo exposto, resta apenas reiterar que razão alguma assiste ao Recorrente António Bastos Mendes, ao argumentar que se está perante um caso de falta de acusação em relação ao crime de fraude fiscal qualificada, pelo qual acabou sendo condenado.
Consequentemente, este Tribunal entende que o tribunal recorrido, no âmbito da sua competência decisória perante a questão impugnada, soube bem fundamentar a posição jurídico-legal adoptada. Logo, não se vislumbra que a decisão objecto do presente recurso tenha ofendido os princípios constitucionais invocados, nomeadamente: da legalidade, da igualdade, da presunção de inocência, do contraditório e do acusatório na medida em que resultou da lei, a qualificação jurídica da conduta por ele observada.
Por sua vez, é invocado pelo Recorrente João Augusto Miguel de Oliveira, que no aresto recorrido foi violado os princípios da individualidade da responsabilidade criminal, da proibição da reformatio in pejus, e assim sendo a violação dos princípios da legalidade constitucional, igualdade, do acesso ao direto e a tutela jurisdicional efectiva e ao julgamento justo célere e conforme a lei, tudo por considerar que o Tribunal Supremo, baseando-se em factos não produzidos nos autos e, fazendo um enquadramento erróneo dos factos provados, reformulou a decisão condenatória, agravando substancialmente a pena aplicada, de 2 (dois) anos de prisão e na taxa de justiça de um milhão de kwanzas, para a pena de 4 (quatro) anos de prisão maior, acrescido da restituição solidária da quantia de duzentos milhões kwanzas à Administração Geral Tributaria (AGT).
Dito de modo diverso, o Recorrente vem no essencial dizer nas suas alegações ao presente recurso, que foram violados os princípios constitucionais acima descritos, porquanto, se demonstrou provado nos autos que a sua associação aos crimes supra referenciados jamais foi de co-autoria material ou moral com os demais Réus nos autos, considerando que somente se viu envolvido no processo em causa, por ter cedido o número da conta bancária de sua firma, a pedido de um dos co-réus, servindo essa conta para a passagem de dinheiro cobrado indevidamente à empresa TECNIMED, sem contudo, dele beneficiar. Acrescendo que, deste modo, foi discriminatório o seu julgamento, em relação às co- Rés, nas mesmas circunstâncias ou conduta semelhante a sua, neste processo. Considera igualmente injusta a condenação em restituir o valor de duzentos milhões de kwanzas ao Estado, na pessoa da Administração Geral Tributária, na medida em que este ficou finalmente ressarcido, apurado que foi o valor real devido a título de impostos efectivamente pagos pela empresa em causa durante o decurso do julgamento. Assistir-lhe-á razão.
Vejamos...
Reportam os autos que este Recorrente, à semelhança de outros Réus no processo, era também funcionário da Administração Geral Tributária (AGT) e, neste contexto, sucedeu que em virtude de uma fiscalização realizada às contas bancárias da contribuinte, empresa TECNIMED - Equipamentos e Materiais Hospitalares, apurou-se que esta tinha uma dívida no valor de AKZ. 581.621.828,00, (quinhentos e oitenta e um milhões, seiscentos e vinte um mil e oitocentos e vinte e oito kwanzas) por falta de pagamento de obrigações fiscais, referente ao exercício fiscal correspondente a determinado ano ou período económico.
Perante a situação constatada da dívida referente à empresa TECNIMED, ocorreu por iniciativa de alguns funcionários da AGT, (réus no processo) a ideia de fazer reduzir o valor da referida dívida fiscal, mediante a cobrança indevida da quantia de AKZ. 170 000.000,00 (cento e sessenta milhões de Kwanzas) que deveria ser entregue pela mesma empresa aos réus por via de uma empresa de consultoria denominada TIPOS CONSULTING.
Efectivamente, a empresa TECNIMED cumpriu a sua parte no negócio, procedendo a transferência do montante acordado para a conta bancária da empresa TIPOS CONSULTING, pertencente a um dos réus no processo, que estando no poder do aludido valor, seguidamente procedeu a sua distribuição para os demais réus envolvidos, tendo igualmente cabido a firma pertencente ao ora Recorrente, João Augusto Miguel de Oliveira, a quantia de AKZs 24 000 000,00 (vinte e quatro milhões de kwanzas) conforme consta nos autos a fls. 395, demonstrando-se, de forma semelhante, o proveito que este obteve do depósito da aludida quantia, bem como do cálculo do valor sonegado aos cofres do Estado, resultante da actuação de todos os envolvidos.
Elaborada a descrição dos factos acima, todavia é mister, antes de mais, recordar que, o Tribunal Constitucional não é um tribunal de terceira instância de recurso em relação a matéria da causa, não lhe cabendo, por conseguinte, reapreciar a matéria da prova e proceder a novo julgamento da matéria de facto como se de um tribunal comum se tratasse. Portanto, seguindo tal desiderato, de acordo com o disposto no artigo 49.º alínea a) da LPC, o âmbito da apreciação do Tribunal Constitucional cingir-se-á em determinar se, no aresto em crise, se vislumbram fundamentos de direito que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na CRA.
Por essa ordem de considerações, compreende esta Corte constitucional, que a decisão recorrida não feriu o invocado princípio da individualização da responsabilidade criminal quanto a este Recorrente, e consequentemente os princípios da legalidade e igualdade em face da condenação das demais rés no processo, na medida em que, foi justamente em atenção a estes princípios constitucionais que, na decisão recorrida, se procedeu à análise individualizada da responsabilidade subjectiva de cada uma das condutas dos agentes envolvidos, em relação aos elementos probatórios constantes do processo, qualificando-as em função das circunstâncias concretas e precisas aplicáveis a cada comparticipação.
Na verdade, ao emanar do texto constitucional, precisamente o n.º 1, do artigo 65.º da CRA e artigo 28.º do CP, o princípio segundo o qual, a responsabilidade criminal recai única e individualmente aos agentes do crime, temos por suficientemente analisado o grau de envolvimento dos vários agentes na prática criminal reportada, salientado que, o julgador no âmbito da livre apreciação dos elementos probatórios constantes do processo, bem como dos princípios atinentes a aplicação das penas, designadamente os princípios da culpa e da proporcionalidade, decidiu sobre a autoria do facto criminoso, tendo cabido ao Recorrente João Augusto Miguel de Oliveira, a convicção de que o seu grau de comparticipação criminal, preencheu os termos do disposto no artigos 20.º do CP, por tomar parte directa na execução delituosa, quanto aos crimes de associação criminosa, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais.
Por conseguinte, é entendimento deste Egrégio Tribunal, em referência aos princípios da livre apreciação da prova, previsto no artigo 655.º Código de Processo Civil (CPC), da fundamentação das decisões judiciais previsto no artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro (LOFTJC) que, no caso vertente o Tribunal Supremo procedeu a valoração da prova produzida no processo, de acordo a convicção formada, por sinal devidamente fundamentada, razão pela qual o acórdão recorrido não fere de todo, os princípios constitucionais mencionados.
É deste modo que se pode observar da decisão recorrida que as Rés mencionadas pelo Recorrente (todas elas na qualidade de esposas ou companheiras de Réus no processo), ao contrário do que veio este alegar, foram também elas condenadas por autoria material, concluiu-se de que, as suas participações tal como a do Recorrente, não eram de meras encobridoras, mas sim, de verdadeiras autoras materiais do crime de branqueamento de capitais, isto por se demonstrar nos autos terem todas elas pleno conhecimento da proveniência ilícita dos avultados valores transferidos para as contas bancárias das empresas que titulavam, empresas estas, cuja actividade empresarial não era expressiva, na qual justificasse as exorbitantes transferências efectuadas, com o intuito de conferir aparência de proveniência lícita aos proventos de transacções ilícitas dos envolvidos.
Enquanto que, no que respeitou ao Recorrente João Augusto Miguel de Oliveira, além da conduta enquadrável no crime de branqueamento de capitais, igualmente foi demonstrado que, tal como os demais Réus no processo, na qualidade de funcionário da AGT, igualmente tinha perfeita noção do esquema engendrado para disseminação da quantia monetária transferida para a conta bancária da sua empresa.
De resto, foi perfeitamente justificada e distinguida a participação deste Recorrente em relação aos demais participantes no processo. Termos em que a decisão recorrida de modo algum viola os princípios constitucionais enunciados, seja da individualidade da responsabilidade criminal, na medida em que tanto foi aplicada ao Recorrente como às Rés por ele referenciadas, pena concreta de harmonia com a culpa respectiva, logo não se ofendendo os princípios da legalidade constitucional, igualdade, do acesso ao direito e julgamento justo.
Posto isto, sobre a alegada violação do princípio da proibição da reformatio in pejus, impõe analisar o seguinte:
De facto sucedeu que, mediante querela do Ministério Público, o ora Recorrente João Augusto Miguel de Oliveira, foi pronunciado e consequentemente condenado em primeira instância, na pena de 5 (cinco) anos de prisão maior, pelo crime de corrupção passiva, 6 (seis) anos de p.m pelo crime de fraude fiscal qualificada; 5 (cinco) anos de p.m pelo crime de associação criminosa; 6 (seis) anos de p.m, pelo crime de branqueamento de capitais e 2 (dois) anos de p.m, pelo crime de falsificação praticada por empregado público no exercício das funções, sendo em cúmulo jurídico condenado na pena única de 2 (dois) anos de p.m, com execução suspensa por um período de 4 (quatro) anos, acrescido do pagamento de taxa de justiça no valor de Akz. 1 000 000,00 (um milhão de Kwanzas) e no pagamento solidário com os demais réus no processo, da quantia de Akz. 688 911 360,32 (seiscentos e oitenta e oito milhões, novecentos e onze mil, trezentos e sessenta kwanzas e trinta e dois cêntimos) a título de indemnização por danos patrimoniais.
Contudo, inconformado com a aludida sentença, recorreu para o Tribunal Supremo onde em síntese alegou que o tribunal a quo, não foi capaz de demostrar que a conduta por si observada, o qualificava como autor dos crimes de que veio acusado e condenado.
Não obstante, porém, igualmente recorreu da aludida sentença para o Tribunal Supremo, o Ministério Público, por não conformação nos termos dos artigos 645.º e 647.º, n.º 1, do CPP, requerendo em termos gerais nas alegações que apresentou, a alteração do enquadramento jurídico das condutas observadas pelas rés, artigo 447.º do CPP, permanecendo, quanto aos demais réus, os crimes constantes da sua acusação, incluindo o crime de associação de malfeitores, que em bom rigor do termo, correspondia ao crime de associação criminosa, conforme previsto na Lei n.º 3/14 de 10 de Fevereiro.
Apreciando os termos dos recursos interpostos, tanto pelo Ministério Público como pelos réus, o Tribunal Supremo decidiu, quanto ao presente Recorrente, condená-lo em co -autoria material, nos crimes de associação criminosa na pena de dois anos de prisão, fraude fiscal qualificada na pena de 2 anos de prisão e no crime de branqueamento de capitais na pena de 3 anos de prisão e em cúmulo jurídico condená-lo na pena única de 4 anos de prisão maior, e no pagamento solidário da quantia de Akz. 200 000 000,00 (duzentos milhões de Kwanzas) a AGT.
Ora, previsto no artigo 667.º do anterior CPP, o princípio da proibição da reformatio in pejus, estabelecia que, interposto recurso ordinário de uma sentença ou acórdão somente:
- Pelo réu, pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa, ou
- Pelo réu e o Ministério Público nesse exclusivo interesse
Que o tribunal superior não podia, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não Recorrentes:
1º- Aplicar pena que, pela espécie ou pela medida, deva considerar mais grave do que a constante da decisão recorrida;
2º Revogar o benefício da suspensão da execução da pena ou da sua substituição por penas menos grave;
3º Aplicar qualquer pena acessória, não contida na decisão recorrida, fora dos casos em que a lei impõe esta aplicação;
4º Modificar, de qualquer modo, a pena aplicada pela decisão recorrida.
No entanto, sabe-se que, igualmente, decorrem, do mesmo preceito legal, excepções ao princípio da proibição da reformatio in pejus da sentença, desde logo a que resulta da interpretação a contrario sensu, do corpo do artigo, isto é, perante a existência de recurso interposto também pelo Ministério Público, que não seja no interesse exclusivo da defesa. Nesta hipótese, não é proibida a reforma da decisão recorrida no sentido do agravamento da pena anteriormente aplicada ao réu.
Como se destacou acima, a questão sub judice é diferente, uma vez que também o Ministério Público interpôs recurso da decisão condenatória em primeira instância, e não o fez no exclusivo interesse da defesa, pelo contrário, claramente procedeu em desfavor desta.
Em suma, deve-se compreender única e exclusivamente que a proibição da reforma da sentença em prejuízo do réu só não é permitida se for o próprio a interpor recurso ou que este seja interposto no seu interesse, justamente para não inibir ou desestimular o exercício do direito fundamental de defesa previsto no n.º 6 do artigo 67.º da CRA.
A este propósito, refere igualmente, Vasco A. Grandão Ramos …o instituto da proibição da “reformatio in pejus” tem como objectivo fundamental realizar a justiça material e tornar mais efectivo o direito de defesa, gravemente comprometido pelo natural temor do reu de, ao recorrer de uma sentença que considere injusta para o tribunal superior, ver por este agravada ainda a pena e, consequentemente, aumentada a injustiça. In Noções Fundamentais do Direito Processual Penal, 1993, pág. 407.
Não sendo este o caso, na medida em que, igualmente foi interposto outro recurso da decisão que não no interesse exclusivo da defesa, não era de todo proibido na decisão recorrida, se alterar a pena aplicada nos moldes em que procedeu, isto mesmo, em face da faculdade de que dispõe o tribunal superior de amplamente reapreciar a causa, podendo confirmar, anular, revogar ou alterar a sentença recorrida, justificada no caso em apreço, em virtude do Tribunal Supremo ter procedido a correcção do resultado da operação legal do cúmulo jurídico, operado pelo tribunal a quo, conforme previam os artigos 47.º e 51.º n.º 3 da Lei n.º 20/88 de 31 de Dezembro – Lei sobre o Ajustamento das Leis Processuais Penal e Civil, actualmente revogada pela lei n.º 39/20 de 11 de Novembro, que aprova o novo código de processo penal angolano.
Sendo certo que, a proibição em causa, nunca podia ir até ao extremo de impedir que o Tribunal superior corrigisse erros flagrantes de incriminação defeituosa efectuada pela primeira Instância. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 1972, pág. 770.
Termos em que a decisão recorrida de modo algum fere os princípios da legalidade constitucional, da igualdade, do acesso ao direto e julgamento justo e conforme.
Assim sendo, improcedem as questões invocadas pelos Recorrentes por falta de fundamento bastante.
DECIDINDO
Neste termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho (Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 9 de Março de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dr. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria Fátima Lima A. B da Silva (Relatora)
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata